O fechamento da Ford em 2019 é um enredo só aparentemente curto, como se algo circunstancial houvesse ocorrido a determinar o encerramento de atividades na fábrica do Taboão, em São Bernardo. Algo como espécie de um vírus mortal no setor automotivo. Um Coronavírus, para ser mais claro, que só atingiria as finanças das empresas automotivas.
Nesta matéria assinada pelo jornalista Rafael Guelta, edição de março de 2000 da revista de papel CapitalSocial, o que se configurava e se sustentava mesmo como instinto de sobrevivência provavelmente esticou o prazo de validade da unidade norte-americana até o limite possível.
Esta é a centésima-trigésima-primeira edição da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, de LivreMercado e da revista digital CapitalSocial.
Um prêmio à
competência
RAFAEL GUELTA - 05/03/2000
Instinto de sobrevivência também vale para fábricas. É assim que se explica a revolução tecnológica e produtiva operada nos últimos três anos, em meio a um turbilhão de adversidades, na planta da Ford Motor Company Brasil no Bairro do Taboão, em São Bernardo. Em dezembro de 1999 a fábrica obteve da matriz, em Detroit (EUA), a única certificação de qualidade QS 9000 entre as 33 plantas da companhia nas três Américas. A conquista inédita, que coloca a subsidiária brasileira à frente das demais em qualidade, produtividade e competitividade, tem valor de renascimento para a terceira maior indústria automobilística do planeta.
A operação da gigante norte-americana esteve ameaçada de sucumbir no Brasil depois da fracassada associação com a alemã Volkswagen na extinta holding Autolatina, entre 1986 e 1995. E passou por outro mau momento no Natal de 1998, quando foram demitidos quase 40% dos funcionários de São Bernardo.
A importância do QS 9000 é maior na medida em que se mergulha na recente história da Ford no Brasil. Acionista minoritária na associação de 11 anos com a Volkswagen, a Ford saiu da Autolatina em desvantagem, sem produtos competitivos para disputar a preferência do consumidor brasileiro. Enquanto a ex-parceira se fortaleceu e manteve-se líder no mercado, a Ford perdeu mais da metade da participação, que chegou a ser de 25% na fase áurea anterior à holding.
Coincidiu ainda com a traumática separação o fato de o Brasil ingressar na economia globalizada. Agilidade para vencer a concorrência e redução de custos passaram a ser metas perseguidas a toda velocidade pelo setor automobilístico a partir de 1995. A reação da Ford ocorreu na forma de investimentos -- inicialmente US$ 2,5 bilhões em três anos --, modernização de gestão e linhas de produção, o projeto global Ford 2000 e demissão em massa.
Não é difícil imaginar a situação em que fica uma empresa depois do insucesso de uma megafusão na qual é acionista minoritária. A Ford perdeu cultura e personalidade. Mais que isso: saiu da Autolatina com tecnologia defasada, que o mercado calcula em 15 anos. Os conceitos que vigoravam na gestão e na manufatura da Autolatina eram heranças da ex-parceira alemã.
Temerosa de que a Volkswagen conhecesse seus projetos estratégicos de âmbito mundial -- pois a holding valia apenas para as 14 plantas industriais das duas montadoras no Brasil e na Argentina --, a Ford brasileira praticamente perdeu contato com a matriz. Recuperar o negócio implicou em reconstruir a cultura perdida à custa de treinamentos intensivos que ocuparam milhares de horas e consumiram milhões de reais. Também foram acelerados os investimentos em modernização física e novas tecnologias. Mais de uma centena de robôs operam hoje na planta do Grande ABC.
Paralelamente, foi preciso reaproximar a filial brasileira de Detroit. Para restabelecer contato permanente com a matriz, a Ford criou no Brasil a figura do chairman, cargo ocupado obrigatoriamente por um vice-presidente mundial que fala sem intermediários com o presidente Jack Nasser. James Padilla, executivo norte-americano que salvou da falência a Jaguar, subsidiária inglesa da Ford, foi o primeiro ocupante do posto.
Quem está em seu lugar é Terry de Jonckheere, que assumiu em 6 de janeiro. É famoso o episódio que narra a primeira visita de James Padilla ao então escritório da Ford no Centro Empresarial, em São Paulo. "Onde está a fábrica?" -- perguntou Padilla ao aproximar-se da janela. Menos de um ano depois, todos os executivos da montadora voltaram a dar expediente em São Bernardo e a empresa economizou mais de meio milhão de dólares mensais em despesa de aluguel.
Com produtos pouco atraentes para o típico consumidor brasileiro de baixo poder aquisitivo -- casos do Del Rey e Versailles, automóveis sofisticados fabricados nos anos 80 e início dos 90 --, a montadora do Bairro do Taboão enfrentou dificuldades para inserir-se na era do carro popular, que representa hoje quase 70% do mercado nacional. Volkswagen, General Motors e Fiat contavam com veículos criados para esse mercado que, em maior ou menor proporção, caíram no gosto do consumidor.
