O texto que os leitores vão ler em seguida já completou 20 anos. E trata de uma das questões centrais que a revista de papel LivreMercado, criada e dirigida editorialmente por este jornalista durante quase duas décadas: o reparte do ICMS, cada vez mais fragilizado em volume nos orçamentos dos municípios do Grande ABC.
O mais lamentável de tudo é que até hoje não houve mudança significativa alguma para alterar uma aberração que discrimina o ser humano, como destacou o então titular da Receita Estadual.
Também é lamentável (e essa é uma causa que deveria ser prioritária) é o descaso dos deputados do Grande ABC na Assembleia Legislativa ao longo dos anos. Eles simplesmente jamais deram a menor bola ao tema.
Esta é a centésima septuagésima-primeira edição da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, uma combinação de LivreMercado e da revista digital CapitalSocial.
Mexer no ICMS é essencial,
admite o xerife tributário
DANIEL LIMA - 05/09/2000
Exatamente um ano depois de denunciar com exclusividade a histórica distorção na distribuição do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), tributo que devolve aos municípios um quarto dos recursos arrecadados pelo Estado, LivreMercado volta ao assunto com uma novidade: o coordenador-geral da administração tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, Clóvis Panzarini, também considera a legislação prejudicial aos municípios mais populosos do Estado, entre os quais seis dos sete do Grande ABC e a Capital paulista.
Clóvis Panzarini vai mais longe: sugere que o Congresso Nacional, ao qual compete a alteração, seja mobilizado pelas bases municipalistas para aprovar Emenda Constitucional. O executivo público do governo Mário Covas recomenda inversão nas alíquotas definidas pela Constituição Federal: "É preciso colocar o ser humano como principal preocupação na redistribuição do imposto, não a produção" -- afirma.
Embora a reestruturação do destino de quase todo o ICMS seja de responsabilidade do Congresso Nacional, Clóvis Panzarini concorda em que não há alternativa mais prática para a sensibilização do Poder Legislativo sediado em Brasília senão o envolvimento de representantes dos municípios. "Essa é uma causa municipalista" -- afirma.
Clóvis Panzarini recorre à Constituição Federal para explicar a impossibilidade jurídica de a Assembléia Legislativa de São Paulo modificar de forma profunda as alíquotas de distribuição do ICMS. O artigo 158 da Carta Magna define que pertencem aos municípios 25% do ICMS, produto que o Estado arrecada sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Os dois parágrafos que tratam da questão definem que pelo menos três quartos serão repassados aos municípios com base na proporção do valor adicionado e até um quarto de acordo com o que dispuser a lei estadual.
Inverter pirâmide
O Estado de São Paulo segue praticamente à risca o preceito constitucional, já que 76% do total do ICMS são distribuídos aos municípios de acordo com a proporcionalidade de arrecadação. "Estamos apenas um ponto percentual acima do limite mínimo" -- explica Panzarini. Dos 24% restantes, 16% são destinados de acordo com a população. "É importante inverter essa pirâmide tributária. Os legisladores federais precisam colocar o ser humano, a qualidade de vida, em primeiro plano" -- insiste Panzarini.
Primeira publicação a questionar a legislação, LivreMercado continua à espera de mudanças. A expectativa de que a bancada de deputados estaduais da região se mobilizaria para pelo menos colocar a questão em pauta na Assembléia Legislativa acabou frustrada. O imposto continua a premiar localidades seletivamente industrializadas.
Enquanto isso, penaliza municípios em franco desenvolvimento econômico e, principalmente, em processo de esvaziamento industrial. Resultado: cidades que precisam atender a populações volumosas, atraídas ao longo dos anos pela fartura de empregos que agora desaparecem com a evasão de fábricas e introdução de novas tecnologias gerenciais e de processos, acabam em recorrente asfixia dos serviços públicos.
Cada vez mais os grandes municípios sofrem com a falta de qualidade de vida que ganha formas inquietantes no avanço da criminalidade, no sistema viário subdimensionado, nos recursos incipientes para a estrutura física e técnica da rede escolar, no meio ambiente contaminado, na escassez orçamentária para atender a saúde, entre outras sequelas sociais.
Parabéns prá você
LivreMercado volta ao assunto porque está se completando um ano de proposta de mudança e também porque despertou interesse e indignação da advogada de Santo André Sílvia Regina Gimenes Pedroti. Ela organizou um ranking per capita que dá maior visibilidade aos equívocos da legislação. A exposição de números projetados para este 2000 de Sílvia Regina confirma a análise de setembro de 1999 de LivreMercado.
Caso emblemático reúne Paulínia, primeira colocada do ranking, e Santo André, que está em 29º lugar. Enquanto Paulínia apresenta índice per capita por 10 mil habitantes de 0,588% de receita com o ICMS, Santo André alcança apenas 0,026% -- ou seja, 22,3 vezes menos.
