Imprensa

30ANOS: riqueza cultural é
dinamitada no Grande ABC

DANIEL LIMA - 02/09/2020

A riqueza cultural do Grande ABC dos anos 1970, que se esvaiu aos poucos, é reconstruída no texto que se segue, assinado pelo brilhante e versável jornalista Rafael Guelta. A matéria, esplendor de talento de um profissional que também nos deixou, mostra o quanto a revista LivreMercado ultrapassava as dimensões que a colocaram no topo do jornalismo econômico regional do País.  

LivreMercado também era cultura. Tanto que o Prêmio Desempenho, realizado durante 15 nos, incorporou a atividade como uma das modalidades de reconhecimento dos profissionais.  

Se o texto de Rafael Guelta publicado na edição de fevereiro de 2000 na revista LivreMercado já era um canto de lamentação pela fragilização da Cultura regional, imagine o que encontramos hoje quando, seguindo a ótica do simplismo, dá-se ênfase a uma ou outra obra de reforma de espaços físicos que serviram de palco aos artistas daqueles tempos, sem que haja sequer algo que possa ser chamado de calendário. A cultura regional é uma nau sem rumo e sem prumo.  

Esta é a centésima-vigésima-quarta edição da série 3OANOS do melhor jornalismo regional do País, uma junção dos 19 anos da revista de papel LivreMercado e dos também 19 anos de CapitalSocial.   

Ai que saudades

da arte regional 

 RAFAEL GUELTA - 05/02/2000 

Já ouviu falar em Sociedade Cultura Artística de Santo André? Em Milton Andrade, Aron Feldman, Grupo Teatro da Cidade, Luiz Sacilotto e Instituto de Artes do Planalto? E em Miller Paiva e Antonio Chiarelli? Se você nasceu há menos de 20 anos, é muito provável que não. Mas não se culpe por isso. Mesmo a grande maioria das pessoas que viveram com intensidade os anos 70 no Grande ABC têm vaga lembrança de quase uma década inteira de efervescência cultural.  

Não foi apenas com greves de trabalhadores que o Grande ABC desafiou a ditadura militar e se tornou protagonista do primeiro escalão das mudanças que produziram a confusa democracia que vigora nestes tempos de globalização. Naqueles anos nebulosos os arquivos da censura viviam abarrotados de relatórios sobre o que faziam os artistas da região mais industrializada e combativa do País. 

Não foi só a evasão industrial que passou a afligir o Grande ABC a partir dos anos 80. A região, que nos anos 50 poderia ter se tornado Capital do Cinema com a Cia. Cinematográfica Vera Cruz, sofreu também evasão cultural. Hoje fala-se em necessidade de organizar movimentos artísticos na região como se tudo ainda estivesse por acontecer. É óbvio que na arte tudo está sempre por acontecer. Mas não é bem assim.  

Resgatando histórias 

O Grande ABC tem histórias que precisam ser resgatadas. Muitos atribuem à proximidade com São Paulo a evasão cultural dos anos 80. Argumento extremamente simplista. Há também certo consenso no sentido de que a região optou pela indústria -- produção prevalecendo sobre criação, ou máquina prevalecendo sobre o humano.  

O importante é que neste fim de século cultura é tema que volta a ocupar espaço na cabeça das autoridades que comandam o Grande ABC e também é diferencial em indústrias que querem viver bem com a comunidade. Então, que desta vez tudo seja bem feito, para que nada se perca. 

Nos anos 70 o Grande ABC foi palco do melhor teatro amador encenado no Brasil. Produziu espetáculos copiados por grupos profissionais, o que é incomum na cena teatral. A ideia dominante era de um lado resistir ao regime militar, denunciar torturas e desaparecimento de presos políticos; de outro, expor novos comportamentos, questionar modelos culturais ultrapassados, mudar a cabeça das pessoas.  

