Na edição de julho de 1999 a revista LivreMercado saiu de novo a campo para combater o triunfalismo de quem pretendia vender ilusão à sociedade consumidora de informação.
Uma das características editoriais daquela que foi durante duas décadas a melhor revista regional do País era acompanhar atentamente o andar da carruagem econômica do Grande ABC. E o fazia com independência e desprezo aos profanadores da verdade dos fatos.
Esta é a octogésima-nona matéria da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, representado pelos 19 anos de LivreMercado e os também 19 anos de CapitalSocial.
Perdemos muito
nos últimos anos
DANIEL LIMA - 05/07/1999
Capital econômica do Grande ABC, responsável por 45% do PIB (Produto Interno Bruto) regional, São Bernardo continua perdendo indústrias em números absolutos e também segue acumulando baixas de consumo de energia elétrica industrial. Essa realidade, entretanto, ainda não foi detectada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura. Pior do que isso: o secretário Fernando Longo chega a afirmar que o Município está crescendo industrialmente. Inexistem dados que sustentem o discurso do executivo público.
Um único dado aniquila a imprecisão estatística divulgada pelo representante da Prefeitura: o consumo de energia elétrica industrial de São Bernardo em 1990, início de forte recessão econômica no País (quando o PIB caiu 4,4%), e do ano passado (quando o PIB cresceu 0,5%), sofreu queda de 7,43%. Nesse período o PIB nacional cresceu 15,20%.
No vale de 1990, as indústrias de São Bernardo consumiram 1.802.304 MWh de energia elétrica, contra 1.668.995 do estável 1998. O contraste macroeconômico já seria suficiente para provocar preocupações. Afinal, a lógica indicaria que uma fase de refluxo tivesse a contraposição de reação no consumo de energia elétrica industrial num período em que a indústria automotiva, base da economia de São Bernardo, apresentou crescimento 50% em relação a 1990.
Tudo indica que os números deste ano da Secretaria de Energia do Estado de São Paulo serão mais inquietantes devido ao tombo de produção de veículos por causa da crise financeira na Rússia no final do ano passado e dos impactos da desvalorização do Real no começo deste ano.
A diferença entre o consumo de energia elétrica industrial em São Bernardo nos 12 meses de 1990 e em período semelhante do ano passado pode ser melhor explicada com o dimensionamento das perdas.
São 133 mil MWh a menos em 1998. Isso significa queda equivalente a quase o dobro do consumo de energia elétrica industrial registrado por Ribeirão Pires (74.999 MWh) no ano passado, também segundo dados da Secretaria Estadual de Energia.
Para que o entendimento seja ainda mais claro e contundente, um referencial ainda mais preocupante: o insumo energético de Ribeirão Pires corresponde a 350 unidades industriais do Município, o que indica que as perdas de São Bernardo entre um ano de recessão e um ano de plena produção automotiva atingiriam algo equivalente a 620 indústrias do perfil do parque produtivo de Ribeirão Pires.
Suposto crescimento
Num artigo para o Diário do Grande ABC de 15 de junho último, o secretário municipal Fernando Longo deixa evidenciado o interesse de propagar o suposto crescimento industrial de São Bernardo: "O fato de, entre janeiro de 1997 e julho de 1998, São Bernardo ter registrado a abertura de 147 novas indústrias vem demonstrar não ser verdadeira a mística de que as empresas estão indo da região e ser positiva a política de emprego adotada, com a atração de novas empresas, preferencialmente as criadoras de emprego" -- escreveu o secretário.
É provável que Fernando Longo tenha se utilizado apenas de uma face da moeda econômica para enaltecer o suposto novo surto de industrialização de São Bernardo. Deve ter contabilizado apenas eventual criação de novos empreendimentos, situação própria da dinâmica da livre-iniciativa, principalmente numa região em que a terceirização ainda ganha fôlego.