Santo André e Paulínia confrontam os extremos da obsolescência da legislação do ICMS. O Município da Grande Campinas é um dos que apresentaram maior crescimento arrecadatório nos últimos 20 anos, por força do polo químico/petroquímico. Já Santo André sofreu no mesmo período profundas perdas por causa da descentralização industrial.
Com isso, viu sua participação baixar em 50% no período, ou 66% nos últimos 25 anos. Paulínia conta com índice de participação estadual de 2,44% para uma população de 41.603 habitantes, enquanto Santo André registra índice de 1,62% para 616.991 habitantes.
A lógica da distribuição do ICMS aos 645 municípios paulistas está superada. Afinal, o descompasso entre o peso do valor adicionado na composição do imposto a ser repassado a cada Município e o número de habitantes não passaria jamais pela bateria de qualquer alquimia legislativa que tivesse por finalidade valorizar pessoas.
Essa disparidade significa o contínuo agravamento dos problemas sociais nas grandes cidades. Valor adicionado é um indicador da atividade econômica que mede o quanto tecnologia e trabalho agregam valor a uma mercadoria. É a diferença entre a madeira e a cadeira, entre o granulado petroquímico e um farol de veículo. É, enfim, a economia vista exclusivamente pela ótica materialista. Não tem qualquer vínculo com desenvolvimento sustentado.
Montanha russa
O mapeamento dos índices per capita dos 37 maiores municípios do Estado listados pela advogada Sílvia Regina Pedroti é espécie de montanha-russa de desigualdade tributária. Nenhuma das seis primeiras cidades do ranking tem mais que 150 mil habitantes. Paulínia, Luiz Antonio, Barueri, São Sebastião, Cubatão e Ilha Solteira ocupam respectivamente os primeiros seis lugares. Mesmo nesse primeiro bloco há diferenças gritantes, como o fato de Paulínia receber per capita cinco vezes mais que Ilha Solteira ou 3,9 vezes mais que Cubatão.
Em comum, esses municípios apresentam a característica de contarem com parque produtor e distribuidor essencialmente seletivo em mão-de-obra -- casos de indústrias químicas, petroquímicas, hidroelétricas e distribuidoras de combustíveis. Sediam atividades fortemente transformadoras de matérias-primas e intensamente geradoras de valor adicionado. Portanto, bem diferentes de municípios de matrizes industriais essencialmente manufatureiras e que ao longo dos anos absorveram -- e em alguns casos ainda absorvem -- grandes contingentes populacionais.
Apesar de Santo André configurar-se como vítima mais retumbante da legislação do ICMS, o ranking apresentado pela advogada Sílvia Regina Pedroti escancara diferenças tão chocantes quanto a incompreensível omissão de lideranças políticas, econômicas e sociais dos municípios paulistas mais populosos.
Afinal, indistintamente todos são prejudicados, com maior ou menor intensidade. São José dos Campos está em sétimo lugar na classificação per capita de participação nos recursos do ICMS, mas recebe 7,6 vezes menos que a líder Paulínia. São Bernardo e São Caetano estão empatados na oitava colocação, mas se distanciam 7,6 vezes da liderança.
À medida que se desce na tabela classificatória, mais alarmantes se tornam os números. Guarulhos, na Grande São Paulo, ocupa a terceira colocação no ranking de distribuição de ICMS com 3,71%, mas desaba para o 13º lugar na lista per capita. Cada morador de Guarulhos recebe potencialmente em serviços públicos 12,5 vezes menos que o de Paulínia e menos da metade de Ilha Solteira.
Caso extremo
O caso de Santo André é o mais grave do Grande ABC, mas a disparidade de retorno per capita só muda de graduação. Além de São Bernardo e São Caetano, quase 10 vezes menos valorizados que os de Paulínia, cada morador de Diadema vale 14,8 vezes menos em relação à líder, enquanto a proporção é de 15,6 vezes no caso de Mauá. Não é por acaso que os índices de criminalidade mancham a imagem de Diadema, apesar de todos os esforços das administrações socialistas que há quase duas décadas se revezam na Prefeitura. Também não é à toa que Paulínia apresenta indicadores de violência privilegiados. Nem Campinas escapa da relação de massacrados pela legislação, porque ocupa o 23º lugar na classificação per capita. Cada campineiro recebe potencialmente 17,3 vezes menos que os moradores de Paulínia.
A dificuldade prática de alterações na legislação do ICMS paulista não pode ser atribuída a aspectos políticos, como pressupostamente se pode especular. Qualquer assessoria de administradores e legisladores públicos mais ou menos competente saberá construir modelo que combine os fatores ponderáveis de distribuição do imposto pelo menos para amenizar os desvios. A saída não é outra senão reduzir o peso relativo do valor adicionado e crescer o peso do número de habitantes em cada cidade.
