Esta série especial de 30ANOS do melhor jornalismo regional do País (da revista de papel LivreMercado à revista digital CapitalSocial) é inesgotável manancial da memória do Grande ABC. O texto que se segue virou Reportagem de Capa de LivreMercado de agosto de 2000. Recuperar a gestão de Celso Daniel em Santo André é uma oportunidade de ouro para quem precisa entender o que se passa nestes tempos no Grande ABC. Esta é a centésima-quinquagésima-nona edição da série. Para guardar.
Bom de governo,
bom de voto?
DANIEL LIMA - 05/08/2000
Bom de voto, bom de governo? Quase quatro anos depois de entrevista exclusiva, logo após ser eleito pela segunda vez prefeito de Santo André com a maior votação regional em números absolutos e proporcionais (205.317 eleitores, ou 52,38% dos votos válidos), o prefeito Celso Daniel está novamente em campanha com a vantagem do favoritismo nas pesquisas. Tudo indica que ele conseguirá eliminar de vez a interrogação da capa de LivreMercado de novembro de 1996. Por enquanto, prevalece a interrogação numa sutil e providencial inversão no título de capa, que passou a ser Bom de governo, bom de voto?
Calma! Isso não significa que o agora cinquentão administrador do Partido dos Trabalhadores seja modelo supremo de gestor público que o Grande ABC em crise econômica e social necessita. Celso Daniel ainda não atingiu o patamar imaginado pelos mais exigentes.
Terá mais quatro anos para se consagrar provavelmente como o maior homem público que já passou pela Prefeitura de Santo André e pelo Grande ABC. Ou então como grande esperança que se desvaneceu no enfrentamento de problemas que exigem mais que preparo técnico e experiência. Exigem dose sobreposta de ousadia.
Esqueçam o varejo político e administrativo que costuma pontuar no noticiário e construir reputações que a história trata de desmistificar, para o bem ou para o mal.
Uma administração pública não deve ser examinada prioritariamente sob a lupa ideológica, partidária ou mesmo pragmática de questões circunstanciais.
O administrador de recursos do contribuinte que se escraviza em contemporizar as adversidades do dia-a-dia ou de lamber a própria cria de factoides corre o grande risco de naufragar.
Apagar incêndios ou festejar banalidades não é a melhor alternativa para quem está decidido a ficar na história. Essa é uma vantagem singular de Celso Daniel em relação a grande parte dos políticos brasileiros.
Engenheiro e economista, Celso Daniel foi moldado pela lógica de que dois mais dois são quatro, algo que a usual interpretação política muitas vezes transforma em heresia. Mais maduro nos últimos quatro anos, esse filho de político que ocupou o Legislativo de Santo André e hoje dá nome ao Estádio Municipal conseguiu acertar as contas com uma promessa pós-eleição de 1995: governaria Santo André com a comunidade.
Conseguiu desvencilhar-se na medida do possível e do viável do sectarismo do PT que ainda se manifesta nos corredores do Paço Municipal. Enfim, conseguiu administrar as principais questões acima da parcela exageradamente esquerdista do partido, o que não é tarefa que se despreze quando se trata da agremiação política mais coerente, e por isso mesmo mais complexa, do País.
A aprovação de seu segundo mandato está comprovada pelas pesquisas e pelo desespero dos opositores. Ou não é algo exótico rebocar a candidatura do deputado federal e apresentador de televisão Celso Russomanno, cuja intimidade com Santo André é semelhante à de Mike Tyson com a diplomacia?
Mas não é necessariamente por causa dos indicadores eleitorais que Celso Daniel tirou a interrogação da Reportagem de Capa de quatro anos atrás e ao que tudo indica caminha para supressão em relação à Reportagem de Capa desta edição.
Afinal, eleitores têm preferências que nem sempre resistem ao compromisso com o futuro. Geralmente vivem de populismos imediatos cujos efeitos em forma de déficit público e de corrupção são fartamente conhecidos.
Celso Daniel está aprovado porque liderou transformações domésticas, no âmbito de Santo André, e regionais, como um dos principais condutores do processo de regionalização institucional que o Grande ABC simplesmente desconhecia.
Celso Daniel é dos raros administradores públicos que conseguem ser simultaneamente centralizadores e descentralizadores. Delega sem perder as rédeas. O aparato que lhe dá sustentação administrativa consegue torná-lo capitalizador dos sucessos e socializador dos eventuais tropeços.
