A imprensa tradicional quer tapar o sol da incompetência ou da malandragem, quando não da omissão deliberada, com a peneira do monopólio da virtude mais que enganadora: o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, tem razão: fake news não são propriedade exclusiva e ultrajante das redes sociais. Essa história é muito mais antiga. Começou e segue no papel. Com o reforço do digital.
Tenho dito isso há 300 anos, do alto de minha experiência de décadas na função, que inclui mais de uma centena de artigos e um livro sobre o assunto – Meias-Verdades. Aras só cometeu uma imprecisão e uma omissão. Vou apontar tanto uma quanto outra.
Primeiro, não é de hoje, é de sempre, que a mídia tradicional, aquela que se pretende portadora de todas as virtudes e que demoniza as mídias sociais, usa e abusa de informações inconsistentes, quando não deliberadamente mentirosas.
Segundo, as fake news das mídias sociais e da imprensa tradicional não têm o mesmo grau destrutivo, por mais que os primeiros exagerem na dose.
Mentiras e variáveis
A mentira e variáveis que se distanciam da verdade em forma também de meia-verdade bem articulada dos profissionais do jornalismo provocam muito mais danos diretos e colaterais à sociedade do que as fake news de franco-atiradores sem habilidades semânticas das redes sociais.
Profissionais do jornalismo tradicional, mal-ajambrados ou deliberadamente dispostos a atingir seus alvos de militância partidária e ideológica, são muito mais corrosivos à sociedade do que milicianos das redes sociais sem destreza para dar roupagem de credibilidade a informações rudimentares.
Mais que isso: por serem amadores, voluntaristas, os amadores escancaram logo suas vocações e, com isso, logo despertam cuidados redobrados de quem não gosta de comprar gato por lebre.
Gato por lebre
A imprensa tradicional sabe vender gato por lebre e o faz como competência alucinante. O peso da tradição dos veículos é salvo-conduto a debilitar a reação de curadoria de um público consumidor de informações de baixo poder inventariante para distinguir alhos de bugalhos.
Leiam alguns trechos das declarações de Augusto Aras em manifestação durante o julgamento de ação que pede a suspensão do inquérito das fake News:
Sabemos que esse fenômeno maligno das fake News não se resume a blogueiros ou às redes sociais. Ele é estimulado por todos os segmentos da comunicação moderna, sem teias, sem aquele respeito que a minha geração aprendeu a ler o jornal, acreditando que aquilo era verdade. (...). Temos que hoje ter mais cuidado na leitura das notícias para fazermos um filtro fino para encontrar um mínimo de plausibilidade em relação a esta campanha de fake new, que não guarda limites de nenhuma natureza. E o pior, que vai estimulando comoções sociais, que vai sustentando pensamentos extremistas, que vai levando a sociedade já desesperada, em meio a uma calamidade pública, a sentimento de revolta, incitação, e submetida a reações delicadas para a nossa democracia” – disse o Procurador-Geral.
Gritaria corporativa
É claro que houve gritaria corporativa. Para o presidente da Associação Nacional dos Jornalistas (ANJ), Marcelo Rech, o procurador-geral da República demonstrou “total desconhecimento” sobre o jornalismo profissional. “Veículos de comunicação não vivem de erro – como o próprio Ministério Público, buscam o acerto e a precisão. E, quando erram, por dever ético corrigem o erro ou podem ser responsabilizados”, rebateu Rech. Que destacou ainda: “Veículos têm CNPJ e responsabilidade legal sobre o que divulgam – e não se escondem no anonimato ou atrás de robôs, como fazem os disseminadores profissionais de mentiras”.
Cabem duas contra-argumentações sobre as declarações. A primeira, de Augusto Aras, é imprecisa ao se referir ao passado do jornalismo tradicional. As mentiras e as deliberadas manipulações editoriais surgiram com a própria mídia. A diferença em relação a estes tempos é que agora os veículos de comunicação convencionais passam por escrutínio público permanente.
Destruindo reputações
Já há batalhões de verificadores de informações. Gente que sabe distinguir uma manchete e uma notícia com finalidade espúria que soterra a prática de comunicação isenta. O passado de penumbra tecnológica de massa era um convite a todas as estripulias que não cessaram nestes dias, mas seguem na fornalha de destruição de reputações.
Quanto às declarações do dirigente da Associação Nacional de Jornais, fosse dirigida diretamente aos milicianos das redes sociais não haveria reparo algum. Só que o problema é muito mais embaixo. Abaixo da linha de cintura no sentido figurado: as mídias tradicionais perderam o monopólio da informação e apelam para o jogo sujo com cara de pau de defesa da democracia.
Já não é possível a um Jornal Nacional, a uma Folha de S. Paulo, a um Estadão, a uma Globonews, por exemplo, dominar a opinião pública, tanto quanto os veículos regionais e municipais que reinaram num passado não muito distante.
Há barreiras críticas da sociedade mesmo que em muitas situações manifestamente ideológicas e suscetíveis a tergiversações.
Narrativas colidentes
No fundo, no fundo, o que pretende mesmo é atingir o coração das mídias sociais sem CNPJ ou mesmo com CNPJ. O que está em jogo são narrativas colidentes nestes tempos de extremismos. À imprecisão interesseira ou negligente, quando não ignorante, se somam vetores partidários e ideológicos. A Grande Mídia é a expressão mais eloquente do quanto o jornalismo profissional entrou em parafuso.
Na semana que vem vou enviar à direção do Instituto Datafolha, em forma de dossiê, os textos que produzi e que dividi em oito capítulos. As traquinagens desse braço estatístico da Folha de S. Paulo estão ali, tendo como referencial a pesquisa realizada em 25 e 26 de maio, subsequentemente explorada pela Grande Mídia.
Vou aproveitar a remessa eletrônica para disparar uma cópia do documento ao Procurador-Geral da República. Os resultados e as interpretações decorrentes dos dados, sempre tendo a Grande Mídia como interlocutora oficial do Datafolha, são fake news muito mais ruinosos às instituições do que a maioria das fake News que motivam o Judiciário a pretender intervir na liberdade de expressão.
Gatunagem estatística
O que opõe o Datafolha ao pior que existe nas redes sociais é o profissionalismo em forma de gatunagem estatística. Mais que isso: o uso do dispositivo supostamente científico, cujo objetivo, como expliquei em mais de 80 mil caracteres, é minar consistentemente o governo federal – como se Bolsonaro não fosse capaz de por si só dar conta disso.
É claro que a Grande Mídia jamais assumirá os frequentes erros em horário nobre de televisão em diferentes maneiras de delitos técnicos, informativos e semânticos. O Jornal Nacional se tornou uma peça de artilharia de extraordinário calibre e engenhosidade. Não faltam habilidade e traquejo na arte de conduzir a informação para o curral de interesse do Grupo Globo. Há sempre os espertalhões chamados equivocadamente de representantes da sociedade civil a agir servilmente.
O que a Grande Mídia e seus tentáculos na chamada elite política, acadêmica e corporativa quer mesmo é mitigar, quando não eliminar, a influência das redes sociais na produção da opinião pública.
A Grande Mídia quer retomar o reinado de tornar o eleitorado brasileiro bovino, pronto a novas lobotomias. Vai perder tempo. Resta saber se o processo será um jogo de equivalências contrastantes, de desgaste da Grande Mídia de um lado e de fortalecimento da responsabilidade das mídias sociais de outro, sem necessidade de coerção ou ferramental que agrida a liberdade de expressão com responsabilidade.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)