Para entender o significado de “neutralidade obscura” das pesquisas do Datafolha (e também da imensa maioria de institutos que colhem opinião da sociedade) é preciso levar em conta se a rigidez adotada é proposital ou artimanha que, juntamente com outros condimentos, estimula o apimentado geral que tem por finalidade dar o máximo de versatilidade ao uso de dados. E quando dados viram objetos gelatinosos, tudo pode acontecer. Principalmente em detrimento da ética estatística.
Para ser direto e reto, quero dizer que neutralidade obscura espécie de infantaria de dados estatísticos levados ao campo de batalha para, diante de desconforto no placar, ser convocada à luta.
A neutralidade obscura é tratada na forma de “indecisos” nas pesquisas eleitorais. É pau para toda obra de engenharia maliciosa.
Em pesquisa como a que o Instituto Datafolha publicou na semana passada, sobre a qual lanço esta série de observações, a neutralidade obscura, que também pode ser chamada de neutralidade matreira, quando não ardilosa, se constata na forma de “regular”. E é do “regular” que trataremos neste capítulo.
E vamos ter como suporte prático uma das muitas perguntas que o Datafolha fez 2.069 entrevistados, entre 25 e 26 de maio, sobre o desempenho do governo de Jair Bolsonaro. Mais precisamente sobre o nível de rejeição.
Como já observado em textos anteriores, a Folha de S. Paulo não transpôs aos leitores e nem o Datafolha assim deu publicidade à íntegra da pergunta dirigida aos eleitores entrevistados.
Na edição de 29 de maio a Folha de S. Paulo (e os muitos veículos de comunicação que repercutiram os dados no mesmo dia e nos dias seguintes) apenas resumiu a questão nos seguintes termos: “Avaliação do presidente Jair Bolsonaro”. O resultado foi de 43% de ruim/péssimo, 33% de ótimo/bom e22% de regular.
Dissecando o regular
É nesse ponto, do “regular”, que estacionamos a bateria de exigências à transparência e também à maior precisão da pesquisa. Primeiro porque “regular” é muito vago e pode estimular interpretações diversas. Segundo porque “regular” tem peso decisivo no resultado final do questionamento específico. Quanto menos “regular”, mais se definem os resultados.
Traduzindo em termos práticos de dimensionamento de quem aprova e de quem reprova a atuação do presidente Jair Bolsonaro: quantos por centos dos 22% dos eleitores que optaram pelo “regular” estariam mais alinhados ao governo federal ou contrários ao governo federal se o conceito de “regular” ganhasse mais tônus? Notaram que a neutralidade é insolvente para quem pretende ir além da simplificação?
Falta, portanto, aplicar metodologia que tiraria de cima do muro os entrevistados que optaram por “regular”. Nem todos, é claro. Mas não é justo que eleitores que responderam “regular” com ímpeto de viés positivo tolhido pela pergunta inflexível não possam expressar mais claramente a posição que ostentam.
A mesma proposta, a mesma fórmula, vale aos eleitores do “regular” com viés de reprovação. Não seria diferente, também, apresentar aos entrevistados outra tipologia de “regular”: o “regular-regular”; ou seja, eleitores que não arredariam pé da neutralidade consciente e, portanto, nada preguiçosa ou castrada. O regular-regular que sobrevive às possibilidades de virar “regular-positivo” ou “regular-negativo” é muito melhor que o “regular” imposto goela abaixo.
Para onde iria?
Num exercício meramente especulativo, que até poderia deixar de ser enquadrado nesse compartimento supostamente menos nobre ou cientifico, vou tentar mostrar aos leitores que, caso a neutralidade obscura fosse retirada da pesquisa em favor de três modelos expostos de “regular”, Jair Bolsonaro teria a maioria dos eleitores desse grupamento. Até porque, e isso integra a linha do tempo de pesquisas da atuação do presidente, houve baixa específica de “regular” nessa última sondagem em relação aos números anteriores.
Ou seja: houve migração de eleitores que até então optaram pelo “regular” em direção ao “ruim/péssimo que saiu de 38% para 43%. É pouco provável que o aumento desses cinco pontos percentuais tenha saído do grupo que aprova a atuação do presidente. O núcleo do “regular” de Jair Bolsonaro caiu quatro pontos: eram 26% na pesquisa anterior, em 27 de abril.
Dois questionamentos do Datafolha que poderiam servir de balizamento à afirmativa de que a maioria dos 22% de eleitores que se mantém na posição de “regular” estariam mais sensíveis à aprovação do que à reprovação de Bolsonaro. Para entender essa possiblidade é importante guardar os números de aprovação e reprovação ao governo: 33% e 43%, respectivamente.