Exemplos? Quando estourou a crise do corte de funcionários e salários na Prefeitura, quem apareceu mais no noticiário? A secretária Miriam Belchior. Quando emergiu a polêmica da chamada indústria das multas, quem botou a cara para bater? O também secretário Klinger de Oliveira. Quando se anunciou que o Semasa andou exagerando nas contas de água, quem se meteu a tourear a Imprensa? O superintendente Maurício Mindrisz. Quando desencadeou a controvérsia sobre a mudança de rumo do Parque Guaraciaba, que de reserva verde passaria a recepcionar um lixão, quem foi para a linha de combate? Celso Daniel não, certamente.
Os exemplos não tornam o prefeito um oportunista contumaz, como tentam fazer crer os opositores. O princípio de decisões colegiadas com secretários e auxiliares diretos é o preço natural de cobranças. A vantagem de ceder em nome do grupo de comando de uma administração, um dos pilares da esquerda mais contemporânea, é que o ônus dos contratempos também é pulverizado.
Critica-se a atomização controlada da gestão de Celso Daniel sob o conceito ultrapassado do centralismo de decisões, postura tipicamente de direita escorraçada nas empresas mais modernas e que aos poucos invade o Poder Público endemicamente refratário à modernidade.
Regionalismo
O que sublinha o traço diferencial de Celso Daniel em relação aos prefeitos que o antecederam em Santo André e em outros municípios é sua visão regionalista conectada aos movimentos internacionais sob a força avassaladora da globalização.
Pode parecer simples praticar regionalismo num Grande ABC tão intensamente regional, onde limites territoriais, econômicos e culturais praticamente se confundem. Apenas aparentemente isso é verdade. Tanto que somente de 1996 para cá, quando assumiu a leva de atuais prefeitos, conceitos de regionalidade passaram a ser exercitados. Mesmo assim, em grau apenas razoavelmente satisfatório, porque nem todos os titulares de Executivo abrem mão de atribuições domésticas.
Celso Daniel pertence ao grupo de lideranças políticas que fizeram ressuscitar o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos. A Câmara Regional, composição de gestores públicos, privados e sociais da região com participação do governo do Estado, também teve seu empenho. A Agência de Desenvolvimento Econômico, braço estatístico e de marketing da Câmara Regional, é fruto de seu esforço e de sua presidência.
Todas essas entidades colocaram fogo nas relações institucionais na região. Saiu-se da etapa de marasmo, do chove-não-molha. Os altos e baixos dessas relações, fundamentalmente por questões ligadas ao calendário eleitoral, não retiram a importância das transformações regionais.
Metropolização
O candidato que busca ser triprefeito em Santo André, façanha que só o antecessor Newton Brandão conseguiu na história, exagera apenas na entonação que dá ao sentimento regionalista. Por convicção e não por teimosia, é um dos poucos defensores do não desmembramento do Grande ABC da Região Metropolitana de São Paulo. Nenhum argumento de Celso Daniel resiste ao fato de que a RMSP é um fracasso de 30 anos que marginalizou o Grande ABC em praticamente todas as deliberações. Tanto é verdade que foi preciso criar a informal Câmara Regional.
Celso Daniel vê o fantasma da separação como algo que comprometeria a natural sinergia entre a região e a Capital. A Região Metropolitana do Grande ABC, ao contrário do que imagina o prefeito, aproximaria o governo do Estado da região simplesmente porque essa relação está estimulada na legislação que já premiou a Baixada Santista e a Grande Campinas. A informalidade que marca a Câmara Regional é uma deficiência congênita porque num período como o atual, de disputa eleitoral, praticamente desativa a organização.
O escorregão conceitual sobre a metropolização do Grande ABC é pouco, entretanto, para obscurecer o desempenho de Celso Daniel em âmbito regional. Até porque há tempo para reformular a posição. Quem sabe num novo mandato à frente do Consórcio Intermunicipal Celso Daniel possa ter massa crítica para retomar o tema com mais força e sob ótica mais apropriada.
Para isso, terá de costurar articulações mais consistentes e retomar o projeto de metropolização de direito com o suporte de deputados estaduais e do Palácio dos Bandeirantes. São tarefas para as quais a atuação como comandante do Paço Municipal de Santo André não confere o mesmo respaldo da presidência do Consórcio de Prefeitos.
Por isso, os eventuais quatro novos anos de Prefeitura vão ser importantíssimos para Celso Daniel consolidar prestígio regional e, com isso, tentar traduzir em fatos o que a imaginação política estimula, colocando-o como predileto do presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, para uma das vagas do partido para o Senado.
