Imprensa

30ANOS: Mamãe Clory numa
revista econômica? Muito mais

DANIEL LIMA - 25/09/2020

O que uma mulher dedicada à caridade estava fazendo naquelas páginas da revista LivreMercado, edição de abril de 2000? Como uma revista supostamente apenas econômica abria espaço tão escancarado à solidariedade social?  

O que os leitores vão ler abaixo é uma das dezenas de perfiz que profissionais de redação da revista de papel LivreMercado fizeram ao longo dos anos com agentes sociais voluntários.  

Foi com base no pressuposto de que economia e sociedade são almas gêmeas, a linha editorial de LivreMercado contemplava mulheres (e depois homens) como Mamãe Clory, morta em 2011 aos 94 anos de idade. Foi com base nessa premissa que a Editora Livre Mercado lançou, logo em seguida, a categoria “Madres Terezas” do Prêmio Desempenho. Depois vieram os “Freis Galvão”.  

Esta é a centésima-quadragésima edição da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País – os 19 anos de LivreMercado e os 19 anos parcialmente cumulativas de CapitalSocial.   

Solidariedade

de vanguarda 

 TUGA MARTINS - 05/04/2000 

A ação social é a senha para a modernidade. Cada vez mais corporações de peso aumentam os investimentos no chamado terceiro setor. O crescimento dessas iniciativas é tanto que despertou a atenção do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial). Pesquisa inédita apontou que 49% de empresas de médio e grande porte injetam recursos em projetos sociais e que um imenso contingente não divulga apoios destinados ao lado humano dos negócios. Muito antes da sensibilidade tocar as planilhas empresariais, entretanto, a gaúcha Clory Fagundes de Marques desembarcou em São Bernardo disposta a instituir a caridade pragmática na região.  

Germinar a ideia em terreno atribulado pela expansão industrial exigiu romper dogmas culturais e modificar costumes. O caminho escolhido foi ampliar exageradamente a tarefa de ser mãe. Na época, já respondia pela tutela de 87 filhos adotivos. Trinta anos depois, a lista de dependentes de Mamãe Clory, como passou a ser chamada, é imensa. Ela prefere não numerar. Com energia jovial de causar inveja a qualquer executivo em ascensão, essa mulher de 82 anos comanda a Associação Cristã Verdade e Luz, entidade beneficente instalada em 25 mil metros quadrados no Bairro Assunção que supre a carência extremada de 180 crianças e adolescentes, 25 idosos e 38 gestantes. "Sempre fui do tipo faca na bota. Nunca esmoreci diante de um desafio" -- diz Clory.  

A resposta para todos esses anos de empenho não poderia ser melhor. Os filhos de Mamãe Clory são o reflexo positivo do trabalho. Órfãos do passado deixados à porta da instituição hoje são profissionais respeitados, entre os quais o médico César Luiz Fagundes Marques, que preside a entidade. A família está pulverizada por todo o País e também no Exterior. "Tenho netos que moram no Japão" -- orgulha-se a matriarca. Os que moram por perto prestam serviço voluntário no lar. 

Além dos resultados humanos, a entidade dispõe de organização física exemplar. Conta com serralheria, marcenaria, gráfica, laboratório de informática, padaria, confecção e cursos diversos de orientação. Nessas oficinas, os internos e semi-internos encontram espaço para iniciar o processo de autossuficiência, segurança emocional e independência financeira. Funcionam como trampolim da exclusão social para o mercado oficial de trabalho. Parte da produção das oficinas contribui no custeio do lar, que abocanha cerca de R$ 15 mil todos os meses. Só de conta de luz a entidade paga R$ 2 mil. "Antes da privatização, a Eletropaulo concedia desconto" -- lamenta Clory. 

Embora o objetivo das oficinas esteja mais voltado à responsabilidade e disciplina dos filhos, o lucro é sempre bem-vindo. Por isso, a casa abre as portas para encomendas de terceiros como SóGelo, Scania, Edag, Multiflux e outras organizações que imprimem timbrados e talonários na gráfica solidária. Dos 15 mil pãezinhos assados diariamente na padaria do lar, seis mil são destinados a 12 empresas da região. 

