Imprensa

30ANOS: Cluster não passa
de especulação fantasiosa

DANIEL LIMA - 04/09/2020

Quem ainda não entendeu a linha editorial da revista de papel LivreMercado, seguida à risca por CapitalSocial da mesma genealogia diretiva, terá um exemplo cabal no que segue abaixo. Na edição de fevereiro de 2000, LivreMercado se contrapôs a um acadêmico então servidor público de Santo André. O conceito de cluster, modalidade que ganhou nomenclatura tropicalizada neste século (Arranjo Produtivo Local) foi bombardeado pela publicação.  

Esta é a centésima-vigésima- sexta edição da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, junção de LivreMercado e de CapitaSocial.  

Cluster? Quem

falou em cluster? 

 DANIEL LIMA - 05/02/2000   

A Prefeitura de Santo André está cautelosa, muito cautelosa, para implementar o projeto de parque industrial do setor de confecção e vestuário. O responsável pela ideia e pelo anúncio do projeto, o professor Antonio Joaquim Andrietta, do Imes (Instituto Municipal de Ensino Superior) de São Caetano, é obcecado por cluster, embora tenha dificuldades de entender o significado prático da expressão. Ele afirma que o cluster de confecção e vestuário de Santo André abrigaria cerca de 500 empresas com faturamento em torno de R$ 100 milhões por ano, gerando aproximadamente 10 mil postos de trabalho diretos e 20 mil terceirizados, e poderia ser lançado até o meio deste ano. 

Joaquim Andrietta não descansa enquanto não vir traduzido em realidade o conceito particular de cluster. Resumidamente, cluster significa a concentração setorial e cooperativa de todas as etapas de produção. Cluster de verdade, no amplo sentido do conceito, jamais existiu no Grande ABC.  

Contrariamente ao que defende o professor do Imes, nem mesmo os setores automotivo e moveleiro, movidos historicamente pela concorrência e pela pressão dos fornecedores pelas montadoras, se enquadram no sistema.  

Recentemente, Andrietta anunciou que o Bairro Jardim, em Santo André, reúne características de cluster no setor de prestação de serviços médicos por causa de clínicas especializadas, hospitais, laboratórios, consultórios médicos e odontológicos, lojas de materiais cirúrgicos e escritórios de plano de saúde.  

Além de não preencherem todas as etapas conceituais do sistema -- não conta com matéria-prima produzida localmente, por exemplo -- as empresas que formam o polo são tremendamente concorrenciais entre si. Isso contraria um dos pressupostos básicos do modelo, além de não oferecerem complementariedade estratégica e econômica. Em resumo: formam um aglomerado que não guarda qualquer semelhança com o cooperativismo próprio dos clusters.      

Outro aglomerado 

O Bairro Jardim do Mar, em São Bernardo, não mencionado pelo professor Joaquim Andrietta como exemplo de suposto cluster, tem características semelhantes às do Bairro Jardim. A concentração de unidades voltadas à área médica é cada vez maior no entorno da Avenida Lucas Nogueira Garcez, uma das ligações do Município com a Via Anchieta, mas, como em Santo André, prevalece a individualidade. A sinergia é rarefeita.  

Só empreendimentos que contam com os mesmos acionistas praticam negócios sequenciais.  Nesses casos, a criação de empresas sob o mesmo guarda-chuva é prática isolada, sem conexão com o conjunto dos empreendedores, e decorreu justamente da necessidade de reduzir custos próprios e de avançar receitas atendendo a terceiros. 

O professor Joaquim Andrietta afirma que a principal vantagem da criação do cluster de confecção e vestuário em Santo André é o custo de viabilização, relativamente baixo diante do retorno em dois ou três anos, traduzido em aumento de 12% no faturamento e renda, segundo suas estimativas. "Esse segmento industrial não requer muitas especialidades da mão-de-obra. É possível absorver desde o jovem sem qualificação ao aposentado que está parado há algum tempo, sendo a grande maioria formada por mulheres" -- disse o professor ao Diário do Grande ABC.  

Afirmou também que o maior número de empresas que formam o setor são pequenas, necessitando de pouco espaço físico. "É um segmento que não gera poluição ou barulho excessivo, podendo ser fixado em qualquer área, inclusive residencial" -- completou.  