À parte os naturais obstáculos partidários, já que também o PT não se desvencilha de disputas internas pelo estrelato, Celso Daniel sabe que a densidade eleitoral de que necessita precisa extrapolar os limites de uma região que só atrai a mídia da Capital quando se trata de desgraças do cotidiano.
Esses devaneios político-eleitorais devem ser descartados como sustentação da ascensão de Celso Daniel. Não seria o fato de ganhar a disputa no partido e virar candidato a senador que o tornaria obrigatoriamente competente. A avaliação de seu segundo mandato tem o peso do regionalismo em primeiro plano e das ações domésticas como complementaridade.
Nada mais compreensivo, entretanto, que, para o eleitor de Santo André, a gestão de Celso Daniel como prefeito vale mais que a de Celso Daniel como regionalista. Aliás, é por isso que está tão bem nas pesquisas já que o eleitorado ainda tem visão extremamente municipalista. A situação, porém, não descarta uma possibilidade que também poderia tornar sua gestão aprovada.
Se Celso Daniel não tivesse avançado em macroproblemas de Santo André, mas confirmasse comportamento regional que o coloca entre os principais responsáveis pela integração do Grande ABC, mesmo assim seu mandato teria valido a pena para a região e para seu currículo pessoal. Tanto quanto, para seu equilíbrio físico-emocional, o bate-bola de basquete que pratica na Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Santo André toda semana, lembrando os velhos tempos de atleta da Pirelli.
Ombudsman
Ao superar as armadilhas do cotidiano, principalmente porque soube utilizar auxiliares-chaves tanto no pelotão de choque quando na mesa de deliberações, Celso Daniel pode usufruir das conquistas. Ou não terá sido ponto importante para sua administração quebrar o distanciamento entre Poder Público e contribuintes ao criar a inédita figura municipal do ombudsman?
A secretária Miriam Belchior deu tratos à bola, acompanhou todo o processo, enquanto o prefeito atuava nos encontros públicos com a humildade de simples auxiliar. Para coroar a proposta, que passou pela democracia do Fórum da Cidadania antes de chegar ao Legislativo, foi eleito um representante das chamadas forças conservadoras de Santo André, o ex-presidente da Acisa (Associação Comercial e Industrial), Saul Gelman.
Por mais que o processo de eleição de Gelman tenha sido transparente, não faltaram ações de bastidores para instalá-lo no cargo. Era importante para a pluralidade perseguida por Celso Daniel ter um representante da tradição empresarial de Santo André para ouvir as queixas dos moradores contra a própria administração pública.
A inovação não se limitou ao ombudsman. Um feixe de programas sociais e administrativos que une qualidade de serviços públicos e visibilidade de marketing passou a ser reconhecido pelos resultados e coleciona títulos.
São os casos do Programa de Modernidade Administrativa, que revolucionou o atendimento ao contribuinte dentro e fora do Paço Municipal, liderado operacionalmente pela secretária Miriam Belchior, e o Programa de Orçamento Participativo, que tornou Pedro Pontual seu principal condutor.
Celso Daniel também lançou estacas para o futuro ao anunciar o ambicioso Eixo Tamanduatehy como nova centralidade econômica e social do Município e ao levar para a comunidade o projeto Santo André Cidade Futuro.
No primeiro caso, alguns resultados já apareceram, como a reestruturação da Avenida Industrial, a nova estação rodoviária, a iminente Cidade Pirelli e o adiado, mas já em fase final de construção Globalshopping.
No segundo caso, uma grande assembleia com 400 representantes da comunidade formalizou extensa carta de intenções com referências globais para os próximos 20 anos, num processo que passou pelo crivo de quatro mil participantes nas várias etapas preliminares. Os programas também tiveram auxiliares do prefeito elevados ao primeiro plano. No caso do Tamanduatehy, foi o ex-vereador paulistano Maurício Faria. No caso de Santo André Cidade Futuro, Teresinha dos Santos ocupou a ribalta.
Indústria sem restrição
O prefeito de Santo André demorou sete anos — a soma de seus dois mandatos –, mas conseguiu fazer aprovar legislação que acaba com as amarras para instalação e ampliação de unidades industriais. E radicalizou na medida, eliminando da geografia municipal qualquer tipo de restrição. Um monumento ao pragmatismo, já que herdou do passado de riqueza de investimentos um dinossáurico rosário de impedimentos que ajudam a explicar a ruína financeira do Município com a perda de 66% de arrecadação de ICMS nos últimos 25 anos.
