O texto que os leitores vão ler abaixo, mais um da série especial 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, é um retrato perfeito do talento de Rafael Guelta. Ele nos deixou em 2015, após muitos anos de luta contra o diabetes.
Rafael Guelta foi um dos maiores talentos do jornalismo do Grande ABC. Atuou na revista LivreMercado durante alguns anos. Quando nos despedimos, convidado que foi para reforçar a assessoria de imprensa da Volkswagen do Brasil, nos abraçamos comovidos. E em disfarçadas lágrimas. Rafael Guelta era jornalismo na alma.
A importância do texto é muito maior do que se imagina.
Primeiro, porque faz uma comunhão de regionalismo pela argamassa e estrutura de uma ponte que liga economia e cultura. Nada surpreendente para um Rafael Guelta esculpido nas artes dos anos mais brilhantes do Grande ABC no setor.
Segundo, porque viveu o suficiente para sentir a frustração de que a ideia central do texto, em forma de Museu da GM e do Museu da Volkswagen, jamais saiu do papel.
Esta é a octogésima-quinta matéria da série que mostra o quanto o Grande ABC do passado influi no Grande ABC do presente. De LivreMercado a CapitalSocial, uma linha de sistemático respeito pela região, em forma de crítica e reflexão.
Região derrapa na
cultura industrial
RAFAEL GUELTA - 05/07/1999
A Capital do Automóvel, título pomposo, derrapou nas curvas da estrada de Santos e despencou no abismo. Meninos do Grande ABC, que deveriam ser loucos sonhadores de automóveis, amam o poder e a velocidade que as máquinas representam, mas quase nada sabem sobre espíritos de lata que juntam e movem metais. Em cada rua da região deveria existir um pequeno designer, um geniozinho inventor de engenhocas futuristas. Mas ninguém, nem indústria, nem autoridades, cuidou nos recentes anos de glória para que automóveis fossem percebidos como meio de embarcar, além de tecnologia, o invisível, a cultura.
Maior polo da indústria automobilística brasileira, com sete plantas e capacidade instalada para um milhão de unidades/ano, o Grande ABC relegou o automóvel a mero produto de consumo, que sai novinho em folha da fábrica, sofre desgastes pela ação do tempo e, corroído pela ferrugem, termina seus dias num cemitério de sucatas.
Com esse procedimento, a região gerou riqueza econômica, farta mão-de-obra para o setor -- também a mais cara -- e expressivo parque industrial ligado à cadeia automotiva, hoje em fase de reconstrução tecnológica. Mas não conseguiu fazer com que suas cidades-dormitórios despertassem para possibilidades mais ousadas, como transformar automóvel em empreendimento turístico e de lazer. Agora, precisa correr contra o tempo se quiser recuperar a cultura que perdeu sem a ter concebido.
Nem a Cidade da Criança, uma quase Disney de Terceiro Mundo cravada em São Bernardo, durante décadas o principal parque do Grande ABC e hoje tão sucata quanto um velho e corroído automóvel, ousou tematizar o principal produto industrial da região no seu lúdico equipamento de diversão.
Crianças de todas as partes do Estado de São Paulo excursionaram às pencas pela cidade mirim, percorreram ruas estreitas num trenzinho, submergiram no submarino Nautilus e viram a paisagem de cima sentadas na cadeirinha do teleférico. Mas nada de o automóvel ter estado ali para ser reinventado pela infância que depois cresceu ajustando parafusos nas linhas de montagem.
Uma iniciativa formalizada em 1996 pela General Motors, com o lançamento da pedra fundamental do Museu GM, em São Caetano, pode abrir as janelas do Grande ABC para novo cenário. A Volkswagen também pensa em criar um museu na fábrica Anchieta, em São Bernardo, anuncia o vice-presidente de Recursos Humanos, Fernando Tadeu Perez.
Os projetos estão em andamento, com disposição das montadoras para produzir cultura. Então não seria este o momento de as autoridades e lideranças da sociedade civil da região se empenharem junto às companhias para que, simultaneamente aos museus, seja criado um parque temático dedicado exclusivamente ao automóvel?
Fernando Tadeu Perez concorda que o Grande ABC falhou em não ter expandido a cultura do automóvel para além dos portões das fábricas e enfatiza que, nesse sentido, os museus preencheriam a lacuna. O vice-presidente da Volkswagen gosta da ideia do parque temático automotivo, mas considera a viabilização complicada por exigir recursos maiores que os de um museu. Na General Motors, a ideia é tão bem aceita que, desde 8 de maio passado, está sendo posta em prática na Europa, com a inauguração do parque temático Opel ao Vivo, em Rüsselsheim, na Alemanha. Isso não quer dizer que a GM pretenda fazer o mesmo em São Caetano.