Como se sabe, as indústrias dos mais diversos tamanhos cortam trabalhadores para reduzir custos e ganhar competitividade e muitas vezes contratam ex-funcionários como fornecedores. Fernando Longo só se esqueceu ou não teve acesso ao outro lado da moeda -- o dramático desaparecimento de pequenos e mais recentes negócios, além da evasão de empreendimentos mais antigos. A EMS, do Energil C, é o caso mais recente.
Os números da Secretaria Estadual de Energia são inapeláveis simplesmente porque nenhuma empresa industrial funciona sem esse insumo básico de produção. Muitas pequenas indústrias que desaparecem do universo da produção ainda existem formalmente nas estatísticas da burocracia dos municípios e do Estado porque não é obrigatório dar baixa após o encerramento de atividades. Provavelmente seja essa a fonte de análise do secretário de Desenvolvimento Econômico de São Bernardo.
Com a Secretaria Estadual de Energia Elétrica a situação é outra, pois invade o mundo da realidade: empresas que desaparecem na prática são imediatamente desligadas do poste de luz e do cadastro de clientes das concessionárias de energia elétrica.
Queda profunda
Entre dezembro de 1997 e dezembro de 1998, período semelhante em relação ao divulgado por Fernando Longo, São Bernardo apresentou saldo negativo de 17 unidades industriais. Mesmo com a avalanche de terceirizações. Se a comparação for mais elástica, entre dezembro de 1990 e dezembro de 1998, a diferença para menos é de 35 unidades.
Como se observa, a simples enunciação quantitativa de unidades industriais não qualifica o universo de perdas, porque o fator terceirização maquia resultados.
Uma grande ou média empresa que desativou a produção na região gerou dezenas de pequenos negócios industriais dirigidos por ex-trabalhadores. Em números absolutos, infla-se o universo de negócios no setor e deturpa-se o quadro de esvaziamento industrial.
Em todo o Grande ABC, o saldo negativo nesta década é de 216 indústrias. Esse número é a diferença entre as unidades existentes em dezembro de 1990 (6.516) e em dezembro do ano passado (6.300). Embora seja 10 vezes maior que o modesto contingente de indústrias atuais de Rio Grande da Serra (26 unidades), 216 indústrias a menos não expressam a realidade prática, que pode ser melhor mensurada pelo consumo regional de energia elétrica industrial no mesmo período: caiu 8,6%.
Esse percentual é traduzido em perda de 467 mil MWh de energia elétrica industrial entre 1990 e 1998. Esse total equivale -- a comparação é terrível -- a todo o consumo de energia elétrica industrial de São Caetano somado ao dobro do consumo de energia elétrica industrial de Ribeirão Pires durante todo o ano passado.
Mal metropolitano
Os tropeços no consumo de energia elétrica industrial não são fenômeno exclusivamente do Grande ABC. Toda a Região Metropolitana de São Paulo sofre com a descentralização da produção em direção ao Interior. Dados recentes da Secretaria Estadual de Energia confirmam o esvaziamento industrial da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo). O consumo total da chamada classe industrial sofreu rebaixamento de 10,4% entre 1995 e 1998. No Grande ABC, no mesmo período, a queda foi de 9,4%. A realidade no Interior é diferente, com aumento de 5,88% de utilização de energia elétrica industrial.
O crescimento dos negócios no setor terciário (comércio e serviços) é a contraface da debandada das fábricas do Grande ABC e da Região Metropolitana de São Paulo, mas não pode ser compreendido como compensação de perdas. Afinal, além de tradicional base desenvolvimentista da região, a indústria ainda não tem a parceria de um setor de serviços de profunda inserção tecnológica. Proliferaram, sim, pequenos e micronegócios à esteira do desemprego industrial.
Além disso, durante o período de 1990 a 1998 o Grande ABC recebeu série de investimentos comerciais de redes de shopping centers, supermercados, hipermercados e franquias famosas que ocuparam espaços geográficos estratégicos. Em muitos casos, eliminaram a concorrência dos pequenos negócios ou os lançaram meramente à subsistência.
