Dois anos depois do texto que você vai ler logo abaixo o professor José Rossi virou história de vez, quando foi embora. Nesta série especial de 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, revelamos uma das facetas nem sempre conhecidas da revista de papel LivreMercado. Afinal, Economia era o centro definidor da publicação. Mas, não único e exclusivo.
A cada nova edição impressa, saltava uma personalidade do mundo regional. A valorização de individualidades que encorpavam a história do Grande ABC era um dos pontos centrais de LivreMercado no viés direcionado à sociedade como um todo. Outras iniciativas editoriais também quebraram a barreira mais que insustentável entre Economia e Sociedade.
José Rossi foi entrevistado pelo jornalista Wilson Moço, que construiu breve e intocável perfil de quem foi muito além de professor de futebol. José Rossi era um monumental e raro exemplar de multiplicidade educadora em sinergia com o esporte. Ou de habilidades esportivas em sinergia com a Educação. A ordem dos fatores não interessa à grandeza final.
Esta é a centésima-décima-terceira edição de uma série que retrata os textos de LivreMercado e de CapitalSocial, ao longo de três décadas.
Bola nos pés,
livro nas mãos
WILSON MOÇO - 05/12/1999
O ainda menino José Rossi -- tinha seis, sete anos -- nem sonhava que um carrinho de brinquedo encontrado numa rua de Amparo nos longínquos anos 30 o transformaria mais tarde no professor José Rossi. Não um mestre da sala de aula, mas um idealista, um filósofo que vê na bola e nos campos aliados importantes na difícil tarefa de educar meninos e preparar o caminho para formar homens, não simples esportistas. "O esporte é o caminho para resolver boa parte dos problemas da violência" -- fala com a experiência de quem passou a maior parte dos 69 anos nos campos, sobretudo na periferia de São Bernardo.
Caçula de uma família pobre de oito irmãos e órfão de pai, José Rossi foi obrigado pela mãe, dona Bárbara, a deixar o brinquedo no mesmo local onde o havia encontrado. "Naquele dia nasceu tudo, como essa vontade louca de fazer as coisas o mais certo possível, oferecer o mais que possa para ver se o mundo não fica tão feio, se fica menos ruim" -- sonha.
Esporte-educação
Começava a ser traçado ali, naquele gesto firme de uma mulher que lutava pelo sustento dos filhos, o destino do homem que aos 24 anos abdicaria de carreira promissora como jogador de futebol para se dedicar às crianças -- iniciativa que se tornaria filosofia de vida.
José Rossi jogava no Cannes, da França, quando voltou ao Brasil em 1954 e foi para Mirandópolis, Interior de São Paulo. Ali, em 1948, então com 18 anos, criou o sistema esporte-educação, o qual batizou de Bola nos Pés, Livro nas Mãos. "Fui o pioneiro, pelo menos no Brasil, a fazer trabalho associando esporte e educação. Em 1948 já pegava o boletim deles da escola para ver se estavam indo bem, mandava plantar grama, pintar o alambrado do campo. Não sabia, mas aquilo era laborterapia. Fazia para que não cabulassem (matassem) aula e não ficassem com período ocioso. Eles faziam algo produtivo. O maior perigo para o homem é ficar jogado por aí" -- filosofa.
Muitas vezes incompreendido e chamado de utópico em 52 anos de trabalho ininterrupto, José Rossi se sente realizado: centenas de meninos que passaram por suas mãos ou pelas escolinhas que idealizou são hoje engenheiros, médicos, dentistas, professores de Educação Física.
Começo no Volks Clube
Mesmo quem seguiu carreira como jogador não decepcionou o mestre, porque todos se mostraram e se mostram profissionais conscientes. Não deixaram o sucesso, a fama e o dinheiro subverterem os valores aprendidos quando corriam em campos poeirentos da periferia de São Bernardo, onde José Rossi chegou em 1958. Seis anos depois iniciava o Bola nos Pés, Livro nas Mãos no Volkswagen Clube.
Sete anos se passaram até que o já então professor José Rossi conseguisse realizar seu grande sonho: levar o sistema esporte-educação para os campos da periferia, com o apoio do prefeito Geraldo Faria Rodrigues e auxiliado por Almerindo Protti (o Velho Brota) e Sérgio Caiado. Onde não houvesse campo, a ordem era construir. "Chegamos num terreno no Taboão e começamos a capinar. O dono apareceu, mandou a gente sair e disse que se quiséssemos o campo que a Prefeitura comprasse a área. O Geraldo mandou comprar e fizemos o campo, que hoje é do Taboão" -- conta José Rossi, que se aposentou em 1995 e hoje se dedica a palestras e ao trabalho de assessoria a escolinhas. Quando resolveu dar um tempo, São Bernardo contava com mais de 50 escolinhas municipais, com cerca de 3,5 mil alunos.
Rodando o mundo
Formado em Educação Física, Psicologia e Direito, José Rossi só usa conhecimentos acadêmicos como complemento de tudo o que aprendeu em campos de várias partes do mundo. Trabalhou dois anos em Cuba, outro tanto no Japão, no Canadá, nos Estados Unidos, no México, no Paraguai, na Itália, no Chile e em outros tantos, num total de 47, alguns apenas como jogador.
