Imprensa

30ANOS: uma Vera Cruz
que jamais virou realidade

DANIEL LIMA - 07/08/2020

O sonho de recuperar a história da Vera Cruz, em São Bernardo, e, ao mesmo, embarcar no futuro de grandes produções, ancorou a Reportagem de Capa da revista LivreMercado de novembro de 1999. Não seria a primeira nem a última vez que a publicação sempre inquieta com o futuro da região concedia espaço à licença poética de preparar um tapete de otimismo quando um grande projeto era apresentado. Sobremodo se o grande projeto incorporava instituições importantes, no caso a Prefeitura de São Bernardo e o governo do Estado de São Paulo. 

Esta é a centésima-sexta edição da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, iniciado em 1990 com a revista LivreMercado e estendido até estes dias com CapitalSocial.  

Os textos de Malu Marcoccia e do saudoso Rafael Guelta são imperdíveis. O futuro desenhado e o passado revisitado da Vera Cruz caminham no mesmo sentido – de confiança da publicação nas promessas de recuperação do Grande ABC. Pena que tudo tenha se tornado apenas uma proposta.  

Vem aí a Nova Vera Cruz,

um projeto revolucionário 

  MALU MARCOCCIA - 05/11/1999 

Esqueça boa parte do que você conhece sobre cinema. Pelo menos de cinema brasileiro, que ainda improvisa imagens externas de imensos cenários, faz tomadas em galpões que nada lembram os fantásticos estúdios de Hollywood, usa canhões de luz que se assemelham a jurássicos holofotes e ainda empacota tudo em latas e latas de filmes. Esqueça sobretudo a pós-produção cinematográfica, com demoradas etapas de montagem, sonorização e copiagem feitas de forma isolada, muitas vezes em laboratórios distintos e com equipamentos nem sempre compatíveis. Particularmente na pós-produção, uma revolução está acontecendo a partir da tecnologia digital. 

Guarde bem este nome: Babelsberg. É na experiência desse complexo cultural alemão, alicerçado como moderna linha de produção em série de tudo o que se faz hoje em som e imagem, que a Nova Vera Cruz pretende se mirar.  

Ao completar neste 4 de novembro 50 anos de fundação, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz está rebatizada de Projeto Nova Vera Cruz com intuito de tirar a sétima arte nacional definitivamente do limbo e dar-lhe roupagem empresarial que siga modelo de eficiência. 

Isso significa grande escala de produção, o que otimiza custos e barateia preços, além de produtividade superlativa com adoção de tecnologias de vanguarda. 

Revolução mundial  

A produção audiovisual no mundo passa pela chamada revolução fototônica — assim definidas as transformações com a chegada de tecnologias digitais para captar, reproduzir e editar imagens e sons. Esse conceito também exprime a nova síntese que incorpora computador, telefone e TV como meios de difusão. Isso permite prever que em breve a imagem digitalizada poderá ser transmitida por satélite e ser vista em telas de cristal líquido de salas de cinema, do computador via Internet, da televisão de casa e — pasmem — do mostrador do tamanho de um relógio, entre outras janelas de veiculação. 

Seria a versão 3001 de Uma Odisséia no Espaço? O futuro não está tão distante e o produto filme — cinematográfico ou televisivo — já se tornou commodity valorizadíssima. “A grande compactação dos equipamentos nos levou à revolução digital. É possível jogar todas as imagens em computadores e trabalhar infinidade de efeitos visuais e sonoros para um acabamento técnico perfeito. Pode-se multiplicar cenários e uma tomada com cinco mil figurantes, por exemplo, em uma cena com 50 mil pessoas. Depois, jogar tudo isso na hipermídia que se está criando com a junção de todos os meios de comunicação” — empolga-se o coordenador de audiovisual da TV Cultura, Ivan Ísola. 

A TV Cultura faz parte da Fundação Padre Anchieta, entidade de direito privado mantida pelo Estado de São Paulo e uma das pernas de apoio da Nova Vera Cruz ao lado da Prefeitura de São Bernardo e da Secretaria Estadual da Cultura. 

