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30ANOS: muita produtividade
é o recado da General Motors

DANIEL LIMA - 03/07/2020

A jornalista Malu Marcoccia fez uma entrevista especial com o então executivo da General Motors do Brasil e presidente da Anfavea, a entidade que representa as montadoras de veículos no País. Na edição de maio de 1999 da revista LivreMercado, José Carlos Pinheiro Neto fez ampla abordagem sobre o setor automotivo do Grande ABC e do País. E insistiu numa pregação que já ensaiava bons resultados: produtividade, produtividade, produtividade, referindo-se ao Custo ABC.

Esta é a octogésima-primeira matéria da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País – uma soma sobreposta de 19 anos da revista de papel LivreMercado e também dos 19 anos da revista digital CapitalSocial.  

Só temos uma saída:

muita produtividade

 MALU MARCOCCIA - 05/05/1999

Um robô infiltrado aqui, uma eletrônica embarcada ali, células de produção abreviando a maneira de produzir, cargas de treinamento para carimbar qualificação de Primeiro Mundo, volumosas demissões que projetam o caos social. A versão enxuta do Grande ABC automotivo não assusta José Carlos Pinheiro Neto, presidente da Anfavea, associação que reúne os fabricantes de veículos no País. Nem mesmo as reduzidas e moderníssimas fábricas automobilísticas que passaram a cintilar em vários cantos do Brasil assombram esse executivo que frequenta há 30 anos a região, como profissional da General Motors de São Caetano.

Por isso mesmo, para o cenário aparentemente tenebroso promovido pela concorrência da globalização e pela descentralização dos investimentos automotivos, Pinheiro Neto sugere um antídoto ao Grande ABC: produtividade, produtividade, mais produtividade.

Sua receita mistura muita tecnologia, várias pitadas de modernização de processos, dezenas de colheres de treinamento e doses maciças de enxugamento de custos. Se não reverter a situação agora, o Grande ABC poderá perder oportunidade única de erguer a ponte para estágio mais avançado de produção.

 O presidente da Anfavea vai direto ao ponto: “Temos um Custo ABC inegável representado pela infraestrutura problemática e mão-de-obra quase 100% mais cara. Não vamos cortar salários, é óbvio. Mas exigiremos da mão-de-obra o quanto nos custa: mais qualidade, mais produtividade para ombrear-se com as newcomers (montadoras que estão chegando)”.

Revendo conceitos

Esse vale-quanto-pesa coloca o emprego, obviamente, na berlinda. Pinheiro Neto voltou a decretar o fim das megafábricas, com 30 mil, 40 mil funcionários e deitadas em imensos territórios. Como em outros lugares do mundo, cita ele, o Grande ABC está revendo o conceito de plantas gigantescas: “A chamada clean organization, organização enxuta, é fundamental para se manter competitivo e a região corre atrás disso. É aí que entra a necessidade dos investimentos que se vêm realizando, o que, todavia, não garante a manutenção dos empregos. Posso assegurar a qualidade, não a quantidade eterna da mão-de-obra” — diz.

Que o digam os trabalhadores. Dados do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC indicam que havia na base, diretamente empregadas nas montadoras da região, 70,2 mil pessoas em dezembro de 1990. Em dezembro último, eram 44,9 mil.

Se a tecnologia se tornou sangue vital do sistema produtivo e é inegável que descarta (ou não cria) empregos, não significa que o Grande ABC esteja sendo dinamitado. O presidente da Anfavea acha que o que as montadoras da região estão fazendo é explorar as possibilidades de fabricação ao ponto máximo, daí aquela a receita nada exótica de mais tecnologia, novos processos, mais veículos por homem/ano.

Antiguidade atrapalha

Por serem as primeiras plantas automotivas do País, quarentonas e em processo de lipoaspiração, dificilmente, na visão de Pinheiro Neto, as fábricas da região atingirão o grau de excelência profetizado pelo ex-presidente mundial da Ford, Alex Trotman. Segundo Trotman, montadora que não produzir 100 automóveis/ano/funcionário a partir de 2002 estará assinando atestado de óbito.

Nesse quesito, o Grande ABC, com média de 35 veículos per capita, é visto pelo retrovisor por americanos (63), europeus (68) e japoneses (74, em média), índices com os quais as newcomers brasileiras estão dando início a processos. “Não há milagre: a solução é muita produtividade. As fábricas mais antigas não chegarão a tanto, mas estão dando bons saltos” — arremata. Estudos da consultoria KPMG indicam que em 1990, antes da tormentosa abertura comercial do governo Collor, cada metalúrgico brasileiro fabricava em média 13 carros/ano.