Já recebeu convites para voltar a Cuba, mas se sente um pouco cansado de tantas andanças e tantas batalhas. Só aceita se for por curto período. Até para ver de perto os frutos das árvores plantadas com o Bola nos Pés, Livro nas Mãos. Isso mesmo! O sonho do menino de 18 anos saiu de Mirandópolis, ganhou força em São Bernardo e conquistou o mundo.
Mais do que problemas com idiomas, José Rossi em muitos casos enfrentou a desconfiança por causa de seus métodos, inclusive no Brasil. Estudioso dos segredos da bola, observa o futebol como ciência, motivo pelo qual foi tachado de utópico. E não é difícil descobrir por que teve de comer muita grama. Afinal, para Rossi futebol envolve Matemática (a forma de jogar pode fazer equipe de 11 parecer ter 16, 17 jogadores), Física (o bom chute depende da força de equilíbrio), Economia (time é mais produtivo se jogar no sentido diagonal e horizontal) e Psicologia (sentido de integração e cooperação).
Futebol e geografia
Não é tudo. José Rossi defende a tese de que futebol também pode ser usado para ensinar geografia. Foi mais um dos achados para conseguir mostrar o que queria dos jogadores, sobretudo em países onde não conseguia passar a ideia porque não tinha o domínio da língua.
Ele puxa da memória uma das muitas histórias. Conta que, em uma de suas idas aos Estados Unidos, demarcava pontos estratégicos do campo com nome de países e suas capitais para facilitar o ensaio de jogadas. Em dado momento, uma mulher que via o treino questionou a validade do método. Rossi respondeu que além de esquema de jogo, servia também para ensinar geografia. "Como duvidou, disse a ela que se o presidente dos EUA (na época Ronald Reagan) algum dia tivesse participado dos treinamentos, não teria cometido o erro de dizer que estava feliz por estar na Bolívia, quando na verdade chegara ao Brasil". Em Cuba, Rossi usava a música para dar ginga aos jogadores.
Futebol profissional
Rossi cansou de recusar convites para ser técnico profissional. Até fez algumas tentativas, mas percebeu que era um mundo deteriorado, cheio de vícios, de dirigentes inescrupulosos e no qual não teria possibilidade de fazer algo positivo. A saída para tentar mudar o que viu era mesmo o trabalho na base. "Escolhi o caminho mais espinhoso, mas também o mais prazeroso, porque acho que consegui cumprir meu papel. Sempre digo que não trabalhei para mim, mas para nós. Ajudei muitos pais a educarem os filhos. Ajudei a formar homens. Sei que alguns se perderam no caminho, mas a maioria seguiu a trilha do bem. Que mais posso querer?" -- pergunta, ao lembrar que Ronaldão, Denílson e Mauro Silva, jogadores que defenderam a Seleção Brasileira, surgiram nas escolinhas de São Bernardo.
O professor tem mesmo motivos para estar orgulhoso e sentir o prazer do dever cumprido. Rossi nem sabe mais quantos meninos passaram pelas escolinhas, mas tem uma certeza: centenas têm uma profissão. Um dos maiores exemplos é a geração que iniciou o time do Andorinhas, em 1973, além de outros jogadores que se juntaram à equipe nos anos seguintes.
Daquele time, 15 se formaram em Educação Física, dois em Administração, um em Engenharia, um em Biologia, um em Arquitetura, um em Economia, um em Direito, um em Odontologia e outro em Medicina. Este, aliás, cuida da saúde do mestre.
Aqueles meninos que um dia sonharam com a fama do futebol formaram um time na acepção da palavra. Por isso mesmo, vários deles ainda hoje se encontram para bater uma bolinha. Foi uma equipe vencedora também dentro de campo, com a conquista de inúmeros títulos, inclusive no Exterior. Time homogêneo, já em 1975 praticava o chamado futebol participativo que virou moda há pouco mais de dois anos com o técnico Wanderley Luxemburgo, cuja premissa é o jogador versátil.
José Rossi adora uma boa conversa. É capaz de falar horas sobre futebol, problemas do mundo, filosofar: "Só aprendi a saltar obstáculos porque foram colocados no meu caminho. Se não for assim, a gente não evolui".
Compondo poesias
Escritor, compositor, pensador, poeta. O professor sempre encontra tempo para tudo isso e um pouco mais. Há pouco esteve no Rio de Janeiro para o lançamento de livro com poemas escolhidos em concurso, entre os quais suas composições. Não é supersticioso, mas ficou intrigado com o local da festa: salão social do América, clube em que atuou em 1949 e onde voltou após 50 anos. Também finaliza seu novo livro, a ser lançado no início do ano 2000 com o título Educação, Cultura e Esporte -- 50 Anos de Trabalho (coincidência?).
José Rossi não se acha um religioso fanático, mas lê a Bíblia com frequência em busca de orientação e ensinamentos. "A Bíblia nos dá problemas, não soluções. É assim que aprendemos" -- acredita. Foi assim que criou os filhos Strauss, Vágner e Mônica, sempre ao lado de Diva, com quem se casou há 48 anos. Companheira de todas as horas, girou o mundo com o marido. Agora tem mais tempo para se dedicar à pintura, enquanto José Rossi rascunha alguma poesia, música ou pensamento no cantinho da aconchegante casa no Bairro Batistini, em São Bernardo. Ali é o refúgio onde recupera as energias e busca conhecimento para não deixar a mente embotar. Não sabe se voltará à batalha, mas tem consciência de que fez sua parte. "Não tenho escola. Eu fiz escola" -- pontua.
Total de 1884 matérias | Página 1
13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)