Em agosto de 1999 o jornalista André Marcel de Lima mostrou em reportagem na revista LivreMercado o que a Volkswagen do Brasil inovava para aproximar capital e trabalho. Chamou para tanto reforço considerável: o programa Coração Valente. Foi montada uma estrutura para transformar em lúdico o que era e continua a ser essencialmente um mandamento sagrado do empreendedorismo privado: competitividade.
Esta é a nonagésima-terceira matéria da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, uma junção da revista LivreMercado e de CapitalSocial.
Cavaleiros, erguei
vossas espadas!
ANDRE MARCEL DE LIMA - 05/08/1999
É difícil encontrar um setor econômico no qual a competição seja branda. A disputa por lucros e consumidores é acirradíssima nos terrenos mais diversos -- dos eletroeletrônicos às franquias de alimentação --, mas é praticamente impossível apontar atividade na qual o espaço seja mais restrito e combativo do que a arena global da indústria automobilística.
Das 20 grandes montadoras em atividade, especialistas estimam que restarão apenas quatro ou cinco em poucos anos. O aspecto irônico é que a alta performance qualitativa, loucamente perseguida por norte-americanos e japoneses na década de 80 como vantagem competitiva em relevo aos olhos dos consumidores, virou apenas detalhe. O que passa a fazer diferença entre vencedores e vencidos na batalha automotiva responde pelo nome de escala de produção.
Em velocidade cada vez maior, as montadoras gigantes engolem as de menor porte, que, mesmo sendo reconhecidamente qualificadas e competentes, tornam-se incapazes de disputar com megacorporações cujos custos são diluídos em volumes maiores de produção e, por conseguinte, podem oferecer veículos por preços mais em conta para o consumidor. É um desafio e tanto, portanto, permanecer firme no mercado automobilístico global.
Comprometimento total
Muito do sucesso ou fracasso das montadoras vai depender da capacidade de compartilhar com funcionários a complexidade da conjuntura do setor. É imprescindível que a realidade seja conhecida por toda a força de trabalho. Só com visão cristalina do que está à volta é possível engendrar coesão e comprometimento indispensáveis para superar desafios, por mais que a realidade se mostre nebulosa e por mais que o gigantismo de milhares de funcionários desencoraje ações de conscientização coletiva.
Em outras palavras, é questão de vida ou morte, literalmente, que todos os funcionários sejam convocados para os desafios da globalização -- do mais simples ferramenteiro ao mais bem preparado executivo.
Por esse ângulo, a Volkswagen do Brasil tem tudo para ter futuro à altura do histórico de sucesso iniciado em 23 de março de 1953 quando, em armazém alugado no Ipiranga, em São Paulo, iniciou a montagem dos primeiros fuscas com peças importadas da Alemanha, contando com 12 empregados.
A Volkswagen do Brasil de cinco plantas fabris e 371.880 unidades vendidas em 1998 não quer nem pensar em perder a liderança do mercado brasileiro, com 30,2% de participação. A empresa não admite enfraquecer o braço alemão no mercado automobilístico mais promissor do planeta, como pode ser definido o território latino-americano levando-se em conta a rarefeita relação de automóveis por habitante.
Compartilhando responsabilidade
Em 1998, a Volkswagen vendeu 4,5 milhões de automóveis em todo o mundo, volume que a coloca na terceira posição entre as maiores montadoras mundiais com 11,4% de participação global, ao lado da japonesa Toyota. A Volks no Brasil responde por 10% da produção do grupo.
Por isso, buscou maneira exemplar de compartilhar com 28 mil funcionários a posição atual diante dos desafios que vêm pela frente: o universo lúdico do teatro interativo por intermédio do programa Coração Valente, que custou R$ 2,5 milhões e vai se somar aos R$ 10 milhões que a montadora investe anualmente em treinamento.