Tecnologia difundida  

A tecnologia dos computadores que vem substituindo slides e películas, ao mesmo tempo em que simplifica as etapas de produção, de montagem e de finalização de obras audiovisuais, abre suas possibilidades de difusão comercial. Internet, canais de televisão aberta ou pay-per-view (pague-para-ver), telas panorâmicas de cinema e também de aparelhos de TV que as estão incorporando, além de DVD (videocassete em formato CD), são alguns dos meios mais recentes de se ver produções artísticas e culturais. 

Ao citar a rapidez com que as novas maravilhas tecnológicas têm introduzido novos produtos e a infinidade de diferentes canais de veiculação cinematográfica e televisiva, Ísola quer chegar a um só ponto: a Vera Cruz tem tudo para ser uma grande montadora de sonhos e de entretenimento com perspectivas financeiras autônomas, isto é, autossustentável e rentável.  

Significa dizer que a cultura deve e pode sair do colo do governo, que financia 99% dos projetos brasileiros, e se transformar num produto comercial custeado pela livre iniciativa com investimentos diretos, não apenas com incentivos fiscais. 

Arte e lucro não são excludentes, pelo menos na indústria do audiovisual, afiança Ivan Ísola após conhecer recentemente a experiência que vem sendo testada há dois anos com a privatização do Studio Babelsberg e que coincide com a fórmula que se pretende pôr em prática na Nova Vera Cruz. 

Romantismo e dinheiro 

A paixão pela arte na sua essência, que caracterizou o romantismo de produções muitas vezes perdulárias dos 18 longas-metragens rodados na fugaz história do maior estúdio de cinema da América do Sul, pode ser ressuscitada com uma utilidade também comercial. “A Nova Vera Cruz é projeto para dar lucro institucional e financeiro também” — afirma Ísola, que dentro dos 50 anos de idade contabiliza 10 trabalhando na Cinecitá italiana com o mito Roberto Rossellini, atuou na RAI (Rádio e Televisão da Itália) e dirigiu no Brasil, entre 1983 e 1987, o MIS (Museu da Imagem e do Som). 

Virar a página da Vera Cruz não apenas como tributo ao berço do cinema brasileiro, mas como polo animador de negócios significa, justamente, não correr o risco de fazer voltar à tona um estúdio agonizante e com artistas de pires na mão. Mais do que um símbolo do cinema restaurado, o que Ivan Ísola imagina para a Nova Vera Cruz é um templo tecnológico a serviço da arte. 

Será um espaço plural, idealizado a partir do avanço assombroso da tecnologia: produção própria ou em parceria de programas televisivos e de curtas e longas metragens, locação de espaços para filmagens, montagem própria ou terceirizada de documentários, filmes institucionais e publicitários, laboratórios de efeitos especiais com técnicas para remixagem de fitas, músicas e dublagem, colorização de fotos e imagens, estúdio para produção de histórias em quadrinhos, uma cidade cenográfica e um parque temático, além de centro cultural com teatro, cinema, área de convivência e para exposições culturais. 

Filmagens brotam  

Se estivesse pronta, a Nova Vera Cruz certamente teria sido o set de filmagem e montagem do Castelo Rá-Tim-Bum, uma produção da AF Cinema e Vídeo orçada em R$ 7,6 milhões que chega aos cinemas nas férias de janeiro. Só os cenários erguidos como um grande acampamento no km 27 da Via Anhanguera, no Município de Cajamar, geraram 150 empregos entre abril e setembro, durante as filmagens. 

A fase de finalização, no mês passado, foi toda feita na França, onde modernos estúdios acoplaram efeitos especiais e as músicas definitivas, algo que no Brasil não está disponível de forma simultânea e a custo competitivo. “A locação de um laboratório na França chega a ser 40% mais barata que no Brasil” — calcula Daniel Ramasauskas, da Avant Trailler de São Bernardo, empresa que ajudou a captar cotas de patrocínio para este primeiro filme baseado na série da TV Cultura, que custeou uma parte por meio do PIC-TV (Projeto de Integração Cinema-Televisão). 

