A manchetíssima de ontem da Folha de S. Paulo já tem lugar reservado na primeira fila da segunda versão do livro “Meias-Verdades”, que pretendo lançar quando tiver dinheiro ou patrocinador que não faça qualquer tipo de restrição editorial. A primeira versão foi lançada em 2003. Manchetíssima é a manchete das manchetes de primeira página. A Folha de S. Paulo se deixou levar pela bolsofobia, ou seja, deixou-se, mais uma vez, dominar-se pela emoção e interesses.
O melhor jornal do País (a Folha é isso mesmo), apesar de todos os vieses e espertezas (a Folha é também isso mesmo), cometeu o pecado capital do jornalismo de tomar a parte pelo todo, porque a parte interessava mais que o todo.
A Folha esqueceu que o todo é mais importante que qualquer parte quando está em questão a verdade dos fatos. Uma obviedade nem sempre obedecida quando se tem a perseguição política, não a pluralidade política, como matriz editorial.
Vou recorrer ao que entendo que seja a melhor metodologia possível para levar ao leitor uma avaliação pedagogicamente simples. Se não partir do começo acho que vou embaralhar a compreensão geral.
Manchetíssimas distintas
Julgo, nesse caso, os outros por mim. Fazer malabarismo editorial com dados, como se jornalismo fosse variável dessas séries de televisão que misturam passado e presente, não me parece boa pedida. Ainda mais quando boa parte desses insumos está fortemente vinculado ao interesse de leitores digitais.
Vamos aos fatos, portanto. E os fatos derivam da manchetíssima de ontem da Folha de S. Paulo com o seguinte enunciado:
“Política econômica não traz confiança, dizem empresas”.
Fosse a Folha de S. Paulo mais cuidadosa, organizada e desprovida de perseguição política, a manchetíssima de ontem deveria ser, seguindo a mesma linha adotada, exatamente a seguinte:
“Política econômica estimula confiança, dizem empresas”.
Está vencida, portanto, a primeira etapa explicativa com o respectivo contraponto deste ombudsman. Convém lembrar que sou ombudsman não-autorizado neste texto tendo como experiência o fato de que já atuei como ombudsman autorizado do Diário do Grande ABC em duas temporadas diferentes. E como ombudsman não autorizado do Diário do Grande ABC e de outros veículos de comunicação da região a qualquer momento.
Sou um daqueles raros idiotas que acha importante a sociedade consumidora de informações contar com um voluntário com experiência no ramo há mais de meio século e que, portanto, se sente na obrigação moral e ética de prestar algum tipo de serviços social em forma de jornalismo. Mesmo que, para isso, enfrente um ou outro cafajeste partidário nas redes sociais, sempre, esses cafajestes, a serviços de um ou outro político igualmente vagabundo.
A versão da Folha
Sigo (porque é isso que interessa) a exumação da manchetíssima fake news da Folha de S. Paulo com o texto de primeira página antecedido da seguinte linha auxiliar da manchetíssima: “Para mais da metade, mostra sondagem, condução do governo influencia negativamente negócios”.
Mais da metade das empresas brasileiras afirma que a falta de confiança na política econômica do governo é um dos principais fatores que influenciam negativamente a expectativa de negócios a curto prazo. Sondagem com 2.785 firmas realizada pelo Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas) mostra que o grau de desconfiança é maior no varejo, setor em que quase 70% citam o problema. Na indústria, são 43%. Na construção civil e serviços, 46% e 47% respectivamente. Apesar disso, 68% vislumbram melhoria no cenário nos próximos seis meses. Uma retomada global seria a principal razão para a perspectiva. Na cúpula empresarial brasileira, a preocupação com a política econômica é crescente. Até grandes executivos que sempre defenderam o atual governo estão insatisfeitos com o andamento de privatizações e reformas. “As reformas têm que deslanchar. Precisa sair do campo teórico e ir para o campo prático”, afirma Rubens Ometto, acionista de Raizen, Congás, Cosan e Rumo, conjunto que fatura R$ 80,1 bilhões ao ano – escreveu a Folha na primeira página, como sustentação do enunciado da manchetíssima.
Contraponto fundamentado
Agora, o contraponto fundamentado deste ombudsman não-autorizado. O texto da primeira página, em conformidade como a manchetíssima adequada que proponho, seria o seguinte, contando, antes, com linha auxiliar da manchetíssima: “Para dois terços, mostra sondagem, condução do governo influencia positivamente negócios”. Vamos ao texto proposto:
Mais de dois terços das empresas brasileiras estão otimistas com a política econômica do governo como principal fator de influência positiva de negócios no curto prazo. Sondagem com 2.785 empresas realizada pelo Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas) mostra que o grau de confiança para o ambiente de negócios nos próximos seis meses atinge 67,8% das unidades. Desse total, 56,16%% acenam como bandeira de otimismo a perspectiva de retomada da economia mundial, outros 51,6% se referem à consolidação da recuperação do setor em que atuam, 40,5% observam perspectiva de aumento das receitas, 37,9% à continuidade da flexibilização das medidas de isolamento social, 19,4% aos juros baixos e 16,7% à perspectiva de redução de custos. As respostas foram múltiplas.
Ponto de entroncamento
Agora é que chegamos ao entroncamento explicativo. O leitor mais atento quer saber a razão de disparidade entre as manchetíssimas e os textos de primeira página. Esta é a segunda etapa à caracterização da fake news da Folha de S. Paulo.
A página interna, A19, que esmiúça a pesquisa do Ibre da Fundação Getúlio Vargas, mata a curiosidade e desqualifica a manchetíssima de ontem da Folha de S. Paulo.