O programa de quatro horas de duração já envolveu mais de sete mil funcionários da planta de Taubaté, está em andamento na fábrica da Via Anchieta -- mais da metade dos 19 mil funcionários já participou -- e terá continuidade nas plantas de Resende (Rio de Janeiro), São Carlos (Interior de São Paulo) e São José dos Pinhais (na Grande Curitiba). No conjunto, vai envolver cerca de 30 mil colaboradores, entre funcionários e terceirizados, até setembro próximo.
Homenageado em fins do mês passado como um dos 23 vencedores do Top de RH99, o prêmio de Recursos Humanos mais cobiçado do País, promovido anualmente pela ADVB (Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing o Brasil) e pela ABRH (Associação Brasileira de Recursos Humanos), o Coração Valente sai do lugar-comum dos programas motivacionais tanto pela abrangência como pela criatividade e sensibilidade.
Carga emocional
Valores pessoais atemporais como ética, respeito mútuo, honestidade e solidariedade, além de competências indispensáveis no mercado moderno como multifuncionalidade, trabalho em equipe, comunicação, qualidade total e aperfeiçoamento contínuo, são reforçados por meio da lenda medieval do Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, contada dentro de um castelo montado nas instalações da Volks/Anchieta.
A carga emocional transmitida aos participantes é tão densa, as mensagens atingem tão fundo a realidade de cada um, que muitos deixam o castelo com olhos lacrimejantes. "Enquanto os processos e a estrutura organizacional estão sendo adequados aos padrões de competitividade global, investimos também no lado humano da empresa" -- afirma Fernando Tadeu Perez, vice-presidente de Recursos Humanos da Volkswagen.
O castelo de 450 metros quadrados montado em frente à Ala 13 da planta da Volks/Anchieta recebe 450 visitantes diariamente, em três horários. Um dos maiores méritos do programa Coração Valente está na capacidade de desfazer mitos perpetuados em torno da relação capital-trabalho, utilizando-se da fábula do Rei Artur como linguagem para potencializar o comprometimento dos funcionários.
A ideia de que indústrias automobilísticas e trabalhadores dificilmente convergem em interesses comuns, de que as montadoras só enxergam margens de lucros e dão de ombros para o bem-estar dos funcionários, da mesma maneira como se diz que trabalhadores só pensam em benefícios próprios sem ter consciência da realidade da organização em contexto, como se as duas partes ocupassem as extremidades de um míope cabo de guerra, é sistematicamente alvejada na programação.
No mesmo barco
O Coração Valente lembra que Volkswagen e funcionários estão rigorosamente no mesmo barco em meio à maré alta da competição global. E que a diferença entre naufragar e ancorar em porto seguro depende justamente de todos remarem na mesma direção. Em outras palavras: é preciso que todos estejam envolvidos com a competitividade da empresa para que bons salários e benefícios não sejam comprometidos por retrocesso de produção e vendas. As considerações do Rei Artur no programa não deixam a menor dúvida sobre isso. "O Brasil ocupa a oitava posição no ranking de produção da indústria automobilística. Em 2006, poderá ser o quarto colocado, com potencial estimado em 4,5 milhões de unidades. Esse incremento se dará sobretudo por conta de novas empresas. Entre o ano 2000 e 2002 serão 18 montadoras atuando no Brasil. Tecnologia avançada todas terão. O que vai fazer diferença nesse mercado ultracompetitivo será o homem. Se não gosta do produto, o cliente não compra. Se não compra nós não produzimos, e se nós não produzimos...".
Ao mesmo tempo em que enfatiza que a responsabilidade pelo destino da empresa pertence a todos, o Programa Coração Valente injeta ânimo e confiança nos funcionários por intermédio de analogias tecidas entre a Volkswagen e o Reino de Camelot.
Da mesma forma como a sina de Camelot comandada pelo Rei Artur era lutar bravamente contra adversários, o objetivo da Volkswagen do Brasil é continuar sendo a companhia mais competitiva do setor, com a mesma garra e comprometimento com que Cavaleiros da Távola Redonda defendiam princípios como bondade, justiça e nobreza de espírito.