Licitação internacional 

Pela experiência dos estúdios de Babelsberg, nada impede que um patrimônio cultural tenha atividade comercial e se torne ponto de atração de investimentos públicos e privados. Na paisagem da antiga Vera Cruz de São Bernardo não vão surgir apenas estúdios reformados, mas um complexo cultural que ofereça combinação de produtos que correspondam ao mercado. 

A ideia é mudar a mão de direção da clássica atitude de patrocinadora ou apoiadora cultural da iniciativa privada, para que assuma o papel de sócia-investidora. “Não quero ser visto como vendedor de incentivos fiscais para a cultura. Quero trazer parceiros que coloquem dinheiro aqui para uso próprio. Pode ser um operador multimídia que queira utilizar serviços de sonorização ou podem ser coprodutores dos audiovisuais que faremos. Quero empresas associadas aos projetos, que vão ganhar conforme a bilheteria dos cinemas e da venda para canais de TV e distribuidoras de vídeo” — expõe Ísola. 

Empresariado participante 

Como o modelo de incentivo cultural no Brasil é limitado — e para muitas empresas está esgotado –, a Nova Vera Cruz vai partir para esquema gerencial, isto é, trazer organizações privadas para também administrar e usar os novos espaços. Os desdobramentos podem ir desde a exploração dos estúdios e dos laboratórios por terceirizados até a privatização de serviços, inclusive com licitações internacionais. “O Estado não precisa de uma locadora de equipamentos nem de um laboratório de revelação, copiagem e digitalização, que podem ser disponibilizados pela livre iniciativa” — exemplifica o coordenador da Nova Vera Cruz. 

Essa é a lógica por trás de negócios como o Studio Babelsberg, que aposta na cultura como produto que enriquece não apenas o conhecimento humano, mas também gera empregos, renda e remuneração às atividades de produção, aquisição, negociação de direitos sobre filmes e um vasto circuito de distribuição por meio de TV, videocassete, multimídia e cinemas. 

Na fábrica de Babelsberg, iniciativa privada e política pública convivem harmonicamente. A primeira com captação e financiamento da infraestrutura que reformulou os estúdios e monta filmes, a segunda com a cessão da área de 118 mil pés (ou 50 mil metros quadrados, algo próximo dos 43 mil da Vera Cruz) pertencente à Prefeitura de Potsdam. Como São Bernardo fez na parceria com o governo do Estado. 

Módulos do organograma  

Sete módulos compõem o organograma dos estúdios alemães: uma holding dedicada à produção de audiovisuais; uma TV Distribution para comprar direitos de distribuição a canais pagos e séries televisivas de canais abertos; um Art Department que faz serviços de arte, figurino e cenografia para co-produções ou obras de terceiros; um Post Production para cuidar de toda a finalização da produção; o Marlene Dietrich Halle, que são os estúdios propriamente ditos de cinema e TV mais a cidade cenográfica; o Fx.Center, um superlaboratório de efeitos especiais em que computadores que trabalham imagem, cor e som são totalmente integrados; e o Film.Park, um parque temático sobre toda a produção feita no Babelsberg. 

Como sensibilizar o empresário brasileiro numa parte tão sensível, o caixa, para dividir a conta de obras audiovisuais com o governo? Mostrando que produções culturais e artísticas são investimentos que voltam, e não meras despesas que podem ser abatidas no Imposto de Renda — responde Ivan Ísola. “Os asiáticos faturam US$ 1 bilhão só com desenhos do tipo Pokemon. Será que não podemos ter uma fatia disso?” — desafia ele sobre a possibilidade de a Nova Vera Cruz explorar vigorosamente o cinema de animação. 

O grupo francês de televisão paga Canal Plus anunciou recentemente planos de formar um estúdio cinematográfico, tal a demanda por filmes. Líder na Europa no segmento de TV paga, com 12,5 milhões de assinantes em 11 países, o Canal Plus financia mais de 90% dos cerca de 180 filmes franceses produzidos a cada ano. Com estúdio, terá seu próprio maná. Só em 1998 os canais franceses de TV a cabo e via satélite (que saltaram de cinco para 50 em uma década) exibiram mais de quatro mil longas-metragens. 

