A jornalista Malu Marcoccia esculpiu na edição de fevereiro de 2000, ou seja, no começo deste século, um breve, emocionante e ilustrativo perfil do também jornalista Ademir Medici. Qualquer interpretação que remeta esse longevo profissional da informação ao passado sem ramificações com o futuro é um erro crônico: Ademir é um privilegiado futurista do traçado social e econômico do Grande ABC porque as fundações culturais são a base de narrativas que ultrapassam a formalidade do tempo.
Traçar com linhas editoriais sólidas e estilísticas os ativos pessoais do Grande ABC também era uma das marcas da revista de papel LivreMercado. A cada nova edição um novo personagem saltava às páginas.
A premissa de que não existe transformação social sem agentes ativos em todas as áreas mobilizava LivreMercado a perscrutar exemplares. O Grande ABC individual sempre foi mais rico que o Grande ABC coletivo. Ademir Medici é prova disso.
Ademir Medici é aquele amigo que respeitamos e cultivamos sem a necessidade de cumprimentos e abraços frequentes. Lê-lo no Diário do Grande ABC é uma forma de, com pandemia ou sem pandemia, tornar a distância contraponto à ditadura da proximidade física como sinônimo de companheirismo e respeito.
Esta é a centésima-vigésima-quinta edição da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País – uma junção de LivreMercado e CapitalSocial.
O construtor
do passado
MALU MARCOCCIA - 05/02/2000
Um Grande ABC que vai além do nacionalmente conhecido parque automotivo, das atividades industriais importantes que se projetaram a partir daí e da ruidosa mobilização sindical que enfrentou a ordem política nos recentes duros anos de farda do governo. Por trás desses fatos mais contemporâneos, há uma região que poucos conhecem e que só é trazida a público graças a registros históricos que o jornalista e escritor Ademir Medici resgata diariamente há pelo menos 12 anos, num trabalho quase messiânico. Sua coluna Memória, publicada no Diário do Grande ABC, recebe de cinco a seis cartas todos os dias.
O inovador nesse empenho raro de revirar os destroços de uma região que foi a antessala do poderio econômico do Estado de São Paulo é que o passado é remontado não só por documentos e imagens antigas. Ademir faz questão de fugir da colagem de clichês de relatórios e papéis oficiais e vai buscar a narrativa de vida das pessoas.
É o que ele chama de história oral, de arquivos vivos que encontra no fundo da memória de imigrantes pioneiros que ainda residem por aqui ou dos descendentes que guardaram como joia rara os relatos e documentos de avós e bisavós desbravadores.
Paciência franciscana
Ah, não fosse a paciência franciscana de Ademir, que só se altera nos jogos decisivos do seu Corinthians, e o Grande ABC não saberia que nestas antigas terras de Piratininga o modernoso Carrefour Vergueiro hoje ocupa o lugar da Fazenda São Bernardo, fundada no início do século XIX pelos beneditinos. Nem desconfiaria que o 2º Cartório de Imóveis de São Bernardo guarda escrituras de alforrias de escravos da antiga vila.
Sequer teria detalhes da briga em Santo André dos chefes políticos Flaquer com os Cardoso Franco durante a República Velha. E o inesquecível Adoniran Barbosa, aquele que eternizou Sampa no samba, que não saía do Clube Primeiro de Maio?
Sabiam que o pastor André NGuina Quiaba, hoje um missionário de Rudge Ramos, foi da guarda pessoal de Fidel Castro? E que tal essa: Nova Granada, no Interior paulista, é cidade-irmã de São Caetano por decreto de 1969 do prefeito Oswaldo Massei, mas ninguém mais fala disso nestes tempos em que o descolado é trocar bandeirinhas com cidades europeias.
"É impossível conhecer o hoje sem recorrer ao passado. A história não é só retrospectiva de vida, mas ferramenta para construir uma sociedade mais justa. Podemos aprender muito com o passado para extrair o que teve de bom e consertar os erros" -- teoriza esse autêntico batateiro de São Bernardo, que nasceu há 49 anos no Bairro Assunção, onde se instalaram os bisavós vindos do norte da Itália, e estudou no velho Leonor Mendes de Barros, um marco da cidade.