Alta tecnologia
Subsidiária alemã da poderosíssima General Motors Corporation, a Opel é proprietária do primeiro parque temático de alta tecnologia sobre carros da Europa, construído anexo à fábrica e tendo a linha de montagem como uma das atrações. Produto de investimento de US$ 80 milhões, o parque foi preparado para receber mais de 1,5 milhão de visitantes nos três primeiros anos de existência e estreitar laços da montadora com sua comunidade de clientes e amigos, ao proporcionar passeio informativo pelo mundo do automóvel.
A primeira etapa da visita ao Opel ao Vivo é surpreendente. Trata-se do Passeio pelos Sentidos, no qual pode-se ver, ouvir, sentir e cheirar substâncias e materiais que compõem os automóveis. Fica evidente aos visitantes que veículos são mais do que meios de transporte produzidos com borracha, plástico e aço, pois respondem aos sentidos. A partir dessa experiência, a montadora mostra o esforço que designers e engenheiros precisam desenvolver para compatibilizar materiais para gerar produto final harmonioso.
O passeio seguinte é pela K48, antiga ala localizada bem no centro da planta da fábrica, em Rüsselsheim, para a qual os visitantes são transportados de ônibus. Numa estação de testes eles têm contato com simulação do ciclo de vida completo de peças e motores em alta velocidade. Com fones de ouvido especiais, cujo som é tridimensional, assistem à exibição em três dimensões de testes de impacto. Na terceira etapa, chamada Passeio após o Anoitecer, visitantes circulam em carro elétrico num cenário com efeitos especiais que representam a fábrica da Opel à noite, e participam de caça simulada a espião industrial.
A visita ao parque temático se encerra com passeio em carro elétrico por toda a fábrica. É possível conhecer por inteiro todas as etapas da produção de automóveis e checar sistemas de controle de qualidade. Há também exposição de carros antigos da marca e nos fins de semana a Opel programa robôs para simular o trabalho habitual na linha de montagem, para que mesmo nesses dias os visitantes vejam a fábrica em atividade.
Museu GM
Ainda não há data prevista para a abertura do museu que a General Motors vai construir em São Caetano, em área de 6,5 mil metros quadrados cedida pela Prefeitura, na esquina da Avenida Presidente Kennedy com Rua Tijucussu. Mas já se sabe que o acervo terá mais de 275 mil itens entre fotografias, anúncios publicitários, filmes, catálogos, móveis, utensílios e ferramentas de trabalho utilizadas nos primórdios da indústria, além de coleção de carros antigos. O museu, que não terá característica de parque temático, vai contar a trajetória da GM no Brasil, desde as primeiras instalações no Bairro do Ipiranga, em São Paulo, até a moderna linha de montagem de São Caetano.
Aos olhos do visitante irão saltar de imediato mais de meia centena de automóveis antigos que consolidaram a trajetória e o conceito da marca no mundo inteiro. Entre os modelos, um Cadillac doado pelo empresário paulista Guilherme Afif Domingos, presidente da Companhia Indiana de Seguros e ex-candidato à Presidência da República pelo extinto PL, e um lendário Impala SS, automóvel do tipo Separated Seat, doado pelo empresário Antonio Salerno, dono de concessionária da rede Chevrolet. Também será exposto um Oldsmobile fabricado em 1906 e exemplares de geladeiras da marca Frigidaire, cuja produção integrou no passado as atividades industriais da General Motors Corporation.
A GM tem três objetivos imediatos com a instalação do museu em São Caetano, cujo investimento inicial foi estimado em US$ 5 milhões: constituir espaço cultural de difusão da indústria automobilística; proporcionar centro de estudos e pesquisas para escolas e universidades; e gerar atração turística no Grande ABC. Para se integrar à comunidade empresarial da região, o prédio terá Centro de Convenções que será disponibilizado para todos os tipos de eventos.
Quanto ao museu da Volkswagen, o vice-presidente Fernando Tadeu Perez diz que está ainda em fase embrionária. "A crise econômica recente fez com que adiássemos um pouco o plano. Com a situação normalizada, voltaremos aos estudos" -- garante. O executivo enfatiza que o museu será dedicado exclusivamente à marca Volkswagen.
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