O título escolhido pela Folha de S. Paulo na página interna segue coerente (e pecador) com o enunciado de primeira página:
“Mais da metade das empresas não tem confiança na política econômica”
Vou reproduzir os principais trechos da reportagem para, em seguida, destrinchá-los criticamente e colocá-los no devido lugar; ou seja, na prateleira de espera de nova edição de Meias-Verdades:
Quando os empresários brasileiros olham para frente, mirando os próximos seis meses, a maioria tem a expectativa de que o ambiente de negócios vai melhorar. O principal fator para o otimismo é a evolução da economia mundial. Mas eles também vislumbram riscos que podem comprometer esse cenário. Além da incerteza com a pandemia, aparece como destaque a incerteza econômica e a falta de confiança na política econômica do governo. (...) Pouco mais da metade das empresas, 52% afirma na sondagem que a falta de confiança na política econômica do governo é um dos fatores que estão influenciando negativamente as expectativas de evolução do ambiente de negócios nos próximos meses. A incerteza econômica é citada por 71% das empresas, percentual superior ao das que apontam também a questão da pandemia (65%). (...). A desconfiança em relação ao compromisso do governo com o equilíbrio das contas públicas e a agenda de reformas econômicas, apontada na sondagem, tem contaminado os indicadores. A alta das taxas de juros de longo prazo já dificulta, enquanto o real depreciado tem provocado problemas como a alta nos preços de insumos importados, elevando custos.
A vez do ombudsman
Agora chegou a minha vez de ombudsman. O texto da Folha de S. Paulo pode ser enquadrado numa categoria desclassificatória da realidade dos fatos, no caso, da pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Para facilitar o entendimento (lembrem-se que tenho obrigação de ser pedagógico quando se trata desse mundo à parte que é o jornalismo), vou produzir o texto que deveria, obrigatoriamente, respaldar a manchetíssima que sugeri para a edição da Folha de S. Paulo de ontem:
Política econômica estimula confiança, dizem empresas”.
Pesquisa divulgada pela Fundação Getúlio Vargas sobre “Expectativas para o ambiente de negócios nos próximos meses” no Brasil, indica que 67,8% de um universo de quase três mil empresas observa o cenário de forma positiva, contra 11,9% que atribuem fatores negativos e 20,3% de empreendedores que preferiram não responder. Para a grande maioria das empresas otimistas, que abrange mais de dois terços dos entrevistados, as perspectivas de retomada da economia mundial estão em primeiro lugar no ranking, com 56,1% de indicações. Outros fatores de respostas múltiplas de um futuro próximo melhor colocam a consolidação da recuperação do setor em que atuam os entrevistados (51,6%), a perspectiva de aumento das receitas (40,5%), a continuidade da flexibilização das medidas de isolamento social (37,9%), as taxas de juros baixas (19,4%) e a perspectiva de redução de custos (16,7%). Para a grande minoria que observa os próximos tempos de forma negativa, ou seja, apenas 11,9% dos empresários que responderam ao questionamento da Fundação Getúlio Vargas, 70,8% colocam a “incerteza econômica” como carro-chefe de desconfiança. Esse percentual significa que de cada 100 entrevistados, apenas 8,42% veem o futuro próximo com os dois pés atrás. O cálculo é simples: se apenas 11,9% reservam incerteza econômica para o futuro próximo, os 70,8% desse grupo específico não passam de 8,42% do universo total de entrevistados, de quase três mil empresários. Outros 64,9% do conjunto restrito de 11,9% com olhares negativos fundamentam a posição com base nas incertezas com relação à pandemia do Coronavírus, enquanto 52% desse mesmo grupamento critica a falta de confiança na política econômica do governo, 42,1% às perspectivas negativas para a economia mundial, 27,1% ao fim dos auxílios emergenciais aos consumidores e 23,9% ao fim dos programas de emergência às empresas.
Parte pelo todo
Nesta altura do campeonato tenho certeza de que os leitores sensatos que analisam os dados expostos sem qualquer viés partidário, mas somente pelas lentes da racionalidade estatística, estarão convictos, como este jornalista, de que a Folha de S. Paulo derrapou na curva do enviesamento proposital ou não de politizar os dados da Fundação Getúlio Vargas.
O pulo do galo explicativo é evidente: a Folha de S. Paulo trocou o todo pela parte. No caso, o todo são os números gerais obtidos junto às empresas pesquisadas. Números que colocam o horizonte próximo numa frequência de positividade de mais de dois-terços dos entrevistados. Uma das partes do todo são os 11,9% dos entrevistados que preferiram ver o Brasil dos próximos tempos com restrições aprofundadas.
Dessa forma, quando a Folha de S. Paulo escreve que 70,8% das empresas desconfiam dos rumos da economia do governo federal, comete erro crasso porque esses 70,8% são relativos aos 11,9% negativistas, não ao conjunto dos entrevistados. Repetir essa premissa, essencial ao entendimento, não é exagero. É mais que necessária para que não se perca o fio condutor de uma tremenda falha editorial.
Reação provinciana
O melhor jornal do País (a Folha o é no conjunto da obra) comete seguidos equívocos editoriais, mas, exatamente por conta de ser o melhor, geralmente os leitores não identificam o que é verdade e o que é fake.
Numa Província como o Grande ABC, só a possibilidade de publicar restrições à Folha de S. Paulo em chamadas num aplicativo de Internet é chamariz imediato à tentativa de degola implacável nas redes sociais. São idiotas de plantão. Uma minoria vinculada a partidarismo político.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)