Trajetória no Diário
Foi para a Capital cursar Jornalismo, na tradicional Cásper Líbero, e voltou para trabalhar na região. Fez toda a trajetória praticamente dentro do Diário do Grande ABC, onde começou em 1968, quando o jornal ainda estava sediado numa casinha em frente à sede atual da Rua Catequese.
Voz pausada, jeito tranquilo, hoje mais dedicado à literatura, Ademir Medici não deixa de ser inquieto como todo bom jornalista. Lamenta que a história é pouco retratada pela mídia de massa como jornais, rádio e TV, circunscrevendo-se a livros e documentários de revistas.
Mais ainda: queixa-se que jornalistas, que têm visão mais aberta dos fatos, não escrevam sobre a memória. "Deixam a tarefa para acadêmicos ou representantes de poderes públicos, que acabam relatando somente histórias oficiais" -- cutuca.
Para fazer o contraponto, Ademir resolveu ouvir, ouvir e ouvir. Cada documento ou fotografia que lhe chega às mãos tem de ter a contraface da história oral, como enfatiza. É raro não vê-lo conversando com moradores mais velhos dos bairros, com o trabalhador mais antigo da fábrica, com o neto do primeiro comerciante da rua. Até andou de ônibus com prefeitos, como fez com Aldino Pinotti em São Bernardo. "Os prefeitos de hoje deveriam ir mais para as ruas e falar com o povo" -- provoca.
Referência sobretudo para estudantes, Ademir fornece material de pesquisa sob a estrita recomendação de a criança ou jovem se comprometer a conversar com seus antepassados. Para historiadores e pesquisadores, é comum passar documentos com a devida indicação de três ou quatro nomes para serem entrevistados. "Não podemos abrir mão das histórias contadas. A escritora Ecléa Bosi escreveu Memória de Velhos reconstruindo a trajetória de São Paulo a partir da narrativa dos mais antigos" -- cita.
História de gente
A longevidade da coluna Memória no Diário, a versão radiofônica que vai ao ar pela Rádio ABC semanalmente e os 20 livros que Ademir já escreveu, 11 dos quais publicados, explicam por si só o ibope da história como produto informativo feito por quem a vivenciou. Tanto que um de seus livros inéditos, Parceiros -1999, 200 páginas, é inteiramente dedicado aos que lhe têm sido fonte de informações.
"O Ademir aparece porque tem a mídia como porta-voz. Mas quem faz a coluna e os livros é essa gente toda que construiu o Grande ABC. Eles têm histórias fantásticas. No mês passado falei com Dona Virgínia Corazza Ritucci, uma senhora que fez 106 anos e estava inconformada com a enchente que mergulhou a região. Lembrou que quando lavava roupas no Ribeirão dos Meninos, hoje Ribeirão dos Couros, precisava amarrar a tábua de esfregar por causa da forte corredeira. E perguntou, na sua sabedoria: não imaginavam que aquele lugar tem tudo para encher? Como constroem avenida e deixam erguer casas ao redor?" -- conta Ademir.
São essas lições de vida que o fizeram apaixonar-se por essa área do jornalismo. A ideia de resgatar o passado de uma região hoje com sérias escoriações sociais e econômicas surgiu no final dos anos 70, a partir da série de reportagens sobre bairros levantada no Diário. Era para ser um rodízio entre repórteres, cada qual se incumbindo de uma localidade. Ademir fez a primeira matéria, a segunda, a terceira, e não parou mais.
Fontes multiplicadoras
A divulgação dos primeiros relatos fez florescer um manancial notável de informações. Moradores de todo o Grande ABC passaram a procurá-lo para passar-lhe material e contar causos. Como fazem até hoje. E lá vai Ademir perguntar, ouvir, pesquisar, escrever. Sua fidelidade à história oral é tamanha que a maior parte dos textos é colocada entre aspas, como jornalisticamente é identificado o relato do entrevistado. Ademir faz um abre, põe aspas e deixa a fonte contar.