TV e cinema unidos  

A dobradinha televisão-cinema, aliás, é o grande alicerce sobre o qual a Nova Vera Cruz pretende atuar em escala industrial. Na Europa, o crescimento da televisão é considerado a força motriz para a indústria cinematográfica, como mostra o Canal Plus, e é nisso que a TV Cultura-Vera Cruz aposta. A Cultura já passa por processo de digitalização da TV e implantação da TV de alta definição. A partir de 2000 terá câmaras digitais com resolução compatível com a do cinema. Isso permite transferir o produto digital para o filme quando este filme for distribuído para os cinemas convencionais. A televisão analógica tem data prevista para acabar: 2005. 

O mercado potencial que se abre com a fusão cinema-televisão a partir dessas novas tecnologias já foi vislumbrado pela TV Cultura em experiência inédita no Brasil — o PIC-TV (Projeto de Integração Cinema-Televisão). Trata-se de parceria entre Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e Fundação Padre Anchieta para produzir e exibir filmes e séries televisivas. 

Como território onde é feita a metade dos filmes brasileiros e sede de um terço das salas de cinema no País, São Paulo financia uma parte, a iniciativa privada outra — movida por abatimentos de impostos — e o governo federal o restante. Lançado em 1996, o PIC-TV contabiliza 37 filmes em coprodução, sete em lançamento e três programados. O governo do Estado já injetou R$ 25 milhões em obras como Coração Iluminado, Policarpo Quaresma, Boleiros, Dois Córregos e Castelo Rá-Tim-Bum. 

Cessão por 20 anos  

Assim que concluídos, os dois galpões principais da Vera Cruz se transformarão nos estúdios da TV Cultura, que na parceria com a Prefeitura de São Bernardo ganhou o direito de explorar o local por 20 anos. Os equipamentos estão sendo dimensionados para que sejam realizados pelo menos 30 longas-metragens por ano, além de outros produtos que não filmes de ficção, como comerciais, institucionais, programas de TV, curtas e médias-metragens, entre outros, por meio de produção própria ou de locação de espaços para outras companhias.  

Ao fundo dos estúdios será montada uma cidade cenográfica para complementar a capacidade de produção de filmes. A área total soma 43 mil metros quadrados — onde estão dois estúdios de 2.720 metros quadrados e pé direito de 14 metros. 

Filmes coproduzidos pelo PIC-TV já têm público cativo calculado em cinco milhões de espectadores, incluindo TV Cultura, TVE do Rio e outras emissoras educativas espalhadas por vários Estados. No cinema o potencial de mercado ainda é pouco explorado. São 1,1 mil salas no País, o que significa uma sala para 125 mil habitantes, quando na Argentina a relação é de uma sala para 52 mil habitantes e nos Estados Unidos uma sala para cada grupo de oito mil moradores, conforme levantamentos recentes da rede Cinemark. 

Cadeia econômica   

Além desse público cinéfilo por enquanto adormecido, Ivan Ísola tem os olhos postos sobre a movimentação de empregos e giro de riquezas que o complexo da Vera Cruz proporcionará. Os 37 filmes do PIC-TV criaram cerca de cinco mil empregos diretos e 15 mil indiretos. “Imagine o que poderemos mobilizar no Grande ABC em profissões como atores, iluminadores, figurinistas, marceneiros, motoristas e técnicos de informática, além de serviços de apoio como rede hoteleira, restaurantes e agentes de turismo?” — diz Ísola a favor da Nova Vera Cruz. 

Os 28 filmes de ficção rodados entre os 37 do PIC-TV geraram exatos 3.266 empregos diretos e custaram em média R$ 3 milhões cada. “Com investimentos relativamente baixos, posso gerar quase uma Ford a cada dois anos” — compara o coordenador, que ainda cita o custo competitivo de produção da TV Cultura. Como atividade de uma fundação, a Cultura pode importar equipamentos sem taxa alfandegária. 

No perfil empresarial que se pretende dar à Nova Vera Cruz constam a instalação do Escritório de Cinema de São Paulo e a montagem do Ceac (Centro Experimental Alberto Cavalcanti), escola de cinema batizada com o nome do idealizador da estrutura técnica dos antigos estúdios. 

