Economia

Sem 56 fábricas da Ford, não
será a logística nossa salvação

DANIEL LIMA - 03/11/2020

Aviso aos navegantes de águas supostamente redentoras da economia do Grande ABC, entusiasmados que se manifestam com o anúncio de um extraordinário empreendimento na área de logística, ocupada durante mais de meio século pela desertora Ford do Brasil: os empregos prometidos, 4.800 no total, não passam de lufadinha de vento maroto. Perdemos 56 fábricas da Ford em emprego nos últimos 34 anos.  

Não que a lufadinha de vento seja desprezível. Nada disso. É que é insuficiente, específica, menos nobre e contém o vírus de suposta solução fácil para os imensos, intrincados e desafiadores problemas econômicos locais.   

O que quero dizer é que, até prova em contrário, (e tratarei disso em análise específica), o que poderia sugerir uma nova vocação econômica do Grande ABC, não passaria de exceção que combina arrojo de investimento e oportunidade ocupacional imensa.  

Qual seria essa nova vocação? A área de logística, claro. Não temos na maioria do território regional elementos materiais e técnicos que nos conduzam à empreitada sistêmica de contar com o reforço do setor de logística que, mais que a menor distância entre dois pontos, se tornou, ao longo de transformações estratégicas dos empreendimentos privados, a melhor equação de custo-benefício entre vários pontos a partir de um determinado ponto.  

Gigantesco esvaziamento 

O setor industrial do Grande ABC, abatidíssimo por série de pragas, perdeu desde 1987 nada menos que o equivalente a 56 fábricas da mesma Ford. Foram 158.306 baixas de empregos formais industriais na região no período de 416 meses. A Ford contava no estertor da sobrevivência com 2,8 mil trabalhadores (e algo como mais 1.5 mil terceirizados que não entram nessa contabilidade).  

Sempre fico com o que resta de cabelo em pé quando sinto o cheiro da brilhantina de ufanismo fazedor de média ou meramente despreparado.  

Basta qualquer investimento no Grande ABC (e a maioria, para não dizer quase todo, se concentra no setor de comércio e de serviços pela força de tração de quase três milhões de habitantes) para que os incautos, os esperançosos, os românticos e tudo o mais apareçam no radar de repercussão de mídias sociais (e também na imprensa convencional) para alardear a redenção.  

Chega de proselitismo 

Respeito aqueles que o fazem como extensão do amor por estas terras. Pena que sejam eles uma minoria. A maioria, sobretudo no Poder Público Municipal, não está nem aí. Ou, mais que isso, faz proselitismo barato com o maior calcanhar de Aquiles da economia regional.  

Pior que isso: ainda têm a cara de pau de dizerem aos quatro cantos, ante eventual chegada de um novo comércio e de um novo serviço, que o Grande ABC está retomando a caminhada rumo ao passado de glória. Além de tudo, são ingênuos.  

Quando afirmo que o equivalente a 56 fábricas da Ford que se foi no ano passado mudou de rumo na economia do Grande ABC,  o que quero dizer é que todas se escafederam ao longo de arredondados 34 anos – uma distância que começa a ser medida em janeiro de 1987 e termina em dezembro do ano passado, 2019.  

Nessa longa maratona de desajustes, ficamos pelo caminho. A desindustrialização em forma de empregos e de Valor Adicionado agigantou-se acima de qualquer média relativa no Brasil. Ou seja: somos um território marcado para emagrecer continuamente no setor que mais gera riquezas em forma de salários e de agregado de valor.  

O problema é que além de forçada, a dieta é rigorosa e dilaceradora de músculos e inteligência. É uma Covid permanente, com metástases evidentes.  

Calamidade anunciada  

Desde sempre acompanho atentamente o andar da carruagem de fogo do emprego industrial no Grande ABC. Na série 30ANOS, que resgata a história do jornalismo regional mais denso do País, a partir de março de 1990 com a revista LivreMercado,  colocamos o desempenho econômico regional na alça de mira, sempre tendo referenciais externos como faróis a iluminar o futuro num sentido muito mais amplo. E o emprego industrial é uma calamidade cantada naquelas páginas de papel e nas páginas digitais desta revista digital. 

Por isso mesmo quando sinto que há tentativa deliberada ou fazedora de média de acenar com a recuperação do tecido econômico do Grande ABC, imediatamente ativo o mecanismo crítico da desclassificação do atentado.  

O que falta à região em forma de ambiente de emergência social imposta pela desindustrialização sobra no formato de falcatruas deliberadas ou não para a venda de condimentos frágeis.  

Recuperação fajuta  

O que quero dizer com isso é que de vez em quando aparece em forma de manchete e manchetíssima de jornal de papel e de jornal digital alguma coisa que sugere a recuperação iminente do tecido econômico do Grande ABC em forma de qualquer coisa, principalmente de emprego formal ou de PIB circunstancialmente recuperador de ínfima parte da montanha perdida no acúmulo do passado.  

Diria sem o menor arrependimento que tudo isso, ou seja, a deliberada ação minimizadora dos estragos históricos, não passa de irresponsabilidade editorial.  

A contextualização do desempenho da economia do Grande ABC é obrigação moral e ética de quem faz do jornalismo e da liderança social, política e econômica fluxo de credibilidade no ambiente regional.  

Um prefeito sensato e honesto, um presidente de entidade de classe que não seja um paspalho, um jornalista que tenha compromisso social, um sindicalista que não olhe para o próprio umbigo corporativista, um deputado que honre o mandato, qualquer um com alguma voz de representatividade social, está obrigado a evitar mentiras e meias-verdades. Infelizmente não é o que se observa no Grande ABC. Mais que isso: infelizmente é o que mais se agride no Grande ABC.  

Farol e retrovisor  

O farol de milha que deve orientar a condução de políticas públicas e ações privadas na forma de compreensão do que se passa no Grande ABC deve estar conectado ao passado visto pelo retrovisor da cautela. Ou alguém teria a petulância de argumentar que o desaparecimento de 56 fábricas da Ford (em forma de deserções e desmantelamentos, além de miniaturizações) é algo que deva ser desconsiderado quando, por exemplo, sabe-se que pouco mais de quatro mil carteiras assinadas foram registradas no ano passado no Grande ABC?  

Quatro mil novas carteiras assinadas de saldo no setor industrial não apagam as cicatrizes dos anos imediatamente anteriores, de duríssima recessão econômica. Quanto mais de passados mais passados.  

Na média histórica, desde janeiro de 1987, perdemos o equivalente a uma fábrica de 388 trabalhadores a cada 30 dias. Se alguém acha que isso deva ser considerado supérfluo, que se apresente sem a proteção de máscara de alguma instituição que, num País de símbolos falidos como o Brasil, emprestam credibilidade a fanfarrões e meliantes sociais.



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