Ademir Medici ganhou notoriedade com a reconstituição da memória da região, mas antes, em 1976, já havia experimentado um invejado momento de fama na profissão: ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo pela série de reportagens Grande ABC, A Metamorfose da Industrialização, em parceria com o companheiro de redação Édison Motta. "Foi aí que começou o amor pelo jornalismo de pesquisa, de investigação da história, pois colocamos em discussão o lado bom e o lado mal da industrialização da região" -- relata.
No Diário, Ademir ocupou praticamente todos os cargos, de repórter a chefe de redação, e passou pela maioria das editorias, de Geral e Economia à Política. Qualquer que fosse o tema, a preocupação era sempre abordar o lado social, dos excluídos, dos derrotados, como diz. "Sempre escapei do oficialesco, das celebridades" -- conta.
A comichão do repórter, a inquietação com as injustiças, o dever de apontar os erros dos políticos, a vontade de fazer da Imprensa um canal de manifestação da sociedade levavam Ademir a transbordar na produção. Escrevia reportagens, matérias especiais, editoriais, crônicas -- tudo tendo ao lado mestres da grandeza de José Louzeiro, Fausto Polesi, Lourenço Diaféria, alguns dos nomes que considera medalhões do jornalismo de São Paulo.
Filho vira pseudônimo
Ademir era tão incansável no texto que dividia as assinaturas com o pseudônimo J.Henrique -- referência ao filho João Henrique, hoje com 23 anos e -- trama do destino? -- jornalista como o pai, já batalhando no recém-criado jornal Agora, do Grupo Folha de São Paulo. Cláudio Roberto, o caçula com 20 anos, estuda Veterinária.
"Vou te contar uma coisa: não fosse escrever sobre memória, teria saído do jornalismo. E não fosse o jornalismo, certamente seria marceneiro, como meu pai" -- fala com a habitual serenidade essa espécie de salvador da história do Grande ABC, que desde setembro montou espaço próprio de trabalho numa casa do sogro desocupada na Vila Coppini, no antigo núcleo colonial São Bernardo Novo. "Aqui é muito bom, um bairro bastante residencial. Ninguém reclama das cachorras porque todos têm cachorro em casa. E passa carro tocando música italiana e vendendo pizza" -- entusiasma-se, com os olhos sorrindo de quem conquistou mais uma etapa da vida.
Ademir trabalhava no apartamento em que mora no Centro de São Bernardo e -- não que alguém reclamasse, como sublinha -- ocupava um dos dormitórios como um verdadeiro baú do Grande ABC, onde armazenava ao redor do computador dezenas de caixas com documentos, livros, coleções e objetos antigos. Tem como princípio não guardar nada do que lhe doam e seja inédito. Repassa praticamente tudo aos museus e outros espaços de preservação da história dos sete municípios da região. Mas muito material é particular e de pesquisa para seus livros, que escreve a partir das narrativas mais curiosas e ruidosas.
Costuma fuçar bibliotecas, arquivos municipais e do Estado, estações de estudos como as da Unicamp e a Biblioteca Mário de Andrade, um templo dos historiadores cravado na Rua Xavier de Toledo, na Capital.
Entre cães e pássaros
Ademir tem quase quatro paredes de estante, que aos poucos vai colocando em disquetes de computador. Conseguiu reunir material suficiente para contar toda a história política, de formação urbana, econômica, cultural e esportiva do Grande ABC. Levou tudo para a nova casa, que divide com as cadelas Tieta, de 12 anos, e Branquinha, de um ano, recolhida na rua.
Também tem a companhia de oito pássaros. Vai a pé do Centro até a Vila Coppini, onde não esqueceu de montar uma cama para as prováveis noites que vai virar trabalhando, pois está atrasado na montagem dos livros Os 86 Anos do São Caetano Esporte Clube (1914-2000) e Os 100 Anos da Sociedade Cultural Ítalo-Brasileira, prometidos para maio e setembro, respectivamente.