Há margem de manobra suficiente para alterar os valores monetários decorrentes de recomposição do índice de participação. Como os municípios de maior contingente populacional são os mais prejudicados, eventuais obstáculos políticos seriam minimizados. Entre os 37 primeiros colocados do ranking estadual, 16 municípios contam com mais de 200 mil moradores. Se forem consideradas as cidades com mais de 150 mil habitantes, o ranking de prejudicados em relação ao bloco dos seis primeiros colocados aumenta para 21.
Cadê a região?
A alteração da legislação provavelmente não encontraria impedimento político de representantes dos pequenos municípios, que trafegam pela mesma zona de penumbra participativa, isto é, nem são beneficiados nem prejudicados pela atual regulamentação constitucional. Grande parte dos municípios paulistas e brasileiros não tem valor adicionado representativo e nem conta com massa de moradores a influir decisivamente na redefinição das alíquotas.
Como se explica o fato de nem o Consórcio de Prefeitos nem a Câmara Regional do Grande ABC terem se manifestado sobre o problema? É mais provável que o assunto ainda não conseguiu ser corretamente entendido pelos chefes dos Executivos locais. Que outra justificativa haveria para a disparidade de tratamento não ter sido levada ao fórum institucional adequado, capaz de sensibilizar vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais da região?
A melhor resposta talvez seja o fato de haver diferenças de participação relativa tanto no conjunto do ranking per capita como entre os próprios municípios locais. Santo André está em desvantagem não só diante do pelotão de privilegiados pela legislação, mas comparativamente também a São Bernardo e a São Caetano que, como se observa, também têm do que reclamar da turma de municípios que pontua no ranking. Essa realidade exige negociações preliminares para se encontrar o peso mais adequado entre população e valor adicionado envolvendo o grupo de municípios paulistas diretamente atingidos pela distorção.
Enfim, uma equação que consiga o menor grau possível de ruído nas relações locais. A medida conciliatória e resolutiva poderia ser mais abrangente e extra-Grande ABC. Por que não um encontro entre os poderes executivos municipais e os legisladores estaduais das 20 maiores cidades em população para enquadrar os repasses do ICMS num novo figurino regulamentar?
Ou será que o rebaixamento dos indicadores de qualidade de vida não é espécie de alarme que acompanha simetricamente a tabela de desvarios do índice per capita desse que é o imposto de peso mais imponente nos orçamentos da quase totalidade dos municípios paulistas? Como pode um paulistano receber 21,7 vezes menos que o contribuinte de Paulínia?
Emenda constitucional
O deputado estadual Vanderlei Siraque é o único representante da classe de legisladores que decidiu colocar a mão na massa disforme da regulamentação do ICMS. Siraque, que já foi presidente da Câmara Municipal de Santo André, prepara proposta de emenda constitucional que altera a legislação. Ele quer que toda a arrecadação vinculada aos municípios -- isto é, 25% do que cada Estado recolhe do imposto -- seja creditada conforme dispuser a legislação estadual, e não a federal. O parlamentar fundamenta a proposta no artigo 159 da IX Consolidação do Regimento Interno da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. O deputado da região quer que se estabeleça competência aos Estados para legislarem sobre critérios de distribuição da cota-parte do ICMS aos municípios, prevista no inciso IV do artigo 158 da Constituição Federal.
Único parlamentar da região que se interessou efetivamente pelo assunto desde que LivreMercado denunciou o desbalanceamento socioeconômico provocado pela legislação do ICMS, Vanderlei Siraque preparou a proposta de emenda constitucional com base nos dados publicados nesta edição. Ele cita vários exemplos de desequilíbrios originados da legislação, entre os quais o comparativo entre Santo André e Paulínia. "É salutar que as leis estaduais combinem diversos critérios, inclusive na proporção do valor adicionado, mas nunca três quartos como é hoje. Talvez um quarto pelo valor adicionado, metade pelo critério populacional e um quarto por outros critérios como aumento de receitas próprias, áreas de preservação ambiental, reservatório de água potável e indicadores sociais" -- sugere.
A autonomia para Estados atribuírem critérios de distribuição de ICMS aos municípios é, segundo Siraque, uma forma de contribuir para o fortalecimento das unidades da Federação. Além disso, abriria oportunidade para dar mais relevância ao aspecto populacional e para a participação ativa dos municípios na elaboração do regulamento. O deputado por Santo André é um estudioso do ICMS. Tanto que preparou monografia no curso de mestrado em Direito sobre O Princípio da Federação e o ICMS, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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