Tudo muito real
Para reforçar esse clima, os funcionários assistem à apresentação vestidos com indumentária da época e brindam com taças que simbolizam o Santo Graal. "Comunidade sadia, como Camelot, não é aquela que não passa por crises, mas a que passa por crises e consegue vencê-las" -- diz o Rei Artur, personagem interpretado pelos consultores da CEI-T&D Gilberto Peres e Mauro Vieira da Silva.
Além de insuflar competitividade, o Coração Valente procura resgatar nos recursos humanos os valores e o orgulho em pertencer à Volkswagen, abalados após o casamento com a Ford sob a holding Autolatina. Para tanto, exibem-se em telão os capítulos mais importantes da história da empresa.
Recordam-se os sucessos da Kombi e do Fusca, veículos que praticamente inauguraram o setor automobilístico no Brasil. Mostram-se que o Gol completou 12 anos consecutivos como veículo mais vendido do País, com 272.301 unidades, e que a Volkswagen do Brasil foi a primeira fabricante de automóveis comerciais leves e veículos pesados da América do Sul a receber certificação ISO 9001, em junho de 1996, entre outras passagens. Tudo com música contagiante de fundo, cenário da época e efeitos especiais de luz.
Quatro torres
A apresentação do Reino de Camelot pelo Rei Artur é apenas a primeira de três etapas que compõem o Coração Valente. Após conhecer os desafios mercadológicos e recordar momentos áureos da corporação, os funcionários dirigem-se a quatro salas que representam os quatro elementos vitais -- as torres do fogo, do ar, da água e da terra. Divididos em grupos, os trabalhadores passam cerca de 30 minutos em cada espaço, em atividades interativas que os ajudam a se autoconhecer. São atividades consideradas fundamentais pelos executivos de recursos humanos da Volkswagen, que acreditam no desenvolvimento humano como pré-requisito à eficiência profissional.
Na torre da terra, elemento que simboliza a realidade concreta e palpável, os funcionários são estimulados a refletir sobre a situação pessoal e sobre a conjuntura na qual a Volks está inserida. A deusa da terra, como é denominada a líder do espaço, chama atenção para a necessidade de estarem preparados para os desafios pessoais e profissionais. "Se tiver uma casca de banana no chão, vamos pisar, cair no chão e nos machucar? Ou vamos ficar alertas e nos prevenir?" -- diz. "O passado tem importância, mas já não existe mais. Já o futuro depende única e exclusivamente do momento presente. Ou somos participantes ativos dos processos de mudança ou não somos nada, porque o papel de espectador ficou para trás" -- completa.
Depois de refletir em conjunto, os participantes moldam com argila algo que simbolize a realidade de cada grupo. Um ponto de interrogação sinalizando dúvida, uma borboleta mostrando transformação e um homenzinho partindo um muro para expressar quebra de obstáculos e paradigmas são alguns dos resultados.
Alegria e perseverança
Na torre da água, elemento que simboliza emoções e sentimentos, os funcionários refletem sobre as características saudáveis que percebem dentro da empresa e, com aquarelas, pintam imagens que expressam os traços pessoais de personalidade que pretendem manter, recuperar ou aperfeiçoar. Resgatar a alegria e manter a perseverança é uma das respostas mais comuns.
Na torre do fogo, os funcionários são motivados a admitir características pessoais das quais não gostam, escrevê-las em pedaços de papel e queimá-las a seguir. "No momento em que se está queimando, é preciso se concentrar no sentimento oposto. Assim, se desejamos queimar a preguiça, é preciso introjetar sentimentos de vontade e disposição" -- ensina a deusa da torre do fogo. "Toda mudança desabrocha de dentro para fora. Lembrem-se de que nosso primeiro compromisso é conosco mesmos" -- completa.
Na torre do ar, elemento que simboliza o combustível das realizações humanas, os funcionários refletem sobre as vantagens de trabalhar na Volkswagen e, com base no que foi discutido, criam gritos de guerra. Salário e benefícios são alguns dos atrativos destacados por quem trabalha na maior empresa privada do País, com faturamento superior a US$ 8 bilhões em 1997.