Também entre 1990 e 1998, ainda segundo dados da Secretaria Estadual de Energia, o número de empresas do setor terciário no Grande ABC saltou de 38.252 unidades para 56.300; isto é, um avanço de 47%. Dados de prefeituras, como no caso do cadastro de indústrias brandido pelo secretário Fernando Longo, estão defasados porque não captam com exatidão o grau de mortalidade das empresas comerciais e de serviços.
Por isso é comum a divulgação de contingentes mais volumosos em relação às ligações de energia elétrica controladas pela Eletropaulo Metropolitana, concessionária que atende à RMSP. O terciário do Grande ABC consumiu durante todo o ano passado exatamente o dobro de energia elétrica de 1990: foram 858 mil MWh, contra 429.318.
Também nas áreas de comércio e serviços as estatísticas da Prefeitura de São Bernardo estão distanciadas da realidade. Por meio de release, a Secretaria dirigida por Fernando Longo anunciou no final do mês passado que 13.041 empresas comerciais e de serviços foram criadas em São Bernardo entre janeiro de 1997 a maio deste ano, contra o desaparecimento de apenas 484. Os cadastros da Eletropaulo Metropolitana contabilizavam números bem mais modestos: em dezembro do ano passado constavam apenas 16.624 unidades ativas no universo de empreendedores dos dois setores no Município.
A Secretaria Estadual de Energia tem estudos sobre o salto do consumo do setor terciário no período de 1995 e 1998. Na Região Metropolitana de São Paulo o avanço é de 37,6%, enquanto no Interior atingiu 38,8%. No mesmo período o Grande ABC acumulou crescimento semelhante de consumo de energia do comércio e dos serviços de 37,2% -- eram 625.384 MWh em 1995 e foram 858 mil MWh em 1998.
Entrelaçando os dados de consumo de energia elétrica industrial e do setor terciário, verifica-se que o Interior de São Paulo expõe a mesma característica do Grande ABC e da Grande São Paulo nas áreas de comércio e serviços, mas está em vantagem no setor industrial, que viveu período de subida, enquanto tanto os municípios da região quanto os da RMSP sofreram maiores impactos de perdas.
Queda de ICMS
Se estudos relativos ao consumo de energia elétrica não fossem suficientes para revelar as fraturas expostas da economia do Grande ABC, há dados sobre a participação da região na redistribuição do ICMS (Imposto Sobre Mercadorias e Serviços) que aprofundam ainda mais a análise retrospectiva.
Entre 1982 e 1998, o Grande ABC perdeu participação relativa de 17,5% no ICMS repassado pelo governo do Estado. Se o índice por si só provoca inquietação, o acréscimo populacional no período projeta as perdas para 48% por habitante em menos de duas décadas.
A origem dos estilhaços econômicos de reflexos sociais está no Valor Adicionado, cuja formulação é prevalecente no ICMS, com 76% de participação na definição dos índices. Valor Adicionado é a diferença de valor entre a saída e a entrada de mercadorias, serviços de transportes e de comunicação. O peso da indústria é vital porque é a atividade que gera mais riquezas e agrega mais valor à economia.
O Índice de Participação do Grande ABC no conjunto de distribuição do ICMS do Estado é de 10,1680%, contra 11,2099% do ano passado. A diferença representa 9,07% de declínio. Considerando-se que o PIB paulista no conjunto da Federação é de US$ 284 bilhões, o PIB do Grande ABC atinge US$ 29 bilhões, ou 2,6% do PIB brasileiro.
São Bernardo acusa queda de 8,7% numa comparação ponta a ponta entre 1982 e 1998, já que de 4,9163% recuou para 4,2941%. Também nesse caso os dois períodos opõem situações distintas, já que no início dos anos 80 o País vivia em pânico por causa da crise internacional de petróleo, contra cenário de produção intensa do setor automotivo nos primeiros oito meses do ano passado.
Santo André, menos dependente de sucessos e insucessos do setor automotivo, é o Município do Grande ABC que mais sofreu com a descentralização da matriz industrial: ao baixar de 3,1540% registrados em 1982 para 1,6146% no ano passado, acusou queda de 55%.
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