Muitas especialidades  

O Ceac vai formar e reciclar técnicos de imagem e som com base nas novas tecnologias do mundo audiovisual. E não apenas para consumo dos novos estúdios. Poderá inclusive vender cursos, produtos e subprodutos de suas atividades ou prestar serviços. 

Já o Escritório de Cinema se espelha nas film-comissions existentes no Exterior, por intermédio das quais se divulga e se apoia a produção audiovisual. É uma espécie de comitê de empresários, governos, sindicatos e representantes de negócios voltados ao turismo e ao meio artístico que pode tanto captar recursos financeiros como facilitar a realização operacional das obras. “Se uma tomada externa se passa em trem, um agente do escritório vai contatar a empresa operadora dos trilhos para que disponibilize a infraestrutura em troca de merchandising” — exemplifica. 

O Escritório de Cinema de São Paulo será constituído a partir de decreto governamental. Entre as hipóteses de trabalho consta montá-lo na sede da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado), que também seria convidada a entrar com R$ 5 milhões por ano na estrutura do PIC-TV. Já a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa) da Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico vai contatada para auxiliar na montagem e consultoria da escola de cinema Alberto Cavalcanti. 

A Nova Vera Cruz também pretende buscar a experiência do Sebrae (Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa) para dar mão forte às empresas de tecnologia e de suporte das atividades dos estúdios, segundo Ísola. 

Volkswagen cultural 

As reformas dos galpões da Vera Cruz estão orçadas em R$ 17,7 milhões. Outros R$ 15 milhões são previstos para equipar os estúdios A e B, onde serão produzidos filmes e séries televisivas. Para as obras civis, sob responsabilidade do consórcio construtor Triunfo-Necso-Construtécnica, o governo do Estado de São Paulo empenhou R$ 5 milhões e a Volkswagen do Brasil está entrando com R$ 500 mil na montagem do Centro Cultural, que ocupará o terceiro estúdio. Os R$ 12 milhões restantes estão aprovados por meio da Lei Rouanet, de incentivo à cultura. 

Só o Centro Cultural, que será de uso público e administrado pela Prefeitura de São Bernardo, demanda R$ 3,2 milhões para abrigar um hall nobre para exposições, teatro com 800 lugares, cinema para 200 pessoas, restaurante/choperia, o Centro Experimental para formação de mão-de-obra, oficinas culturais e o Memorial Vera Cruz. 

O acervo fílmico de 18 longas e quatro documentários e boa parte do material iconográfico (fotos, documentos, figurinos e outros objetos relacionados aos cinco anos de atividades da Vera Cruz) estão sendo catalogados e recuperados, após 30 anos de abandono e de serem resgatados e preservados pelo cineasta Walter Hugo Khouri. A ele pertence inclusive a razão social Cia. Cinematográfica Vera Cruz. Também é preciso patrocinador para arrematar o material de Khouri, avaliado em R$ 4 milhões. A ideia é colocar toda a memória da Vera Cruz também em CD-ROMs e em site da Internet para pesquisa. 

Devido ao atraso na liberação das parcelas do governo paulista por problemas da macroeconomia adversa, as obras do Centro Cultural foram retardadas e devem ser entregues em meados do próximo ano. O contrato original, assinado em fins de agosto de 1998, previa a conclusão em 12 meses. 

A aventura do nariz empinado  

 RAFAEL GUELTA 

A Companhia Cinematográfica Vera Cruz que existiu entre 1949 e 1954 foi um grande paradoxo. Introduziu no Brasil o conceito de cinema industrial e faliu porque, como indústria, foi um fracasso. A então qualidade técnica e artística de filmes como O Cangaceiro, Sinhá Moça e Tico-Tico no Fubá, que conquistaram plateias internacionais e são cultuados até hoje, não corresponde às trapalhadas gerenciais que agitaram bastidores e sets de filmagem. 

Indústria romântica fundada por dois mecenas das artes paulistas que injetaram dinheiro sem exigir retorno imediato — e tampouco conseguiram controlar redes de intrigas que envolviam executivos, diretores, atores e equipe técnica –, a Vera Cruz foi modelo de desperdício e falta de tino empresarial. Morreu na praia, afogada em dívidas, no exato instante em que poderia ter virado a mesa e consolidado o valor da sua arte. 

