Imprensa

Vírus chinês: prepare-se, você
vai decidir a manchete da Folha

DANIEL LIMA - 17/08/2020

Você está convidado a ser editor da primeira página da Folha de S. Paulo por um dia. Dou-lhe essa prerrogativa. Se a Folha não lhe der, não ligue para a Folha. Faça seu trabalho remoto. Como se fosse um hacker. O que está em jogo é um dos resultados do Datafolha em nova bateria de pesquisa que toma o pulso do governo Jair Bolsonaro, agora especificamente sobre o vírus chinês.  

A Folha parece ter desistido, circunstancialmente, da pregação pelo impeachment do presidente da República. Um armistício providencial. Antes que a forçada de barra virasse Operação Tabajara.  

Não vou entrar em detalhes do que já escrevi sobre o Datafolha, braço estatístico armado da Grande Mídia pronto para derrubar o presidente ou, se for considerado o outro lado da moeda, braço de resistência ao autoritarismo do governo Jair Bolsonaro. Cada um que escolha a melhor narrativa.  

Vou me ater exclusivamente à manchetíssima (manchete das manchetes da primeira página) da última sexta-feira.  

A notícia da manchetíssima  

Reproduzo abaixo a manchetíssima oficial publicada pela Folha de S. Paulo. As demais são sugestões minhas. O leitor poderá optar pela manutenção da manchetíssima escolhida pelo editor de primeira página de verdade da Folha ou meter o dedo e trocá-la pela que bem entender, entre as quatro de meu livre arbítrio.  

Não pense que essa é uma brincadeira de fazer primeira página. O assunto é sério. O que pretendo, no fundo, é pegar o leitor numa armadilha. Conforme o título da manchetíssima escolhido, vou saber ou terei indício de que pito toca em matéria de posicionamento político. Não se sinta constrangido. Vá em frente sem pestanejar. Democracia é isso mesmo. 

Antes de elencar as alternativas, vou explicar o que está em jogo. Vou direto ao ponto. Que manchetíssima produziria o leitor-editor-não autorizado ante as informações de que quase metade dos eleitores ouvidos pelo Datafolha (47%) dizem acreditar que o presidente da República não tem culpa nenhuma pelos óbitos do vírus chinês? (o chinês é por minha conta). Continua a Folha: “Os que acham que Bolsonaro tem responsabilidade somam 52% -- são 11% os que o veem como principal culpado e 41% os que dizem que ele é um dos culpados, mas não o principal.   

Escolha a manchetíssima  

Essas, portanto, são as informações básicas, centrais. Agora é a hora de você definir a manchetíssima da Folha de S. Paulo. Faça de conta que você participou da reunião de fechamento de primeira página e se lhe apresentaram a incumbência de dar o formato final ao enunciado maior da pesquisa do Instituto Datafolha.  

O que pergunto é o seguinte: você teria coragem, personalidade, independência e tudo o que imaginar em forma de autonomia intelectual, para contrariar o editor de verdade de primeira página da Folha de S. Paulo que escolheu a primeira alternativa? 

Se não ficou satisfeito com aquele enunciado (o primeiro, insisto, logo abaixo) e dispusesse de quatro novas opções, com qual (apenas uma) ficaria?  

Olhe a responsabilidade. O que você escolher vai definir o que pensa sobre o governo do presidente Jair Bolsonaro. Vamos então às quatro manchetíssimas?  

  Primeira alternativa: 

 Para 47%, Bolsonaro não tem culpa por mortes pelo vírus 

  Segunda alternativa: 

 Apenas 11% dizem que Bolsonaro tem culpa por mortes pelo vírus 

  Terceira alternativa: 

 Somente 11% dizem que Bolsonaro tem culpa por mortes pelo vírus 

  Quarta alternativa:  

 41% dizem que Bolsonaro é o menos culpado por mortes pelo vírus 

  Quinta alternativa: 

 88% dizem que Bolsonaro é o menos culpado por mortes pelo vírus  

Colocadas na gôndola do supermercado de especulação editorial, como assim poderia ser interpretada essa proposta de atropelar o editor de primeira página da Folha de S. Paulo, e na certeza de que os leitores já se definiram pela manchetíssima de preferência, eis que vamos fazer breve avaliação das escolhas.  