Debates obrigatórios  

Debater cinema de arte era programa obrigatório das tardes de sábado no anfiteatro do Paço de Santo André. Poetas e escritores imprimiam textos em mimeógrafos e cuidavam da distribuição nas portas de cinemas e teatros. Festivais de música popular brasileira tinham torcidas, canções e intérpretes de alto nível. Cineastas como João Batista de Andrade vinham frequentemente ao Grande ABC para registrar cenas das greves que começavam a mudar o País. Roberto Santos, um dos grandes do cinema novo -- diretor de A Hora e a Vez de Augusto Matraga --, rodou um filme inteiro no Teatro Municipal de Santo André. 

Foi uma época em que pessoas comuns cuidavam de fazer acontecer coisas fantásticas. Aos sábados de manhã, happenings no calçadão da Oliveira Lima, em Santo André. No Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo -- atual Sindicato dos Metalúrgicos do ABC -- um grupo de teatro amador encenava a vida dura do trabalhador. Hector Babenco, o cineasta residente no Brasil mais conhecido no Exterior, recrutou em favelas de Diadema o elenco de garotos para o premiadíssimo Pixote -- inclusive o próprio Pixote.  

Proliferavam em escolas da rede pública grupos de estudo de poesia e literatura. Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e Graciliano Ramos viviam na boca dos estudantes. 

O pai de todos os teatros do Grande ABC foi o Teatro de Alumínio, ícone cultural dos anos 60 e laboratório de tudo o que aconteceu na década seguinte. Galpão imenso de madeira e teto de zinco, o Alumínio ficava na esquina da Avenida Perimetral com Rua Coronel Francisco Amaro, em Santo André. A nata do teatro brasileiro pisou no seu palco -- atores como Procópio Ferreira, Paulo Autran, Paulo Goulart, Tônia Carrero, Dercy Gonçalves e Nicete Bruno.  

Gosto pelas artes  

Meninos e meninas tomaram gosto pelas artes cênicas assistindo matinês de domingo. Alguns tornaram-se atores, como Sônia Guedes e Antonio Petrin. Outros contentaram-se em ser plateia assídua. Hoje quase ninguém lembra. O majestoso Teatro de Alumínio foi derrubado. Virou loja de automóveis. 

A Sociedade Cultura Artística de Santo André (Scasa) administrou o Teatro de Alumínio e sobreviveu à demolição do galpão de madeira. Manteve-se na mesma Avenida Perimetral -- no lado oposto da Rua Coronel Alfredo Fláquer, inteiramente demolido para se tornar a via rebaixada atual --, em prédio onde funcionara o Cine Santo André. Promoveu e patrocinou espetáculos de teatro amador e assistiu ao surgimento do Grupo Teatro da Cidade, o único elenco profissional constituído no Grande ABC por atores do Grande ABC.  

Sem apoio oficial para se manter, não sobreviveu à segunda demolição. Teve fim patético. O falecido palhaço Estrimilique, que dá nome a parque infantil de Santo André, trabalhava como zelador e faxineiro do teatro. Para sobreviver, varria chão com o filho Tontolino, também palhaço. Todo ano fazia bico como Papai Noel oficial de Santo André. 

Fundação das Artes 

Milton Andrade você conhece. É um dos empreendedores culturais que recebeu nesta temporada o Prêmio Desempenho de LivreMercado. Interpretou o avô de dois meninos em recente campanha publicitária do Banco Itaú, de vez em quando aparece em novela da Globo, mas é frequente em consagradas peças de teatro. Sua importantíssima contribuição para a cultura da região foi ter criado e comandado a Fundação das Artes de São Caetano. 

O russo Eugênio Kusnet, que dá nome ao espaço que já foi o lendário Teatro de Arena, em São Paulo, foi professor de Teatro na Fundação das Artes na gestão de Andrade. Junto com outro monstro sagrado das artes cênicas, Ziembinski, trouxe para o Brasil o método russo de interpretação Stanislawsky, divisor de águas no teatro brasileiro. O método revolucionou a forma de representar, instituiu o laboratório e tornou possível o teatro moderno, inaugurado com Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. 