Para não parecer que está ficando um tanto monótona a cobrança do Custo ABC apenas sobre a folha salarial, as fábricas dividem a cota-parte. Hoje deslocado para papel de coadjuvante, produzindo 30% de um mercado no qual chegou a dar 90% das cartas há pouco mais de uma década, nem por isso o Grande ABC perdeu brilho e passou para plano secundário na escala de investimentos, segundo Pinheiro Neto.

Investimentos, investimentos

Apesar de menor, o Grande ABC é fundamental nos planos das empresas. Mesmo com produção em baixa devido ao tombo das vendas, a capacidade instalada da região soma mais de um milhão de unidades/ano. Em tese, a pleno vapor seria possível cobrir 50% do mercado. “Você pode observar que, mesmo indo para o Interior de São Paulo ou para outros Estados, nenhuma montadora se movimentou no sentido de se afastar do ABC. Ao contrário, estão sendo injetados na região investimentos também expressivos. O que se vai observar daqui para frente no ABC são investimentos fantásticos em tecnologia de processos e de equipamentos” — argumenta.

Os índices de robotização na região já estão em patamar internacional, só perdendo para americanos e japoneses, cita o dirigente. A nova linha do Astra na GM de São Caetano, por exemplo, exigiu 100 novos robôs e a estamparia da Volks Anchieta saltou de 15 para 29 no final do ano passado. O just-in-time e o milk-run, em que transportadoras entregam peças dos fornecedores na porta e retiram veículos já inteiros de dentro das fábricas direto para as concessionárias, seriam a compensação para os consórcios modulares e condomínios industriais adotados pelas newcomers.

Pinheiro Neto acha difícil, por falta de espaço livre adequado, trazer fornecedores sistemistas para dentro ou para o quintal das fábricas, como tem sido a nova tendência. Já haveria, a seu ver, uma vizinhança física das autopeças nos bairros ao redor das principais automobilísticas. Apesar da infraestrutura de transportes problemática — e aqui lança a responsabilidade aos poderes públicos –, ele acredita que montadoras e fornecedores têm encontrado alternativas criativas como a do milk-run. “São estratégias impensáveis há dois ou três anos e mostram o grau de mobilização para tornar o Grande ABC em pé de igualdade com a modernidade” — relata.

Mais tolerância 

Pinheiro Neto abre parênteses e diz que quer não ser injusto com os trabalhadores quando lhes cobra mais produtividade e qualidade. Diz que os outrora beligerantes líderes sindicais da região têm tido papel digno de nota quando a questão é sobreviver à longa ebulição da economia internacionalizada.

Ficaram, a seu ver, mais tolerantes e abertos ao diálogo, e promovem, eles próprios, uma maratona atrás da capacitação dos funcionários por meio de programas como o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). “O processo de qualificar durante o emprego diminuiu muito. É preciso vir escolarizado e qualificado com conhecimentos mínimos da área onde se vai atuar. Processos mais antigos permitiam que se capacitasse, pacientemente, nas linhas de montagem” — descreve.

As novas montadoras só trabalham com escolaridade mínima de Ensino Médio, algo que apenas recentemente tornou-se pré-requisito de admissão no Grande ABC. “Ninguém imaginava há dois anos trabalhadores mobilizados para salvar empresas, e não apenas para reivindicar mais salários no ABC” — comenta Pinheiro Neto para apontar a mudança de postura trabalhista, sem nominar fatos.

Refere-se, obviamente, às forças-tarefas dos sindicatos para viabilizar as plantas da Ford e da Volks com novos produtos e mais produção. No caso da Volks, incluem-se inusitada redução de 15% nos salários e corte nos subsídios a transporte e refeições. No caso da Ford, a terceirização de algumas etapas produtivas.

“Colocam-se hoje numa mesa de negociações assuntos tabus até recentemente” — empolga-se, citando que se espalharam pelas fábricas expedientes como flexibilização da jornada, banco de horas, remanejamento de turnos e lay-off (afastamento temporário do trabalho com 80% do salário). Tudo para o Grande ABC continuar em campo nesse disputadíssimo jogo em que entraram, só no último ano, Renault, Toyota, Honda, Peugeot, Audi, Chrysler e Mercedes Automóveis. Algumas já enquadradas no incrível ranking de produtividade de 100 veículos/ano por trabalhador. 