Depois de passar pelas quatro torres, os participantes retornam ao Reino de Camelot para ouvir novas mensagens positivistas do Rei Artur. Dessa vez, as mensagens são personalizadas. Foram formuladas com base nos sentimentos expressados pelos participantes e colhidas pelas quatro deusas no interior das torres.
Nobre e puro
Aí está o caráter interativo do programa e a garantia de que um Coração Valente nunca é igual a outro. Os grupos ainda expõem os gritos de guerra criados na torre do ar e, no final, um funcionário é escolhido para retirar a espada Excalibur encravada numa rocha. Como reza a lenda arturiana, a espada só pode ser retirada por alguém que seja verdadeiramente nobre e puro de espírito.
Quando o representante dos funcionários ergue a Excalibur -- depois de tentativas frustradas de figurantes caracterizados como representantes do mal -- todos aplaudem entusiasticamente. Na saída os participantes recebem brindes e um pergaminho contendo o credo do profissional Coração Valente, no qual se encontram mandamentos como: é na força de trabalho que se distingue a nobreza entre fracos e fortes; não se esqueça de sempre cultivar a verdade em relação aos outros e também em relação a você mesmo; não permaneça preso no passado nem em recordações tristes; procure ser humilde em todas as circunstâncias, entre outros.
Executivos de recursos humanos da Volkswagen comentam sensibilizados sobre funcionários que entregaram o pergaminho aos próprios filhos pedindo que se orientassem pelos princípios ali escritos.
Coração de Líder
A tradução da realidade hostil do mercado para uma linguagem lúdica carregada de simbolismos emocionais explica muito do êxito do Coração Valente, expresso não apenas no cobiçado Prêmio Top de RH99 mas também na pesquisa realizada com os sete mil funcionários da planta de Taubaté. O levantamento demonstrou resultado positivo nos quesitos sobre imagem da empresa, confiança, expectativas futuras, motivação, predisposição para trabalho em equipe, companheirismo, comprometimento e identificação.
Mas tudo poderia ter ido por água abaixo se a Volkswagen não tivesse se preocupado especialmente com funcionários que ocupam o topo da hierarquia organizacional e que, por isso mesmo, têm o poder de disseminar ou reter novos paradigmas e processos de mudança.
É por isso que o Coração Valente está entrelaçado com o Coração de Líder, seminário de dois dias realizado em hotéis no qual diretores, gerentes, supervisores, encarregados e líderes de seção conhecem com antecedência e se preparam para o programa motivacional pelo qual os subordinados passarão, inclusive eles próprios. "Os líderes são orientados para observar suas posturas diante da equipe e ficar atentos às mudanças dos funcionários, reforçando na prática, os conceitos assimilados pela equipe durante o Coração Valente. Para que uma empresa alcance resultados após os treinamentos, nada melhor do que começar pelos líderes a mudança desejada" -- explica a socióloga Nirma Sônia Gaiotto, diretora da CEI-T&D (Central de Especialistas e Instrutores de Treinamento e Desenvolvimento), empresa de São Caetano especializada em consultoria e treinamento que criou com exclusividade para a Volkswagen o projeto Coração Valente.
Aproximação vencedora
Indício de que o Coração de Líder atingiu o alvo é que supervisores, diretores e encarregados decidiram entregar pessoalmente os convites do Coração Valente aos subordinados e assistir com eles o evento. Estão empenhados também em manter, nos relacionamentos interpessoais do dia-a-dia, o espírito de solidariedade e perseverança aprendido na experiência de quatro horas com o Rei Artur.
Se a Excalibur é privilégio do homem nobre de princípios e de espírito, a sobrevivência no mercado automobilístico está cada vez mais restrita aos profissionais preparados para essa missão. Uma profecia que a Volkswagen compartilha com todos os seus cavaleiros.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)