Celso Daniel também resolveu abrir as porteiras do setor comercial e de serviços ao enviar há pouco um pacote de mudanças que deverão ser aprovadas pelo Legislativo. Santo André deixará de ter reserva de mercado territorial para empreendimentos como farmácias e postos de combustíveis, entre outras novidades. Quem for mais competente, vai se estabelecer.
A gênese das tentativas de recuperar a economia local está na criação da Secretaria de Desenvolvimento e Emprego, um dos primeiros atos no segundo mandato. O convite para Nelson Tadeu Pereira comandar a secretaria prova que Celso Daniel já não estava preso ao conservadorismo petista. Nelson Tadeu Pereira era executivo da Rhodia Têxtil de Santo André e sua nomeação causou mal-estar entre esquerdistas de carteirinha, que sugeriam um sindicalista para o cargo.
A administração de Celso Daniel no setor de desenvolvimento econômico é relativamente reticente se comparada à vertiginosa inquietação regional e à dedicação pública aos programas sociais. Mas mesmo assim não é justo sacrificá-lo. Se a estrutura física, material e de recursos humanos da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Emprego está muito aquém das necessidades emergenciais do Município, e se as medidas profiláticas vinculadas à legislação foram tomadas com atraso, também é verdadeiro que o prefeito em campanha ainda enfrenta dificuldades operacionais na área.
O colegiado da Prefeitura não está integralmente convencido de que a saída imediata para os problemas sociais que a exclusão econômica multiplica está no apressamento de terapias de desenvolvimento econômico. Para agravar o quadro, representantes do capital preferem a transpiração de apagar incêndios do dia-a-dia dos negócios à inspiração de movimentos de classe.
Ritmo pouco intenso
Embora muito mais atento que todos os antecessores, cujo desprezo à economia se justificava pela crença obtusa de que jamais Santo André perderia o tônus industrial, Celso Daniel não conseguiu acompanhar o ritmo do esfarelamento econômico local.
A invasão de grandes negócios em forma de supermercados, hipermercados, redes de franquias e shoppings foi observada em sua gestão com o mesmo olhar de encantamento dos índios à chegada dos colonizadores. As consequências da disparidade de forças entre os competidores domésticos e os descobridores do potencial de consumo da região estão nas estatísticas de mortalidade empresarial e nas placas de vende-se e aluga-se fixadas em portas cerradas que se enfileiram pelos centros comerciais e na periferia abatida igualmente pela ascensão da criminalidade.
Com prováveis quatro novos anos de mandato pela frente, Celso Daniel poderá corrigir a rota do transatlântico de dificuldades da economia de Santo André. São inadiáveis as medidas para proteger e dar competitividade aos pequenos negócios comerciais e de serviços.
A recuperação física parcial do Calçadão da Oliveira Lima, retrato da decadência econômica de Santo André, precisa ser acompanhada pela restauração da confiança dos empreendedores atuais e novos, estratégia da qual a Prefeitura não pode se omitir.
O projeto Centro de Bairros, que contempla alguns pontos nobres do comércio da periferia, tem o efeito positivo da intenção de manter consumidores em seus respectivos habitats, mas também está sacrificado pela exuberância dos grandes concorrentes.
Políticas de desenvolvimento dos pequenos negócios industriais também devem merecer atenção redobrada, por mais que esse segmento sofra consequências de ações extra-Grande ABC, à esteira de solavancos macroeconômicos.
Espécie de discípulo de Tony Blair, primeiro-ministro britânico que nem se deixou converter ao radicalismo liberal da antecessora Margareth Thatcher nem ao extremismo socialista francês do também primeiro-ministro Lionel Jospin, Celso Daniel escolheu a chamada Terceira Via para exorcizar dois fantasmas que ainda atormentam Santo André e o Grande ABC às portas do Terceiro Milênio — o direitismo populista de quem só tem olhos para a megalomania de obras reluzentes e o esquerdismo exacerbado de quem só enxerga virtudes no outro lado do balcão das relações entre capital e trabalho — no trabalhador, é claro.
A composição diversificada do Grupo Coordenador do Projeto Santo André Cidade Futuro, a estruturação mista da Agência de Desenvolvimento Econômico e a multiplicidade de atores na Câmara Regional, instituições onde tanto representantes do capital como do trabalho se fazem presentes, revelam o amadurecimento de Celso Daniel e de outros atores políticos da região.
Trata-se, como se nota, de uma viagem sem volta, sejam quais forem os protagonistas do futuro. Até porque, bom senso não pode mesmo permitir retrocesso.
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