Avanços à competitividade

Pinheiro Neto admite que a gangorra de altos e baixos econômicos e o desemprego que dá saltos olímpicos limitaram a capacidade trabalhista de enfrentamento. Mas ele prefere chamar de amadurecimento recíproco a aparente lua-de-mel em que vivem montadoras e metalúrgicos do Grande ABC. Houve, a seu ver, conscientização generalizada sobre a necessidade de tornar a região mais competitiva. Prova disso estaria inclusive no transbordamento do setor para esferas institucionais como Câmara do ABC, Fórum da Cidadania e Consórcio Intermunicipal de Prefeitos.

“Todos reconhecem a necessidade de fazer alguma coisa para ajudar na reformulação do ABC. É gente criativa e extremamente atuante. Quando iniciamos a discussão da renovação da frota de veículos acima de 15 anos, essas instâncias se manifestaram favoravelmente e com veemência muito grande. Também reconhecemos que a Câmara Regional vem conseguindo obras viárias importantes do governo do Estado” — descreve.

Não é para menos. Para se ter ideia de como as montadoras guiam a economia da região, a cadeia automotiva — montadoras, autopeças e fornecedores — representa entre 60% e 70% do PIB regional, 40% do ICMS e 16% da força de trabalho, entre outros números comprometedores apurados pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Faz-de-conta

Pinheiro Neto sabe que terminou o faz-de-conta de produzir veículos que imperou até a década passada, quando o Brasil se escondia do mundo com alíquotas que dobravam o preço de um carro importado e aos veículos nacionais eram repassados todos e quaisquer custos de produção, inclusive as ineficiências camufladas pela alta inflação.

Hoje expostas à seletiva e implacável internacionalização da economia, as fábricas trataram de correr atrás do prejuízo. Isso explica por que os investimentos migraram para outras regiões, atraídos também pela guerra fiscal, que cedeu imensos terrenos e generosos financiamentos: “Foi a união do útil ao agradável. A indústria automotiva queria crescer e o governo federal pediu para que tornássemos a área de investimentos mais abrangente, a fim de melhor aproveitar os portos e a infraestrutura das demais localidades. Além disso, outros Estados queriam recepcionar as novas plantas” — relata.

Também contaram pontos preciosos na decisão a qualidade de vida nos novos polos e a abundante e barata mão-de-obra. “A qualificação do operário que pesou a favor do ABC há 30 anos agora é possível encontrar em todo o País. O sistema educacional brasileiro prosperou e há localidades no Interior dos Estados melhor servidas em redes de ensino do que nas grandes cidades” — afirma.

O presidente da Anfavea insiste em que descentralizar a produção não quer dizer bater em retirada da região. As montadoras não estariam, como suspeitam sindicalistas, pegando incentivos de fora com a mão direita e tirando empregos e produção do Grande ABC com a esquerda.

Virando do avesso

Fazem contraponto a essas insinuações algumas cirurgias regionais radicais, como a da Ford, que desde 1995 vem virando do avesso as estruturas com seu Projeto 2000, investiu US$ 1,5 bilhão no complexo do Taboão para implantar a linha dos populares Ka e Fiesta e agora diz ser possível produzir com 40% menos funcionários, daí a ruidosa demissão de 2,8 mil metalúrgicos no final de 1998.

A GM reformulou totalmente a linha de São Caetano para produzir o Astra sob os rigores da globalização. Injetou US$ 350 milhões no projeto, cujo desenvolvimento teve participação decisiva da equipe brasileira, e conseguiu feito inédito: colocou o Astra no Brasil apenas sete meses depois de ter sido lançado na Europa.

Outro exemplo de modernidade vem da Scania Latin América, de São Bernardo, a primeira montadora do Brasil e pioneira entre as unidades do grupo sueco qualificada com a ambiental ISO 14001, em 1997.

A Divisão de Eixos da Mercedes-Benz, também de São Bernardo, atingiu em 1998 marco cobiçado durante 40 anos de Brasil: o primeiro eixo nota 1, ou seja, sem qualquer defeito. Conquistou da matriz alemã o selo de fábrica-modelo mundial e seu grau de excelência a fez arrebatar o primeiro lugar na concorrência internacional para fornecer os eixos do Classe A, carro de passeio que ganhou fábrica na mineira Juiz de Fora.