Coordenador da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e de Trabalho de Santo André, Nívio Roque já se reuniu com Joaquim Andrietta e espera encontrar meios para materializar o projeto. Antecipa que não se pretende reduzir impostos para atrair interessados, mas sim facilitar negociações para garantir linhas de crédito. Nívio Roque ocupa há pouco mais de 30 dias um cargo público, depois de longa experiência na livre iniciativa, sobretudo no setor petroquímico.  

É possível que Joaquim Andrietta lhe tenha contado um segredo que estabeleça a divisão entre o possível e o sonhado para o cluster de confecção e vestuário de Santo André? Se cada vez mais há concentração de negócios setoriais, com as grandes corporações participando do jogo da globalização, como será possível um polo de baixa tecnologia e de investimentos modestos resistir ao jogo do mercado e seduzir a participação de tantos empreendimentos?  

A alta mortandade é uma das marcas da área de confecção e vestuário no Brasil exatamente porque os pequenos estão entregues à feroz competição nacional e internacional, em que não falta abundância de armas técnicas da cadeia de produção.  

Interrogações 

Por não ter essa e tantas outras respostas, Nívio Roque já marcou encontros com pequenos empreendedores do segmento para prospectar o terreno em que eventualmente a Prefeitura de Santo André vai pisar. Um deslize pode ser comprometedor politicamente num ano de disputa pelo Paço Municipal. Reduzir o desemprego por meio de um nicho organizado de produção é a melhor notícia que uma Administração Pública pode oferecer. O reverso da moeda é que uma falsa expectativa de melhoria do quadro socioeconômico no Município que mais arrecadação de impostos perdeu no Estado de São Paulo nos últimos 23 anos pode provocar um rombo na credibilidade de um prefeito que concorre à reeleição.  

Por isso mesmo Nívio Roque afirma que está tomando todas as providências para não transformar a proposta de Joaquim Andrietta num eventual bumerangue. Executivos da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Emprego da Prefeitura de Santo André, segundo Nívio Roque, estão mantendo contato com responsáveis por alguns dos clusters em atividade no Brasil. "Só levaremos essa ideia para o secretário Nelson Tadeu Pereira depois de análises profundas sobre a viabilidade de ser implantada. De antemão, posso dizer que temos muitos pontos de interrogação. Além disso, a Prefeitura jamais iria implantar a proposta diretamente. O que faríamos seria, na verdade, facilitar o projeto" -- afirma Nívio Roque. 

Joaquim Andrietta fundamenta a proposta entregue à Prefeitura de Santo André citando o paulista setor calçadista de Franca como exemplo de sucesso a ser copiado. Referindo-se propriamente a confecção e vestuário, entende o professor do Imes que os bairros do Pari e Bom Retiro, em São Paulo, são os mais tradicionais da atividade, mas mesmo assim insuficientes para a demanda. Faltam dados econômicos, entretanto, para sustentar a proposta. Além do que, em nenhum dos casos se consagra o conceito de cluster.  

O que é? 

Membro do Instituto para Desenvolvimento e Paz da Universidade de Suisburg, Alemanha, Jörg Meyer-Stamer é consultor da Fundação Empreender, de Joinville, e consultor do Instituto Euvaldo Lodi, da Fiesc (Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina). No ano passado ele desenvolveu para o Ildes (Fundação Friedrich Ebert), de São Paulo, o artigo Estimular o Crescimento e Aumentar a Competitividade no Brasil, no qual trata de dois clusters brasileiros, em São Bento do Sul e em Criciúma.  

Ele define cluster como um polo industrial formado por empresas do mesmo ramo (por exemplo: calçados, roupa de cama, mesa e banho, ou cerâmica branca) junto com fornecedores de insumos, fabricantes de bens de capital e prestadores de serviços especializados.  

Sobre o cluster moveleiro de São Bento do Sul, Meyer-Stamer escreveu: "O que é necessário é uma mudança na cultura de negócios local. Até agora, há uma feroz rivalidade, um comportamento predatório em várias instâncias, e dificilmente qualquer tipo de cooperação, colaboração ou ação coletiva. (...) São Bento é um típico exemplo de cluster não cooperativo, que se beneficia de vantagens passivas (como a disponibilidade de trabalhadores, fornecedores e subcontratastes experientes e de agentes de exportação), mas dificilmente apresenta qualquer vantagem de forma ativa. (...). Em termos práticos, é necessário criar cursos locais em todos os níveis para os empregados de diferentes empresas (em vez de realizar apenas treinamentos internos), organizar viagens ao Exterior para visitas a clusters altamente competitivos e organizar visitas a feiras, com a finalidade de descobrir as inovações no setor; além de disseminar informações a respeito de novas tendências na demanda final. (...) Tais atividades poderiam contribuir para uma modificação da mentalidade, criando as condições para empreendimentos cooperativos mais ambiciosos, como compras em grupo, um consórcio exportador ou atividades conjuntas para novos projetos".  