A história do filme O Cangaceiro é exemplar. Realizado em 1953 contra a vontade dos donos da companhia, mas por exigência de um alto executivo que ameaçou demitir-se, foi o maior sucesso de bilheteria. Em valores da época, custou 7,5 milhões de cruzeiros e rendeu só nas salas de exibição do Brasil quase 35 milhões de cruzeiros. Mas a Vera Cruz não pôs a mão em um único centavo, pois acabara de vender os direitos sobre o filme para a norte-americana Columbia Pictures. 

Sem planejamento e estudo de mercado, a Hollywood brasileira não vislumbrara carreira tão bem-sucedida para a obra-prima escrita e dirigida por Vítor de Lima Barreto que conta a saga de um bando de cangaceiros no sertão do Nordeste. Os direitos já estavam vendidos para os norte-americanos quando O Cangaceiro foi premiado no Festival de Cannes, na França, como melhor filme de aventuras de 1953. A produção inseriu o Brasil no mapa da cinematografia mundial. 

O filme de Lima Barreto, reforçado por diálogos de Rachel de Queiróz, não foi exemplo único de erros cometidos pela direção da companhia cinematográfica. Ficou evidente a falta de planejamento já na primeira produção, o melodrama Caiçara, dirigido pelo italiano Adolfo Celi e rodado inteiramente em Ilha Bela, no Litoral Norte de São Paulo. O filme demorou mais que o dobro do tempo previsto para ser realizado e o que se passou no set de filmagem valeria também uma produção — sobre como não se deve fazer cinema. 

A equipe de 70 pessoas ficou seis meses isolada em Ilha Bela, onde só se chegava de barco, por causa de discussões frequentes e acaloradas entre o produtor Alberto Cavalcanti e o diretor Adolfo Celi. Enquanto demoravam para chegar a acordo sobre questões envolvendo a produção, a companhia bancava elevados custos extras com hospedagem de todo o pessoal. Resumo da história: o Brasil assistiu pela primeira vez a um filme com excelente qualidade técnica, indicativo de que a Vera Cruz realmente chegara para mudar o jeito de fazer cinema no País, mas o prejuízo estava consumado. 

Tempos românticos 

A Vera Cruz foi criada num período da história que se pode chamar de sala de espera para o futuro. A humanidade tentava esquecer os horrores da Segunda Guerra, que deixou saldo de mais de 20 milhões de mortos e símbolos como o holocausto, que exterminou seis milhões de judeus, e a explosão de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Regimes autoritários e líderes personalistas e carismáticos eram expurgados na esperança de que não se repetisse a tragédia causada pelo nazi-fascismo. 

Não foi diferente no Brasil, onde o término da Segunda Guerra decretou o fim do Estado Novo, ditadura comandada pelo presidente Getúlio Vargas. A exemplo do resto do mundo, no ano em que surgiu a Vera Cruz o País experimentava o regime da moda, a democracia nacionalista, sob a presidência do general Eurico Gaspar Dutra, que governou de 1946 a 1951. Getúlio Vargas voltaria democraticamente ao poder em 1951 e morreria em 1954, mesmo ano em que desaparecia a companhia cinematográfica. O Brasil estava na antessala dos Anos JK (1956 a 1961), período em que o País se industrializou sob o slogan 50 Anos em Cinco. 

Ideais românticos espalhavam-se pelo mundo. Líderes políticos assombrados com os horrores da guerra sonhavam com a possibilidade de um planeta sem armas e governos unificados, centralizado em entidades como a ONU (Organização das Nações Unidas). A humanidade questionava valores. Surgia na França o existencialismo de Jean-Paul Sartre. 

O cinema de Hollywood, consolidado como porta-voz do capitalismo encarnado pelo american way of life, retratava mudanças comportamentais que seriam escancaradas nos anos 60. Roberto Rossellini e Vittorio de Sicca produziam na Itália cinema neo-realista que exibia nas telas o drama de pessoas do povo. O rock n roll começava a sair das garagens de subúrbio para explodir nos palcos das grandes cidades. 