De senhora a manequim

A plástica na Volkswagen também é profunda: o MasterPlan da fábrica Anchieta tem como missão colocar a opulenta senhora em um atraente e jovem manequim 40, fazendo-a emagrecer simplesmente à metade. A fábrica tem como meta produzir mais e muito melhor em apenas 50% dos 1,1 milhão de metros quadrados hoje construídos, o que deve habilitá-la a sediar a linha do novo carro mundial batizado de PQ-24.

Na área física remanescente, trará os principais fornecedores para junto da linha de montagem. Acordo com o Sindicato dos Metalúrgicos prevê enxugar, em cinco anos, cinco mil dos 19,5 mil metalúrgicos da Volks Anchieta por caminhos naturais — leiam-se programas de demissões voluntárias, não reposição de vagas e aposentadoria daqueles que forem adquirindo o direito. Isso depois de quatro mil já terem sido desligados no início de 1998 por mais um dos tantos voluntariados e se o mercado se mantiver aquecido.

Eis aí outro grande perigo à região. Pinheiro Neto passou a recitar com frequência o bordão segundo o qual o maior empregador da indústria automotiva atende pelo nome de consumidor. É só ele quem define as regras. “Não adianta ter as melhores tecnologias do mundo, mão-de-obra mais qualificada e não conseguir vender. É preciso ter produto bom, preço barato e exceder a expectativa do cliente porque ele é nosso patrão” — sublinha.

Custo federal

Sem rodeios, volta a falar da produtividade dos trabalhadores e de outro parceiro dessa trinca: o governo e sua elevada carga de impostos, que coloca o carro brasileiro no topo dos mais tributados do mundo. No carro popular, que responde por 70% das vendas, os impostos representam 28,1%, no modelo médio, 32% e no top de linha quase 40%. Na Europa quem mais tributa é a França, com 17%. Nos Estados Unidos a média é de 7%. “Não é razoável que uma indústria como a nossa, que emprega diretamente quase 90 mil pessoas e pretende exportar US$ 5,5 bilhões este ano, seja taxada nesse nível. Somos comparados a supérfluos como cigarro e bebida. Deve ser alguma política direcionada para o no smoke, no drink, no drive” — brinca.

O presidente da Anfavea faz humor, mas fala sério quando detalha como o peso dos tributos puxa o freio de mão do mercado. O mais novo acordo emergencial do setor automotivo, que reduziu IPI e ICMS por 75 dias e barateou o preço dos automóveis em 11% em média desde março último, empinou as vendas em 122% sobre fevereiro.

O mercado interno retomou o confortante marco de 120 mil veículos comercializados ao mês. A lógica das montadoras, apoiada em gênero, número e grau pelos sindicatos trabalhistas, é acaciana: a renúncia fiscal é só aparente. Quando se vende mais um produto com valor unitário menor, se arrecada mais pela maior escala e se garantem empregos. Cálculos dos Metalúrgicos do ABC indicam que a arrecadação de IPI em março, de R$ 209 milhões, subiu 2% sobre a média de dezembro/janeiro anteriores e que a grade global (IPI, PIS e Cofins) cresceu 26,9% no período, com R$ 361 milhões recheando os cofres públicos.

Menos carga tributária

Por isso Pinheiro Neto não se aperta quando é criticado por outros setores, segundo os quais a indústria automobilística é privilegiada e só produz se o governo abre mão de arrecadação que faz falta a setores sociais, por exemplo: “Os acordos com a indústria automobilística com o governo não são excludentes. Nunca tivemos a pretensão de ser os únicos e acho que outras atividades devem reivindicar menos carga tributária” — incentiva. “Só lamento não conseguir mais renúncia fiscal. Estamos falando de modernidade, de tecnologia, de empregos qualificados e de melhor relação com fornecedores, mas temos de ter também avanços na relação tributária. Não é possível que um consumidor, ao comprar um automóvel, pague dois: um para nós, outro para o governo” — dispara. “Me deem alíquotas de tratores e caminhões, de 12% e 20%, que são razoáveis, e eu paro de pedir para baixar imposto de carro” — propõe.