 Primeira alternativa 

Quem optou pela manchetíssima oficial da Folha (“Para 47% Bolsonaro não tem culpa por mortes pelo vírus”), estaria perfeitamente alinhado à postura de oposição do jornal paulistano ao governo federal. Há uma subliminaridade no enunciado escolhido pelo editor da Folha que infiltra um tom crítico à gestão da pandemia pelo governo federal. Quando se menciona o total de 47% que livram a barra do presidente da República, automaticamente se coloca no outro canto do tablado os demais 53% (portanto, a maioria) que o condenariam. É uma reprovação implícita que subverte o resultado da pesquisa porque a conta dos prejuízos que caracterizaria o peso nocivo de Bolsonaro é bem diferente: são 11% apenas quem o colocam como principal agente de trapalhadas durante a pandemia enquanto que, entre os demais, Bolsonaro não consta como o principal. Os principais são outros, que o Datafolha não levou a campo com o devido cuidado identificatório.  

 Segunda alternativa 

A opção pela segunda manchetíssima (“Apenas 11% dizem que Bolsonaro tem culpa por mortes pelo vírus”) carrega positivismo pró-presidente que desagradaria demais aos editores da Folha de S. Paulo. É possível que decidiriam pressionar o editor de primeira página a impedir que o caro leitor metesse a mão nessa cumbuca de aliviar a barra do presidente. Parece bobagem, mas “apenas” tem um significado subjetivo de sucesso nas ações do presidente da República. O trato de que nada obstaria o leitor a definir a manchetíssima da Folha de S. Paulo possivelmente seria judicializado. A quantificação numérica muito abaixo dos pretendidos 47%, seguida de um verbete consagrador ao presidente, seria um abuso ao Consórcio de Veículos de Comunicação que se formou muito antes de cuidar do balanço diário do Coronavírus. O Consórcio, que chamo de Grande Mídia, foi deliberadamente composto, embora meio na surdina, para azucrinar a vida de um presidente louco por conflitos.  

 Terceira alternativa 

Os leitores precisam prestar muita atenção para não confundirem as bolas e imaginar que os enunciados da segunda e da terceira alternativas são iguais. O enunciado da terceira alternativa (“Somente 11% dizem que Bolsonaro tem culpa pelas mortes por vírus”) é de enviesamento negativo para o presidente da República. “Somente” é antípoda de “apenas”. Explicando: enquanto “apenas” soa como algo minimizador, “somente” ganha o terreno” do lamento quantitativo. Há uma sutileza a separar um verbete do outro, mas o subconsciente dos leitores é uma válvula escapatória mágica que distribui juízo de valor de acordo com as primeiras impressões. “Somente 11%” soa criticamente de forma muito mais contundente e condenatória do que “apenas 11%”. Aliás, para ser mais preciso, “apenas” é exatamente o oposto, como já foi explicado. O titular de edição de primeira página da Folha de S. Paulo aprovaria o terceiro enunciado, mas não retiraria de campo o já escolhido, dos “47%”, porque esse parece imbatível para embaralhar a mente dos leitores. É verdade que mesmo no caso dos “47%” é possível encontrar quem acredite na isenção da Folha de S. Paulo e do Datafolha, mas quem está mais habituado à leitura persecutória do jornal, quando do outro lado da fita está o governo Bolsonaro, a manchetíssima é claramente manipuladora.   