Ao mesmo tempo em que provocara estragos, a guerra deixara saldo de inovações científicas que tornariam o mundo cada vez mais veloz. Aviões atingiram velocidade superior a 500 quilômetros por hora. Radares foram aprimorados pelos exércitos e geraram tecnologia empregada nas telecomunicações via satélite. A ciência conquistou status. Cérebros de todas as partes passaram a ser disputados a peso de ouro pelas grandes nações. 

O vazio cultural que tomou conta da São Paulo pós-guerra e a necessidade urgente de integrar-se ao novo cenário mundial fizeram emergir na burguesia a figura do mecenas das artes. Os industriais Francisco Matarazzo Sobrinho, o Cicillo, e Franco Zampari e o empresário das comunicações Assis Chateaubriand despontaram com realizações que ainda constituem ícones culturais do País e têm em comum a dependência de recursos estatais para sobreviver.  

Cicillo Matarazzo criou o Museu de Arte Moderna de São Paulo, que gerou a Fundação Bienal. Zampari revolucionou o teatro brasileiro com a fundação do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Chateaubriand concebeu o Masp (Museu de Arte de São Paulo). 

A produção cinematográfica brasileira estava concentrada no Rio de Janeiro — nas comédias musicais da Cinédia, fundada em 1930, e nas pornochanchadas da Atlântida, inaugurada em 1941 — quando os mecenas Cicillo Matarazzo e Franco Zampari resolveram transformar o Estado de São Paulo no primeiro polo de cinema industrial do País. 

Matarazzo entrou na sociedade com terreno que possuía em São Bernardo. Acabara de desativar uma granja porque São Bernardo já apresentava característica de polo eminentemente industrial e não fazia mais sentido atividade tipicamente rural.  

Empolgado com o TBC, Zampari vislumbrou a possibilidade de agregar ao celulóide a bem-sucedida experiência no palco. Assim nascia em 4 de novembro de 1949 a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, com capital calculado em 7,5 milhões de cruzeiros, a moeda nacional de então. 

Sem passado 

A Vera Cruz não fez a menor questão de esconder o nariz empinado de origem burguesa. Alardeou aos quatro cantos que, pela primeira vez, o Brasil produziria filmes sérios, com qualidade técnica exemplar. A ordem na companhia era apagar da memória tudo o que o cinema nacional fizera no passado. Zampari insistia na importância de começar do zero. Dezenas de técnicos, como o fotógrafo inglês Chick Fowle e diretores como o italiano Adolfo Celi, foram importados da Europa, então o modelo cultural adotado pelo Brasil. Também foram recrutados atores e roteiristas brasileiros de qualidade. O lema de Franco Zampari era gastar o que fosse preciso para fazer o melhor, sem se importar com retorno. 

A direção-geral da companhia foi entregue a Alberto Cavalcanti, nome de maior expressão internacional que o cinema brasileiro produzira até então. Genioso e genial, Cavalcanti fora um dos articuladores da avant-gard do cinema francês, trabalhara na França com Jean Renoir e Luis Buñuel e foi parar nos estúdios da Paramount, nos Estados Unidos. Na Inglaterra, deu aulas de cinema para o canadense Norman McLaren, um dos papas do cinema de animação.  

O diretor-geral da Vera Cruz não poupou recursos e comprou os melhores equipamentos disponíveis, como quatro câmeras Mitchell e um laboratório fotográfico capaz de processar 700 cópias por dia. No caso do laboratório, um exagero para as necessidades imediatas da empresa. 

Ser vista como empresa rica para se firmar como meca do cinema brasileiro era o ideal da Vera Cruz, cujos comandantes consideravam importante transmitir imagem de que tinham em mãos todos os recursos de que precisavam. Pesava muito a influência de Hollywood, usina de mitos que despertavam atenções no mundo inteiro e exibiam a prosperidade do regime capitalista norte-americano. 

No início dos anos 50, quando o salário mínimo no País era de 125 cruzeiros, atores de ponta como Anselmo Duarte ganhavam astronômicos 25 mil cruzeiros mensais. Técnicos estrangeiros eram tratados com mimos e gentilezas que descontentavam brasileiros. O inglês Chick Fowles cumpria ritual diário de chá com mingau de aveia às expensas da companhia. Além de estúdios e cidade cenográfica, a Vera Cruz construiu conjunto residencial em São Bernardo no qual chegou a morar por algum tempo a atriz Eliane Lage. 