Laboratório 

Parceria com o Instituto Microssiga viabilizou o laboratório de informática da entidade. Quatro microcomputadores são as ferramentas para direcionar o aprendizado de jovens ao mercado da alta tecnologia. Além dos equipamentos, a empresa financia o professor. A Associação Cristã Verdade e Luz oferece ainda aos carentes atendimento odontológico, medicamentos gratuitos, apoio psicológico e carinho. "Sinto-me mais viva do que nunca e cheia de vontade de dar amor e carinho" -- diz Clory. A preocupação com os filhos é tanta que ela só vai para a cama depois que o último chega em casa. 

Da chegada à região aos dias atuais, Mamãe Clory enfrentou todo tipo de turbulência. Dificuldades financeiras não levaram ao desânimo. Ao contrário, incentivaram a consolidação do projeto em São Bernardo. Nem mesmo os quatro infartos e o quadro crônico de diabetes desaceleram o ritmo frenético de Clory. Quando em 1969 saiu de Andradina, Interior de São Paulo, rumo ao Bairro Paulicéia, também teve de encarar o alvoroço da vizinhança. Não foi para menos. As 87 crianças que trouxe na bagagem ocuparam quase todas as vagas das escolas das proximidades. O fato chamou a atenção das autoridades municipais, que tentaram intimidar Clory, mas acabaram cedendo ao carisma da gaúcha de pouco mais de um metro e meio de altura. O então prefeito Aldino Pinotti foi além: cedeu em comodato de 20 anos terreno público de 50 mil metros quadrados. Clory recusou a megaoferta. Disse que metade da área era suficiente. De posse do terreno, investiu tudo o que tinha na construção do lar. Em 1999, a área foi doada em definitivo para a entidade. 

O ano 2000 começou voltado à expansão da estrutura física do lar. Mamãe Clory quer dobrar o atendimento, ou seja, abrir mais 150 vagas. As obras já estão em andamento, mas há carência de recursos. "Sei que da noite para o dia uma empresa vai nos procurar e oferecer ajuda" -- profetiza. A autoconfiança exacerbada serve como sedativo à preocupação de Clory com os jovens que passam o dia catando lixo no aterro do Alvarenga, em São Bernardo. Embora seja doloroso e difícil de vencer, o problema tem sido observado pela Prefeitura por meio do projeto Lixo e Cidadania. E onde o Lar da Mamãe Clory entra nessa história triste? No final feliz. A ideia é atrair parte desse contingente para a oficina de reciclagem que funciona na entidade. 

"Não é fácil convencer que o lixo pode aliviar dificuldades" -- suspira. Atualmente a oficina emprega 17 pessoas no reaproveitamento de alumínio, plástico e papel. O projeto prevê a abertura de mais 30 vagas. No final de 1999, o sonho de Mamãe Clory recebeu injeção de ânimo para a otimização da oficina de reciclagem. O coordenador de projetos do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Grande ABC, Udo Bock, assinou compromisso com a entidade e aliou-se na implementação do projeto. A Prefeitura de São Bernardo irá responder por algumas obras de ampliação. 

Enquanto as benfeitorias e benefícios são sedimentados, a Associação Cristã Verdade e Luz arrecada recursos por meio de calendário de eventos. Almoços e encontros festivos mantêm os cofres da entidade distantes da míngua. Doações das mais variadas e o comércio do bazar também vitaminam as receitas. Outra batalha travada contra as regras contumazes da sociedade está na acolhida de 28 idosos entrevados em cadeiras de rodas, na maioria das vezes rejeitados pela família. "Todos são meus filhos" -- exclama. Para não abrir mão do atendimento, Clory foi às últimas consequências e acabou conquistando na Justiça o direito de zelar pelos velhinhos. 

O apego explícito remonta à primeira experiência de Mamãe Clory, em 1943, quando encontrou uma menina de 16 dias deitada à porta da casa em Pontaporã, Mato Grosso. Recém-casada e ainda sem os filhos biológicos, os quais não identifica entre os adotivos, a então jovem Clory conquistou a solidariedade do marido Orestes Vieira Marques, que até o fim da vida, há cinco anos, acompanhou e apoiou o trabalho social desenvolvido pela esposa. 



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