Indo às origens
Afinal, para onde teriam maiores possibilidade de ir os 22% que optaram pelo “regular” caso o Datafolha incluísse no questionário “regular-positivo”, “regular-regular” e regular-negativo”?
Voltemos aos dois referenciais que podem tirar dúvida sobre isso, ou deixar o leitor e eleitor ainda mais desafiado.
A primeira questão incluída no questionário do Datafolha constatou que 50% dos brasileiros são favoráveis à renúncia do presidente, enquanto 48% são contrários. Já em situação de impeachment do presidente, 50% são favoráveis e 46% contrários. Numericamente há empate técnico na primeira alternativa e uma diferença de quatro pontos na segunda.
Tratando os dois pontos sob a ótica numérica, ou seja, sem levar em conta a margem de erro de dois pontos percentuais para cima ou para baixo, não seria despropositada a conclusão de que a maioria dos eleitores que manifestaram a condição de “regular” é favorável a Bolsonaro. A explicação exige cuidados e muita atenção. O raciocínio é o seguinte:
Se 43% dos eleitores consideraram o governo ruim/péssimo, se 50% querem sua renúncia e outros 50% querem o impeachment, isso significa que houve crescimento de sete pontos percentuais entre os eleitores favoráveis a cada uma das decisões drásticas envolvendo o presidente em relação aos que o reprovam.
Por outro lado, como apenas 33% dos eleitores aprovaram a gestão de Bolsonaro, enquanto 46% são contrários ao impeachment e 48% à renúncia, o crescimento registrado é de 13 e de 15 pontos percentuais.
Os dois acréscimos foram extraídos especulativamente do contingente de 22% dos eleitores que se mantiveram neutros à aprovação ou reprovação ao governo Bolsonaro. Não esqueça que essa conta toda tem como indexador explicativo o desdobramento do conceito de “regular”.
Exposição cronológica
Parece mais sensato extrair a conclusão que levaria à avaliação de que o maior potencial de migração de eleitores “regular” no questionamento sobre aprovação e reprovação seria favorável a Bolsonaro do que buscar em outra seara, propriamente entre os 43% de ruim/péssimo ou aos 33% de “ótimo/bom” a fonte de inspiração favorável ou contrário ao impeachment e à renúncia do presidente.
Quando eleitores optaram pela aprovação e pela reprovação, acredita-se que armazenaram desejo de salvar ou não o presidente do impeachment ou da renúncia, o que caberia aos neutros em forma de “regular”.
Há, entretanto, um ponto a considerar e que tem tudo a ver com a abordagem anterior: em que situação cronológica de aplicação prática da pesquisa o Datafolha perguntou sobre as três questões, ou seja, de aprovação ou reprovação ao governo, de impeachment e de renúncia. Conforme a ordem, os resultados estariam viciados.
Traduzindo: se o Datafolha perguntou primeiro sobre a possibilidade de impeachment do presidente e em seguida sobre a renúncia para, somente adiante, sobre a aprovação ou reprovação, os números finais da terceira questão estariam contaminados por viés negativo ao presidente da República.
Tática progressiva
Se mesmo com essa impropriedade o presidente da República obteve resultados menos impactantes nas questões relativas a impeachment e a renúncia, os números favoráveis seriam muito mais expressivos.
De qualquer forma, a abordagem sobre a ordem numérica das três questões perde importância na avaliação desse capítulo. Os eleitores que optaram pelo “regular” à aprovação ou reprovação ao presidente, contingente de 22%, seriam mais propensos a contar com maior peso se houvesse o desmembrando para “regular-positivo” do que para “regular-negativo”. “Regular” no sentido único a respostas é, portanto, influenciador de baixa expressão quando se vasculham os resultados que impliquem posicionamento crítico além do extremismo de aprovação e reprovação.
Em outras análises da atuação de institutos de pesquisa sem a profundidade e a abrangência de agora, mantive tom pouco satisfatório com a neutralidade do “regular” e, principalmente, com os “indecisos” das pesquisas eleitorais.
A desconfiança maior -- e por que não dizer mais que justificada -- corre no sentido de que o universo de “indecisos” trafega por uma raia própria como reserva de mercado à retórica final, urnas apuradas, de que os institutos acertaram em cheio nos resultados.
Essa é uma tática aceita passivamente, mas não resiste à inquirição mais detalhada e minuciosa. Os “indecisos” integram, com a margem de erro, dupla de potencial manipulador estratosférico.
Tenta-se o diabo ao encaminhamento de resultados que cumpram determinados valores durante o período de pesquisas eleitorais. Até que, lentamente, com a proximidade das urnas, lança-se mão dos dois fatores, margem de erro e indecisos, para acerto estrutural que não comprometa o enredo final. Há situações que não aceitam desaforos e abusos.
Total de 1884 matérias | Página 1
13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)