Que cluster!  

Já com relação ao cluster da indústria ceramista produtora de ladrilhos em Criciúma, Santa Catarina, o professor alemão afirma tratar-se de exemplo positivo de ação local para criação coletiva de vantagem competitiva. 

"Empresas de Criciúma são responsáveis por cerca de 30% de toda a produção de ladrilhos cerâmicos no Brasil e por 70% das exportações. Em termos de tecnologia produtiva, parecem estar próximos dos competidores italianos e espanhóis de ponta, e introduziram novas técnicas administrativas de uma maneira mais abrangente do que empresas de outros setores. As empresas estão informalmente colaborando entre si; as associações comerciais têm papel muito importante e o ramo todo tem participado ativamente da preservação do meio ambiente (...) As empresas têm desenvolvido grande esforço no treinamento em todos os níveis, entre outras razões, para criar a base para uma ampla aplicação de técnicas de controle de qualidade, como controle estatístico de processos (...) Diferentemente de outros setores, é perfeitamente normal que um concorrente visite as fábricas dos competidores. Algumas dessas fábricas levam a efeito com regularidade exercícios de benchmarking. Fornecedores de insumos e vendedores de equipamentos estimulam as trocas entre as empresas (...). Os participantes locais compartilham a noção de que empresas locais devem permanecer unidas a fim de manter posição em relação aos competidores domésticos. (...). Os engenheiros destas empresas garantem que a sua tecnologia produtiva está inteiramente padronizada, de forma que há pouco perigo de se perderem segredos cruciais através da troca de informações entre as empresas. Isto, tendo-se em vista o padrão competitivo, tem importante papel para explicar a cooperação. As vantagens competitivas estão mais exatamente em um design original e na logística. (...) O sindicato local das indústrias ceramistas exerce papel crucial, estimulando o intercâmbio entre as empresas. (...). As empresas locais e o sindicato também formulam e implementam medidas para criar vantagens locais. Há muito tempo uma das duas maiores empresas criou a sua própria escola técnica e, em 1991, a abriu para estudantes de empresas concorrentes. (...). As empresas pressionaram as universidades locais a oferecerem cursos de especialização para técnicos em tecnologia cerâmica, e pressionaram o Estado para que autorizasse esse curso no prazo de um ano".  

Apenas um sonho 

O exemplo de Criciúma, sobre o qual Santo André busca informações, comprova que a existência de cluster no Grande ABC é apenas sonho. A histórica omissão do Poder Público e de entidades de classe sobre o assunto, o individualismo autofágico dos empreendedores e o perverso estímulo à concorrência predatória das grandes empresas em relação aos fornecedores transformaram a região num imenso campo de batalha empresarial sob olhares complacentes de desinteressados administradores públicos, que se locupletaram com a compulsoriedade dos tributos.  

Agora a situação é outra. A biruta virou. As perdas líquidas de receitas tributárias se multiplicaram na mesma proporção da avalanche de demandas sociais de desemprego cada vez mais avassalador, de deserções empresariais ainda inquietantes e de insuportável ausência de políticas econômicas regionais que deem suporte legal aos pequenos empreendimentos sem enxotar os grandes.  

As administrações públicas do Grande ABC movem-se num tabuleiro de xadrez que lhes parece enigmático. Há uma dissimulada competição interna por investimentos que possam compensar parte das perdas de arrecadação tributária, mas sobretudo porque descobriram-se órfãs da guerra fiscal que sucessivos governos paulistas assistiram com a arrogância dos autossuficientes e a pouca responsabilidade de quem se julga inabalável.  

É até aceitável, portanto, que num quadro de horrores como o atual, em que as tentativas de negar o esvaziamento econômico da região soam como anedota em velório, surjam tentativas miraculosas de pseudos salvadores da pátria. Para ingressar no mundo dos clusters, no sentido exato do conceito, falta ao Grande ABC de forma conjunta e aos municípios de forma específica muito mais que perscrutar exemplos de sucesso. Organizar-se internamente é condição inegociável. E isso leva tempo e vontade política.  



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