A administração cultural de Milton Andrade não ficou só nisso. Naqueles explosivos anos 70 passaram pela Fundação das Artes nomes de peso na cultura brasileira, como o violonista Heraldo do Monte, o maestro Nelson Ayres, o saxofonista Alberto Sion e o pianista Amilson Godoy, gigantes da música instrumental.  

Quinteto de cordas  

A Fundação manteve durante anos um quinteto de cordas que levou boa música para várias regiões do País. Eduardo Gramani, estudioso da rabeca brasileira que depois se tornou spalla da Orquestra Sinfônica de Campinas, era o violinista do grupo. Na área de artes plásticas, passou pela entidade, como professor, um dos maiores gravuristas brasileiros da época, Paulo Menten. Artistas de fora se engajavam ao Grande ABC, desenvolviam experimentos, promoviam debates, faziam ferver o caldeirão do conhecimento. O que acontece hoje na Fundação das Artes? 

Aron Feldman foi cineasta num tempo em que superproduções da Metro, Paramount e Cinecitá demoravam meses -- depois da estréia em São Paulo -- para chegar ao Grande ABC. Com uma câmera na mão, muito talento e quase nenhum recurso financeiro ele rodou curtas e longas-metragens que retratam a vida provinciana da região no início da era automobilística.  

O Mundo de Anônimo Jr. e O Pão Nosso de Cada Dia são filmes de sua lavra que se tornaram cults para um público restrito e interessado. Nessas obras o morador do Grande ABC se enxerga em dimensão maior na tela, lotando o carro com boias e bolas plásticas coloridas para passar o fim de semana nas praias de Santos. Feldman foi homem de ideias, roteirizava sonhos e morreu pobre. Deixou como herança um filho poeta, Cláudio Feldman. 

O Grupo Teatro da Cidade (GTC) foi o principal produto cultural de exportação gerado pela região. Participou de festivais internacionais e atraiu para a região plateias vizinhas, de cidades da Grande São Paulo. Comandado por Antonio Petrin e Sonia Guedes, apresentou comédia de costumes em Mirandolina, inaugurou o Teatro Municipal de Santo André com A Guerra do Cansa Cavalo, ampliou o conhecimento histórico encenando o musical Aleijadinho Aqui Agora, discutiu religiosidade e populismo em O Evangelho Segundo Zebedeu, experimentou vanguarda em O Incidente no 113 e fez dura crítica à classe média alienada com montagem da peça Mumu, A Vaca Metafísica. 

Marasmo cultural  

Quem se incomoda com o marasmo cultural que impera no Grande ABC deve imaginar a importância que esse grupo teve. Formou atores locais como Henrique Lisboa, os irmãos Analy e Amaury Alvarez, Silvio Rossetti e Sérgio Oliveira. Trouxe de fora atores que se tornariam ícones do teatro brasileiro, como Antonio Fagundes, Sônia Braga, Carlos Augusto Strazzer, Antonio Pitanga e Tânia Alves. E foi dirigido por gente da competência de Silney Siqueira, que chegava para os ensaios com roupa de executivo -- gravata e mala 007. O grupo teve uma peça censurada pela ditadura militar: A Heroica Pancada.   

Enciclopédias como Barsa e Delta Larousse abrem espaço para o artista plástico Luiz Sacilotto, um dos nomes mais expressivos da pintura concreta no Brasil. Ex-funcionário da área de desenho industrial da extinta Fichet, Sacilotto é cultuado no círculo fechado dos admiradores da arte. Manteve durante anos ateliê na Rua Senador Fláquer. Disseminou em Santo André a obra do irlandês James Joyce -- autor de Ulysses, a grande obra literária do século --, de quem é cultor. Geometria e movimento são ingredientes essenciais de suas telas. Os desenhos andam -- em linha reta, em círculos, se cruzando. Sacilotto não para de produzir. É o responsável pelo novo desenho do piso do Calçadão Oliveira Lima, em Santo André. 