A Ford saiu do zero. Primeiro teve de improvisar. Criou versão 1.0 do Escort, o Hobby, que não emplacou. Só em 1996, a partir do lançamento do Fiesta, veículo mundial manufaturado dentro dos conceitos de globalização, a companhia deu provas de que estava disposta a retomar seu naco perdido no Brasil. Mas foi o pioneirismo do lançamento do primeiro carro subcompacto fabricado no País, o inovador Ka, em 1997, que fez a marca saltar novamente aos olhos do consumidor.
Demissão em massa
Teria sido maravilhoso se a recuperação da Ford brasileira dependesse apenas do lançamento de novos produtos e da injeção de recursos financeiros. Ao mesmo tempo que encantava os olhos do consumidor com veículos de design europeu, a marca promoveu verdadeira hecatombe no fim de 1998. Numa só tacada fez o que as concorrentes realizavam em menor escala, ou até em conta-gotas -- demitiu 3,6 mil funcionários, praticamente 40% de toda a mão-de-obra da fábrica de São Bernardo.
Pela primeira vez na história a indústria automobilística brasileira deparava com fato de tamanha dimensão. A demissão em massa, que provocou greve e reacendeu temporariamente a chama da resistência sindical no Grande ABC, estava prevista desde 1997. Na festa de lançamento do Ka, naquele ano, o então presidente da companhia no Brasil, Ivan Fonseca e Silva, afirmara que a planta do Taboão estava com mais da metade da mão-de-obra ociosa.
Como explicar, então, o fato de trabalhadores com fama de aderência sindical expostos a tantas adversidades conseguirem ajustar índices de produtividade, tornarem mais ágil e competitiva a linha de montagem e mais racional o sistema de gerenciamento da fábrica? Para Roberto Kuahara, gerente de Qualidade Assegurada da Ford brasileira e coordenador do programa QS 9000, só existe uma resposta: "Instinto de sobrevivência".
Engenheiro formado pela Universidade Mackenzie e egresso da Autolatina, Kuahara lembra que os metalúrgicos de São Bernardo corresponderam rapidamente às necessidades de modernização e reação no mercado porque estava em jogo a continuidade de seus próprios empregos. "Há consciência geral de que precisamos nos movimentar com mais rapidez e agilidade que os concorrentes" -- afirma.
Para conquistar adesão e cumplicidade dos quase quatro mil funcionários que permaneceram na planta do Taboão, a Ford foi determinada ao colocar em prática um plano que, ao mesmo tempo, valoriza o profissional e sua ação social. Mensalmente o jornal interno da companhia divulga notícias com feitos de funcionários ou de equipes que resultam em economia de materiais, melhoram o ambiente de trabalho e beneficiam entidades sociais.
As mesmas mensagens podem ser vistas nos diversos murais espalhados nas áreas de produção. A ordem na companhia é ouvir tudo o que têm a dizer os funcionários. Mesmo sugestões que não são colocadas em prática têm valor reconhecido. O conceito é elementar: funcionário valorizado veste a camisa. Foi criado na fábrica de São Bernardo o inovador SUR (Sistema Único de Representação), que une representantes da comissão de fábrica, CIPA e Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Roberto Kuahara considera que, depois de tantas transformações, os funcionários estão impregnados do que se pode chamar de Espírito Ford.
Região valorizada
A conquista do QS 9000 extrapola o portão da fábrica porque também beneficia a imagem do Grande ABC. Confirma que a região aprimora excelência na produção de veículos, por conta da cultura industrial acumulada durante décadas. É verdade que nos últimos anos o Grande ABC perdeu terreno para Minas Gerais, onde está a Fiat e para onde foi o Classe A da Mercedes, e Paraná, onde se instalaram recentemente moderníssimas plantas da Volkswagen/Audi, Renault e Chrysler. Também perdeu importante investimento da própria Ford para a Bahia, onde a corporação inicia no próximo ano a fabricação de veículos da família Amazon no Polo Petroquímico de Camaçari.
No início de 2000, contudo, as montadoras voltaram a investir nas fábricas da região. A própria Ford está transferindo para São Bernardo a fábrica de caminhões do Ipiranga, em São Paulo, e a produção da versão station wagon do Escort, manufaturado durante anos na Argentina.
No Brasil desde 1919 -- e no Grande ABC desde 1967, em instalações adquiridas da extinta Willys Overland --, a Ford ocupa em São Bernardo área de 1,25 milhão de metros quadrados, equivalente a quase um décimo de todo o território de São Caetano. Sua história no período anterior à associação com a Volkswagen foi marcada por sucessos como o lançamento do Galaxie 500, primeiro carro nacional de grande porte, e o Corcel, que ultrapassou a marca de 1,4 milhão de unidades vendidas -- pouco menos da metade do lendário Fusca, fenômeno da indústria automobilística. Roberto Kuahara diz que o passado de sucesso é ingrediente fundamental da sinergia que levou a companhia ao QS 9000. "É uma prova de poder, grandeza e expansão permanente" -- analisa.