 Quarta alternativa 

Dividir os ônus pelos estragos da pandemia é o que a Folha de S. Paulo e os demais veículos da Grande Mídia menos querem e admitem desde sempre. A pesquisa que foi a campo dois dias após a edição extravagante do Jornal Nacional em comemoração a 100 mil mortes (o tom foi mesmo entre festivo disfarçadamente de alarmista e jornalístico embutidamente crítico) não trouxe os números que essa Grande Mídia tanto esperava. Se são ainda piores essa é outra história, sobre a qual vou escrever amanhã. O fato é que não interessaria em hipótese alguma ao editor de primeira página da Folha de S. Paulo dar espaço à quarta alternativa (“41% dizem que Bolsonaro é o menos culpado pelas mortes por vírus”) entre outros motivos porque alargaria o campo de visão analítica do eleitorado sobre o que aconteceu além-fronteiras do Palácio do Planalto. E também porque não seria jamais interessante trocar os “47%” que limpam a barra de Bolsonaro (e o contraponto elíptico de que mais de 50% condenam) pelos 41% que atribuiriam menos culpabilidade do presidente da República em relação aos demais agentes.  

 Quinta alternativa 

Essa possibilidade causaria um terremoto na Redação da Folha de S. Paulo. Colocar como manchetíssima o enunciado exposto (88% dizem que Bolsonaro é o menos culpado por mortes pelo vírus) seria uma abordagem tão francamente favorável ao governo federal (com base técnica, é bom que se diga) que não haveria como sustentar um suposto surto de democracia editorial. Nem pensar em tal diagnóstico em forma de sentença de primeira página, no alto da página. A fundamentação técnica é evidente, ou estou enganado? Quando se somam os 47% que absolvem o presidente Bolsonaro de qualquer resquício de responsabilidade pelas mortes ao universo de 41% de disseram aos pesquisadores que o mesmo presidente é o menos culpado pelas mortes, eis que temos 88%. E se querem saber, a conjunção das duas respostas em forma de manchetíssima ainda seria injusta ao presidente, porque da parte substantiva dos 88% que o inocentam em larga escala, 47% o inocentam integralmente.  

Faça sua escolha  

Para completar (e para desvendar o segredo de preferência do leitor) o que pergunto é o seguinte: com qual das cinco alternativas você ficaria? Manteria a manchetíssima definida pelo editor de verdade de primeira página da Folha de S. Paulo e, certamente, deixaria a redação do jornal paulistano sem sofrer bullying, ou optaria para valer por uma das quatro seguintes?  

Vamos, desça do muro. Manifeste-se mesmo que internamente. Use seu senso crítico e sua consciência. Tanto quanto o voto é sagrado, também o direito de se manter em silêncio é inalienável. Mas saia do muro.  

Tenho todo o direito de sugerir alguma inciativa, porque, como nunca fujo de uma batalha, vou revelar cruamente a alternativa que mais me pareceria convincente. Sabem qual? Então, veja: 

 Somente 11% dizem que Bolsonaro tem culpa por mortes do vírus.  

Está aí a minha alternativa preferida. E, diferentemente do enunciado que a contextualiza, sou uma espécie de exceção interpretativa. Não lamento que os 11% sejam tão pouco; de verdade, os 11% são surpreendentes. Isso mesmo: surpreendentes. E explico: depois de tanta pancadaria ao longo de meses (muitas merecidas, outras fabricadas), eis que Jair Bolsonaro safou-se com algo que poderia chamar de louvor de uma condenação coletiva muito mais expressiva.  

Senso de justiça  

Também não vou escrever hoje sobre o que teria atenuado a culpa no cartório do presidente da República. Já fiz algumas abordagens tangenciais sobre isso. Fixo a avaliação nos números expostos. São de lascar para quem imaginava que o metralhamento do presidente, a quem imputaram estúpida exclusividade pelos números do Coronavírus, impactaria pelo menos um terço dos eleitores.  

Nada disso. Ou seja: os eleitores não alinhados a Jair Bolsonaro não perderam o senso de Justiça porque, afinal, atribuir ao presidente mais que o devido peso nos tropeços da atuação de autoridades públicas no combate ao vírus chinês seria tão estúpido quanto entender que ele não tem responsabilidade.  

Na edição de amanhã trato da metodologia travessa e da aplicação imprecisa do questionário do Instituto Datafolha. Sem nem com todos os vieses se alcançaram os resultados condenatórios desejados (e isso não é uma defesa do presidente, mas uma constatação óbvia), quem garante que os números apresentados não seriam completamente outros, piores ainda para a Grande Mídia? Explico amanhã. 



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