Grandes nomes da música contemporânea internacional lançaram seus olhares sobre São Bernardo no curto período dos anos 70 em que a então Capital do Automóvel abrigou o Instituto de Artes do Planalto, da Faculdade de Música Maestro Julião, da USP (Universidade de São Paulo).   

Por dois anos consecutivos o instituto trouxe para o Grande ABC compositores do mundo inteiro. O austríaco Max Deutsch, último aluno vivo da Escola de Viena, que estudara com Arnold Schoemberg, o criador da música atonal, participou de congresso internacional em São Bernardo. Foi duplamente festejado, pois descobriu-se também que fora amigo de Sigmund Freud, o pai da psicanálise. Deutsch trocou longos papos com pessoas da região sobre Schoemberg e Freud no restaurante do Binder Hotel, onde ficou hospedado. 

Piano alugado  

No mesmo Binder residiam o maestro e compositor francês Michel Phillipot e sua mulher, a pianista brasileira Ana Stella Schic. Phillipot, que recebeu título de cidadão sanbernardense, dirigiu o Instituto de Artes do Planalto e hoje mora na França. Ana Stella, concertista internacional, ensaiava seu repertório no quarto do hotel, em piano alugado.  

Eram felizes os hóspedes do Binder, que dispunham de música clássica da melhor qualidade e deparavam no saguão com artistas do gabarito dos maestros Guerra Peixe e Eleazar de Carvalho. O Grande ABC produziu pelo menos um músico contemporâneo, o andreense Wilson Roberto Sukorski, que hoje reside em São Paulo e se dedica a descobrir novas sonoridades eletroacústicas. Sukorski é autor da música incidental da trilha do filme brasileiro Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral. Seu irmão Carlos Sukorski, compositor que ainda reside em Santo André, é autor da música tema do mesmo filme. 

Miller Paiva, outro personagem dos anos 70, era frequentemente acusado de elitista por grupos de teatro amador que reclamavam não ter vez no Teatro Municipal de Santo André. O espaço cênico era um dos mais modernos da América do Sul, com impecável sistema de iluminação e isolamento acústico. Apaixonado por arte, Miller era secretário da Educação, Cultura e Esportes de Santo André e disponibilizou verbas que subvencionaram estreias nacionais de espetáculos como O Homem de La Mancha, com Paulo Autran e Bibi Ferreira, e o show Qualquer Coisa, de Caetano Veloso. Todas as peças montadas pelo Grupo Teatro da Cidade receberam recursos oficiais.  

Nos anos de Miller Paiva, o Teatro Municipal de Santo André oferecia espetáculo todo fim de semana. Para subvencionar espetáculos o secretário exigia ingresso barato para que estudantes pudessem frequentar teatro. 

Ficou para o fim, estrategicamente, a lembrança de Antonio Chiarelli, símbolo do que um homem de caráter faz pelo que ama. Comerciante de móveis e eletrodomésticos na Rua Luiz Pinto Fláquer, em Santo André, Chiarelli perdeu tudo o que tinha por amor ao teatro. Ator, diretor e presidente da Sociedade Cultura Artística de Santo André, largava a loja na mão de funcionários para providenciar figurinos e cenários a espetáculos de grupos amadores. Tirava dinheiro do bolso para pagar despesas. Gostava de contar histórias dos tempos em que pisara num palco pela primeira vez, como integrante de grupo teatral patrocinado pela Rhodia. Chiarelli acreditava no Grande ABC. Ergueu a bandeira do teatro até o último instante de sua vida. Participou como coadjuvante de montagens do Grupo Teatro da Cidade. Morreu pobre. 



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