O elogio que mais orgulha a fábrica de São Bernardo foi feito pelo auditor-líder Gary Kostela, engenheiro norte-americano que percorreu toda a planta no fim do ano passado para confirmar o QS 9000. "É a melhor estrutura da companhia no mundo. A fábrica tem um time excepcional" -- disse Kostela, referindo-se à tecnologia agregada que crescer a produtividade da mão-de-obra.
Criado pelos três maiores fabricantes de veículos do planeta -- General Motors, Chrysler (hoje associada à Mercedes-Benz) e a própria Ford --, o certificado QS 9000 é específico para o setor automobilístico e representa avanço significativo se comparado às normas e exigências do ISO 9000.
O QS é resultado dos processos de Objetivos pela Excelência, da General Motors, do Manual de Garantia da Qualidade do Fornecedor, da Chrysler, e da Norma de Sistema de Qualidade, da Ford. "O ISO consta de 20 requisitos universais. O QS agrega a esses itens vários outros que atendem às necessidades e características exclusivas da indústria automobilística. O objetivo é atingir nível de excelência que atenda plenamente a interesses de consumidores por produtos de qualidade e de fornecedores por redução de custos" -- conceitua Kuahara.
Engana-se quem até agora imaginava que a fábrica mais moderna da Ford no mundo fosse a lendária matriz, localizada em Detroit, região dos Estados Unidos que é o berço do automóvel. Antes de a planta de São Bernardo conquistar a certificação QS 9000, o título de melhor, mais ágil e competitiva fábrica da montadora pertencia à unidade mexicana de Hermocillo, direcionada quase que exclusivamente a abastecer o mercado norte-americano. Localizada na divisa entre México e Estados Unidos, a fábrica de Hermocillo não é certificada pelo QS e se manteve no topo da corporação durante cinco anos. A montadora possui somente duas outras fábricas certificadas com o QS 9000: Valência, na Espanha, e Genk, na Bélgica.
Detroit avalia
Foi o próprio escritório central de Detroit que auditou e conferiu à filial de São Bernardo a certificação de qualidade. Essa é uma das regras do QS 9000. Para ser certificada com o ISO -- e a Ford do Grande ABC possui ISO 9002, de qualidade, e ISO 14001, de meio ambiente --, a norma é que a companhia seja auditada por certificador externo.
No caso do QS todo o processo, por ser exclusivo do segmento de veículos, é realizado pela própria montadora. Isso até reforça a importância da conquista de São Bernardo, já que todas as unidades Ford contam com diretorias e gerências dedicadas à qualidade e competem duramente entre si. "Todas as fábricas da Ford nas Américas e no resto do mundo desenvolvem programas para obter o QS 9000. Para nós é motivo de orgulho estar no topo" -- afirma Roberto Kuahara.
Para se adequar aos atuais padrões de qualidade mundial da Ford, a planta do Grande ABC adotou 150 procedimentos globais que garantem padronização de gestão e manufatura. Todas as áreas da fábrica foram atingidas. "O time de São Bernardo trabalha alinhado sob um mesmo princípio. Da tecnologia aplicada à manufatura e ao controle da qualidade" -- analisa Kuahara. Na prática, isso significa que tudo obedece a normas e passa por controles -- do recebimento de materiais entregues diariamente por centenas de fornecedores à produtividade nas células de produção. "Também somos a única planta da Ford no mundo que possui o FPS (Ford Production System), norma de qualidade que exige modernização total de procedimentos e sistemas" -- acentua Kuahara. Sistema interno, o FPS da Ford é muito parecido com conjunto de normas aplicado no Japão pela Toyota, cuja linha de montagem é a mais moderna do planeta.
A fábrica de São Bernardo tem capacidade para produzir 1,1 mil veículos/dia, com índice de produtividade que a montadora considera satisfatório e que atende exigências globais: 38 veículos/homem ao ano. Atualmente saem da linha de montagem do Grande ABC o subcompacto Ka, o compacto Fiesta e a picape Courier, derivada de automóvel. No ano passado a Ford vendeu 200 mil veículos no mercado brasileiro, atingindo participação de 9,7%. A montadora não divulga números oficialmente, mas sabe-se que o faturamento da operação brasileira em 1998 ficou em torno de US$ 3,5 bilhões. A Volkswagen, maior grupo empresarial do País em faturamento, registrou também em 1998 US$ 6,6 bilhões.
Cinco mil trabalhadores atuam hoje em São Bernardo. Quase quatro mil contratados pela Ford e os demais terceirizados. Outros mil funcionários permanecem até a metade do ano em regime de lay-off por conta das 3,6 mil demissões de 1998, mas a montadora ainda não definiu como resolverá a questão.
A partir do segundo semestre chegam mais 1,2 mil funcionários, transferidos da fábrica do Ipiranga juntamente com as linhas de caminhões. Roberto Kuahara afirma que o próximo passo é a conquista da certificação Q1, prolongamento do QS 9000, voltada exclusivamente à satisfação do cliente. "As montadoras estão empatadas em tecnologia. O que vai diferenciá-las daqui para a frente é o conteúdo humano. Saber reconhecer e interpretar o desejo do cliente será o toque de Midas da indústria automobilística" -- conclui o engenheiro.
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