Para não ficarem pendurados a uma pouco palpável reforma tributária, sindicatos dos Metalúrgicos do ABC e de São Paulo, respaldados pela Anfavea, têm pronto desde meados do ano passado projeto de reciclagem da frota acima de 5,5 milhões de veículos com mais de 15 anos. Seriam pelo menos 400 a 500 mil veículos/ano com vendas garantidas só por meio da renovação e um benefício ambiental incalculável. “O mercado brasileiro tem condições de dobrar com uma só canetada do governo” — anima-se Pinheiro Neto, que confessa ter iniciado o ano com projeções pessimistas de o setor produzir apenas 1,1 milhão de unidades, depois de ver o número brilhar em 2.070 milhão em 1997 e despencar para 1,5 milhão no ano passado.

Se nada for feito para reanimar o setor, o cerco fecha-se ainda mais sobre a participação do Grande ABC no bolo. Por volta de 2002, quando as estimadas 17 plantas de veículos estiverem inauguradas, a capacidade de produção nacional saltará para três milhões de unidades. As novas fábricas instaladas, ou em fase de instalação, já abocanharam no ano passado quase 10% das vendas internas e os importados 30%.

Um esforço jamais visto, de US$ 20 bilhões em investimentos no quinquênio 1996/2000, promete colocar o Brasil entre os cinco maiores produtores e fazer do País território onde há mais montadoras por metro quadrado do planeta.

População garante

Muita fábrica para pouco mercado? O presidente da Anfavea responde de pronto que não, seduzido pela numerosa população de 160 milhões de brasileiros. Tira da memória a relação de um veículo para um habitante nos Estados Unidos ou, mais próxima do padrão brasileiro, de um veículo para cada cinco habitantes na Argentina. No Brasil, são nove a 10 habitantes para apenas um veículo. Por essa comparação, de novo é possível duplicar a frota nacional de 20 milhões de unidades e avizinhar-se, pelo menos, dos hermanos argentinos. Como transformar potencial em mercado de fato no Brasil? O discurso é recorrente: melhor distribuição de renda, mais produtividade, menos impostos…

Oito cargos

São pelo menos oito cargos entre a diretoria de Assuntos Corporativos e Exportação da General Motors do Brasil e entidades como Fiesp, CNI, ADVB e Câmara Americana de Comércio. Mas desde que assumiu o comando da Anfavea, ano passado, o são-paulino de nome pomposo José Carlos da Silveira Pinheiro Neto só conhece uma rotina: convencer o governo de que automóvel não pode ter o estigma de produto menor no Brasil. Fosse menos tributado (e a carga chega em alguns casos a quase 40%), muito mais brasileiros teriam esse objeto do desejo na garagem e outro tanto poderia estar empregado numa linha de montagem. Neste início de maio, Pinheiro Neto está novamente na ponte-aérea São Paulo-Brasília protagonizando mais um capítulo da história de reduzir impostos-congelar preços-garantir emprego.

Os horários de sua agenda não têm mais dono. “Não consigo cumprir compromissos. São ministros, secretários e sindicatos de trabalhadores convocando reunião a qualquer hora” — conta. Em fevereiro, no meio do efervescente Carnaval baiano, voou para São Paulo para amarrar o acordo emergencial que garantiu a última versão do IPI e ICMS reduzidos.

A saga só é comparável ao desafio de aproximar, como dirigente de classe, rivais de pai-e-mãe como as montadoras de veículos. As newcomers (novas automobilísticas) chegam num mercado de competição hostil. Em menos de uma década, o Brasil passará de seis para 17 fabricantes. “É conversa só para adulto” — diz esse advogado de 54 anos nascido na Capital, há 30 anos dando expediente na GM de São Caetano e que se recolhe nos finais de semana na chácara de Mairiporã, na Região Metropolitana.

Gosto pelo passado

Ali projetou e ergueu uma casa de pedra, exercitando uma veia que talvez se sobressaísse caso a advocacia não lhe tivesse preenchido a trajetória profissional: a construção civil. “Adoro percorrer construções antigas e vasculhar material de demolição. Tenho obsessão por latões, bronze e lustres” — conta. Esses pequenos prazeres Pinheiro Neto colhe tanto farejando antiguidades na feirinha do Bexiga quanto na congênere de Paris, Port de Vanvré. Também encontra na natação o contraponto para o tamanho da responsabilidade quando veste terno e gravata.

Uma responsabilidade que tem gratas compensações. Na General Motors, onde em 1997 passou a acumular a área de exportação à diretoria de Assuntos Corporativos, demonstrou que não tem medo de cara feia, ou, pelo menos, de exigentes olhos espichados: fechou em fins de 1998 com a China o maior contrato de exportação da história da empresa, de US$ 710 milhões, entre Blazers e picapes S-10. São 250 mil unidades por 10 anos. Mais algum desafio para alguém aparentemente bem-sucedido, com um filho de 27 anos médico-cirurgião e uma filha de 24 engenheira civil? “Ah, não posso revelar. A concorrência está atenta” — desconversa. Ponto para a GM.