No set de filmagem prevalecia o desperdício. Tico-Tico no Fubá, filme que conta a história do compositor Zequinha de Abreu, bateu recorde. Consumiu 80 quilômetros de celuloide, quase a distância de São Paulo a Campinas. Cenários eram constituídos de móveis fabricados com madeiras nobres pela indústria de São Bernardo, geralmente para uso num único filme. Não havia preocupação com reciclagem de materiais.  

Foi assim, sem controle ou planejamento, que a Vera Cruz começou a atolar em dívidas. Filmes custavam mais do que arrecadavam porque se jogava muito dinheiro fora. O destino da companhia certamente teria sido diferente se prevalecesse visão empresarial nos moldes de Hollywood, onde lucro não se dissocia da arte. 

Exemplo empreendedor estava se instalando ao lado da Vera Cruz, com a industrialização do Grande ABC. No início dos anos 50 o Brasil possuía 700 indústrias de autopeças, número que dobraria a partir de 1958 com a chegada ao País das primeiras montadoras. 

Havia campo aberto para o cinema. O País tinha quase 2,5 mil salas de exibição, pelas quais passaram mais de 180 mil espectadores. Filmes importados dos Estados Unidos já dominavam a cena. A televisão, fundada por Assis Chateaubriand em 18 de setembro de 1950, só iria consagrar-se como veículo de comunicação de massas a partir do final dos anos 60. 

História no cinema 

Ainda não foi escrito o livro que documentará e ajudará a preservar para o próximo milênio o conteúdo artístico e cultural produzido entre 1949 e 1954 pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O que faltou de qualidade gerencial sobra em filmes que efetivamente inauguraram a era do cinema industrial no Brasil: 18 longas-metragens e quatro documentários são o saldo da aventura da burguesia paulistana que um dia realizou arte. 

Do faroeste tupiniquim — O Cangaceiro — a filmes históricos ou intimistas — como Sinhá Moça e Floradas na Serra, respectivamente –, a produção da Vera Cruz constitui retrato da cultura brasileira. Foi na companhia que Mazzaroppi estreou em 1952 com Sai da Frente e imortalizou o indolente Jeca do Interior paulista. Marisa Prado, nascida em São Bernardo, foi o primeiro nome de expressão do Grande ABC a surgir nas telas dos cinemas. 

Dois projetos cinematográficos podem sair da gaveta no próximo ano para contar um pouco do que foi a saga da Vera Cruz. Ugo Giorgetti, roteirista e diretor do filme Boleiros, pretende mostrar na tela grande a vida do riquíssimo engenheiro Franco Zampari, que morreu pobre nos anos 60, depois de ter consumido tudo o que possuía nas aventuras do TBC e da companhia cinematográfica. O outro projeto é um roteiro de Walter George Durst chamado Um Certo Capitão Galdino, que conta a vida do ator Milton Ribeiro, principal protagonista de O Cangaceiro. 

A vida de Milton Ribeiro é um prato cheio para o cinema. Enfermeiro que trabalhava na zona de prostituição de São Paulo, tornou-se rádio-ator numa noite em que foi chamado para aplicar injeção num funcionário da Rádio Tupi, localizada no Centro velho da Capital. Túlio de Lemos, ator que interpretava a voz de Deus numa radionovela, estava pedindo demissão da Tupi quando Milton Ribeiro entrou na antessala do estúdio. O ambiente estava quente. O diretor da radionovela não aceitava o argumento de Lemos de que não podia mais interpretar a voz de Deus porque se tornara comunista e ateu. De repente o diretor apontou para Milton Ribeiro e o mandou entrar no estúdio e assumir o papel. Deu certo. O protagonista de O Cangaceiro tornou-se ator, mas nunca deixou de atuar como enfermeiro na zona de prostituição. Viveu os últimos dias em circos mambembes percorrendo o Nordeste. Era chamado de louco quando se apresentava como o intérprete do capitão Galdino no filme O Cangaceiro, premiado em Cannes. 



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