Por enquanto, volta para casa onde mora antes da novela das oito. Ademir está extasiado com a reconstituição da trajetória dos imigrantes na novela Terra Nostra, da TV Globo, cuja produção veio buscar subsídios de famílias do Grande ABC. Também apreciou a montagem da minissérie A Muralha, que relatou a saga dos primeiros bandeirantes e fez citações à região.
Por mais que conheça como poucos a narrativa de Terra Nostra, vibra em saber que uma superprodução, em linguagem popular, está buscando tijolos para reconstruir para milhões um pedaço do passado.
"Não tem nada mais gostoso do que ver os costumes, o jeito de pensar e agir dos antigos. É isso que sublinho na memória: extrair e aplicar o que houve de bom" -- volta a apontar, citando experiências que viu pessoalmente nas recentes viagens que fez à Itália e depois à Espanha e Portugal, onde, em vez de grandes museus, agora é a vez do que chamam de ecomuseu.
São espaços específicos de preservação, como escolas, clubes esportivos, sociedades de bairros e entidades empresariais que guardam suas próprias referências. "Por que as empresas no Brasil não fazem isso? Em vez de editar agendas todo ano, por que não montar um livro sobre sua origem e trajetória? Temos a Lei Rouanet, de incentivos fiscais, tão pouco usada para isso" -- lamenta, citando iniciativas isoladas como as da Rhodia e da General Motors, que acabam de completar 80 e 75 anos de Brasil, respectivamente, com ricas publicações. Nos Estados Unidos, prossegue Ademir, os mais velhos agrupam-se na forma de conselhos comunitários em suas respectivas especialidades para passar experiências aos mais jovens. Aqui, aposentados põem o pijama ou vão pescar.
Mas Ademir não desiste. Não consegue dar marcha à ré na missão de salvar a memória e se debruça em mais um desafio, por enquanto batizado de Subsídios Históricos. Trata-se de uma megacronologia do Grande ABC que pretende jogar na Internet e escrever a milhares de mãos. Já montou quatro disquetes com datas da história oficial. Agora quer que todos -- escolas, historiadores, pesquisadores, oriundi e descendentes, autoridades e gente comum -- acrescentem a história real. Bastará acessar o site, acrescentar depoimentos referentes à data e deixar à disposição da rede mundial de computadores.
Anarquistas e comunistas
E todos saberão da saga dos Pinchiari, Zagnolli, Cestari e Marson de São Bernardo; dos Scarpelli, Veronesi e Raminelli de Santo André; dos Rossi de Mauá e dos Lorenzini e Bertochi de São Caetano. Vamos conhecer melhor sobre os anarquistas e comunistas do início do século que tantas sementes lançaram no movimento sindical. Saber, inclusive, que o marceneiro Armando Mazzo, que ganhou a eleição para prefeito de Santo André, e outros operários eleitos vereadores em várias cidades paulistas não assumiram porque eram comunistas, como resgatou Ademir em seu mais recente lançamento, 9 de Novembro de 1947: A Vitória dos Candidatos de Prestes.
E quem imaginaria que foram os Martinelli que criaram o primeiro açougue e matadouro municipal do início do século, depois comprado pela famosa Swift, que também desapareceu? Que Rudge Ramos chamava-se Bairro dos Meninos, mas teve de ser rebatizado para homenagear o delegado Arthur Rudge Ramos, que havia restaurado a Estrada Velha do Mar? E que Raul Gil, o apresentador famoso da Rede Record, trabalhou na Termomecânica do lendário Salvador Arena? Ou que na Fiação Tognato, de São Bernardo, Ivone Scarpelli é funcionária há mais de 50 anos e é provavelmente a mais antiga tecelã na ativa, pois trabalha desde 1937? Que o Rei Pelé, como jogador profissional, fez seu primeiro gol no Corintinha de Santo André?
É, sem dúvida, a memória deixando a escuridão, como escreveu Ademir em uma de suas obras. Ele encontrou uma forma especial de desconstruir o oficial do Grande ABC e propiciar por alguns valiosos momentos de leitura um rompimento com o dia-a-dia da hoje angustiante metrópole e uma reconfortante viagem a um passado menos atribulado e mais cheio de esperanças.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)