Novo Brasil sob rodas

A abertura comercial e a descentralização das plantas automotivas atingiram o Grande ABC na alma. Fábricas erguidas na década de 50, desatualizadas em métodos de gestão, em processos de produção e com modelos de veículos antigos, colocaram a região no fio da navalha. Só restou uma forma de passar para o primeiro time: reestruturar-se sem refresco.

O saldo dolorido foram as 25 mil vagas diretas que viraram pó só nas montadoras do Grande ABC de 1990 a 1998. Multiplicando-se o número pelos quatro a cinco empregos diretos gerados no resto da cadeia, tem-se um retrato do estrago. Dessa fricção nasceu e ainda brota, entretanto, uma geração mais moderna de automobilísticas na região.

Em comum, decidiu-se produzir veículos tecnologicamente mais atualizados, com lançamentos simultâneos ou com no máximo um ano de diferença em relação a lançamentos nas matrizes. Com modelos mundiais, é possível ter mercado e escala para competir. Também partiu-se para uma revisão de todos os processos de engenharia e de recursos humanos.

A mão-de-obra que custa entre US$ 10 e US$ 14 a hora no Grande ABC, o dobro das demais localidades, é parcialmente neutralizada com maior grau de automação, com políticas de fornecedores globais em regime de just-in-time e milk-run, além de novo conceito de plantas enxutas e com trabalhadores multifuncionais. Para conjunturas adversas de mercado — uma constante de 1997 para cá –, as fábricas vêm adotando adicionalmente banco de horas, jornadas reduzidas para até três dias por semana e programas quase ininterruptos de demissões voluntárias.

Calcula-se que as seis montadoras da região atendam a 30% do mercado brasileiro que, por volta de 2002, terá 17 automobilísticas em funcionamento. Para dar conta desse cerco, todas despejam investimentos na região.

Volks pela metade

A Volks Anchieta planeja ser metade do que é em espaço físico e quer montar a nova família do carro mundial da marca, conhecido como PQ-24. Em cinco anos vai subtrair mais cinco mil empregos. A unidade abriga o único Centro de Desenvolvimento de Engenharia da América do Sul capaz de criar, projetar e desenvolver um automóvel. De 1997 a 2000, a fábrica está recebendo US$ 200 milhões por ano.

A GM São Caetano foi totalmente reformulada para abrigar o conceito de carro mundial. Vectra e Astra são exemplos mais recentes. Só o Astra injetou ali US$ 350 milhões. A Scania, que centraliza na região todas as operações latinas e tem no Brasil o maior mercado da marca, investiu em 1997 US$ 300 milhões na renovação de produtos com o lançamento da série 4 de caminhões mundiais e na construção de uma fábrica de motores no complexo de São Bernardo. Antes disso, vinha promovendo investimentos anuais de US$ 25 a US$ 30 milhões.

A Ford, que enxergou tardiamente o potencial dos carros populares no Brasil, investiu US$ 1,5 bilhão entre 1995 e 1998 nas linhas do Ka e Fiesta e na picape Courier no complexo do Bairro Taboão. A baixa produtividade de apenas 25 carros/homem/ano também está sendo combatida com cortes drásticos nos quadros, como as 2,8 mil demissões anunciadas em dezembro, 1,2 mil temporariamente revertidas.

A Mercedes transformou a fábrica de eixos da região em modelo de excelência mundial e habilitou-se, em concorrência internacional, a fornecer o eixo do Classe A que está sendo montado em Juiz de Fora (MG). No período 1998/2000 São Bernardo deve receber US$ 510 milhões para reformular totalmente os produtos (caminhões e ônibus) até 2003.

A Toyota preferiu continuar em São Bernardo com seu tradicional jipe Bandeirante, mas transformou a fábrica em produtora de peças e componentes para a picape Hilux feita na Argentina e também em centro de importação para todo o Brasil.

Em 1998, a Land Rover/BMW desembarcou nas antigas instalações da Karmann-Ghia para montar a picape Defender em seis versões. Por enquanto faz duas, ocupando 40 pessoas. O investimento é calculado em US$ 158 milhões.



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