Jamais imaginei me tornar uma combinação surpreendentemente harmoniosa entre a ciência e a crença nestes tempos de intolerâncias múltiplas. O que mais ouvi depois de ser violentado por um tiro covarde no rosto a 50 centímetros de distância me leva a concluir que sou um estuário circunstancial dos dois caminhos tão antagônicos quanto propagadores de dissensões.
Os médicos, ou seja, a ciência, me disseram reiteradamente, após constatarem os exames, que sou um milagre.
Os crentes, todos que acreditam em alguma força metafísica poderosa, fixaram na minha mente a premissa de que Deus me reserva grandes missões.
Peço licença aos leitores para um breve artigo sobre a volta ao batente um mês depois do incidente que só não me roubou a vida porque a ciência e a crença me ampararam.
Soldados me amparam
Sou um sobrevivente de braços dados com os dois soldados que muitos jamais imaginariam próximos e complementares. Faço um grande esforço físico para dedilhar este texto. Em situação de normalidade daria conta do recado em 40 minutos. Estou escrevendo de forma intermitente. De acordo com as dores do prélio.
Não vou escrever quase nada sobre aquela monstruosidade em si, com a promessa de que reproduzirei, no momento apropriado, o depoimento prestado às autoridades policiais.
O que quero mesmo é dizer que me imponho obrigação moral e ética de informar como estou, o que sinto e o que pretendo, para manter essa relação de completa transparência com aqueles que consomem meus textos. Tanto aos mais recentes, aos cristãos novos, quanto aos mais antigos.
Uma rede de proteção
Em primeiro lugar, rendo-me à felicidade de ter contado com o amparo da família nuclear e expandida, além de amigos de primeira ordem. Todos ajudaram muito a resgatar minha vida. Me deram suporte emocional quando tudo parecia desvanecer.
Doutor Valter Hamachi tem um espaço especial. Esteve e está comigo desde o princípio. Dá-me a segurança e a confiança nos momentos mais desafiadores. Doutor Valter Hamachi me fez enxergar e sentir a vida muito além das fronteiras da ciência.
Quero dedicar meu carinho e respeito também aos jornalistas que se manifestaram nas minhas caixas de mensagens e nas redes sociais. A maioria são velhos conhecidos, muitos do quais parceiros de jornadas. Tenho por eles imenso carinho e admiração.
Lamento que o Grande ABC não conte com uma mídia fortalecida para questionar o nível institucional precário e acintosamente distante de tudo que poderia ser definido como cidadania responsável. Esses veteranos do jornalismo seriam preciosos reforços aos jovens talentosos que estão na praça.
Isolamento profissional
Virei alvo fácil dos bandidos sociais que infestam a região porque estou quase isolado na luta denunciatória e interpretativa da Economia, da Política e das organizações sociais da região. Fazer jornalismo autoral no Grande ABC é uma aventura. Com riscos embutidos. Discriminações deliberadas. Antagonismos programados. Retaliações discretas.
O Grande ABC é fartamente noticiado internamente, mas escassamente avaliado, interpretado, triturado, questionado, sabatinado -- também internamente. Falta amparo econômico-financeiro a muitos profissionais de comunicação.
Jornalista que vem ao Grande ABC sazonalmente para uma tarefa igualmente acidental compra gato por lebre. A ditadura do triunfalismo impera. Somos há mais de três décadas um território em franca decomposição econômica e social. Tudo provado.
Não enalteço a grandeza dos jornalistas que forjaram o mercado editorial do Grande ABC. Dou-lhes apenas o devido valor. Também reconheço os esforços e as limitações operacionais que impactam as novas gerações.
Quantas mensagens!
Leitores agora são chamados a agradecimento. Li todas as mensagens selecionadas por minha secretária durante o período de afastamento. Minhas listas de transmissão registraram solidariedade reconfortante e me obrigam a seguir a rota do passado, como se não houvesse um fatídico primeiro de fevereiro a demarcar nova etapa.
A vantagem dos apontamentos do aplicativo tecnológico é que agora ficou muito mais fácil saber quem é da turma engajada num Grande ABC sem mandachuvas e num Grande ABC servil aos usurpadores dos poderes.
Alguma covardia apressadamente emergiu, claro. Talvez aqueles dois emissários não contassem com a junção de ciência e crença a me prover.
Medindo a recuperação
Como em instante algum do período mais sofrido de minha vida inabilitei-me a compreender as coisas (o que quero dizer é que meu cérebro foi preservado intocável, diferentemente de algumas partes da integralidade da cabeça) saio de uma situação de potencial nocaute vital para um arejamento técnico-sensorial de resultados que só o tempo permitirá definir quão positivo quanto imagino.
Disse ontem a um amigo que me sinto um quasímodo nestes dias de recuperação em ritmo de avanços e recuos, mais os primeiros do que os segundos.
Dou-me nota 10 no vetor cognitividade, cinco em higidez psicológica e três em compatibilidades físicas. Falta harmonia ao conjunto. As partes são desiguais e em desequilíbrio. Ainda há um aspecto que deveria receber avaliação, embora embutida no emocionalismo. Trata-se da espiritualidade. Um compartimento à parte. Sobretudo após aquela tarde. Doutor Valter Hamachi está cuidando disso.
Projétil no pescoço
Só estou escrevendo este texto e organizando outro para amanhã porque as dores do físico perdem fôlego. O que virá em seguida não sei. Há um projétil no pescoço que me atazana dia e noite sem parar.
O mais intrigante dessa história toda é que a parte mais atingida diretamente ou extensivamente pelo impacto do projétil está silente, quase anestesiada, a me poupar não só de centralidade devastadora, mas, também, de tangencialidade perturbadora. O combate seria ainda mais complexo se a linha de frente acusasse os golpes sofridos.
Na minha boca, destruída parcialmente no lado direito da arcada dentária, não sinto nada. Nada me impede da alimentação, arcada esquerda a postos. Esqueci que tenho um lado direito à mastigação. Até porque não o tenho mesmo.
Versão do milagre
Para terminar, há dois pontos obrigatórios, sobre os quais os leitores deste site não têm o mesmo conhecimento dos leitores que constam das listas de transmissão de um aplicativo.
Primeiro, uma analogia sobre o que provavelmente originou a repetição contínua da frase dos médicos que me atenderam ao longo dos 10 dias de hospital, ou seja, de que sou um milagre.
A imagem mais bem construída por um dos especialistas é de que a bala do atirador insano parece ter optado por caminhos cuidadosamente preservadores da vida.
Trajeto preservador
Um labiríntico trajeto poupou todas as partes neurológicas vitais que desaguam na higidez cognitiva. O projétil, agora o raciocínio é meu, fez o que Mané Garrincha desfilava nos gramados, entre pernas adversárias, levando a bola onde queria. Uma prótese dentária desviou do destino letal aquele bólido. O pescoço ainda o aloja. A quietude será seguida, em dois meses, de cirurgia simples. Não quero conviver fisicamente com o micro invasor. Bastam as sequelas emocionais e psicológicas.
Prefiro uma imagem aparentemente mais didática para medir o tamanho do sortilégio que o Poderoso me reservou – sempre segundo insinuação da ciência dos médicos e a crença dos crentes. Minha cabeça se dispunha como um desktop a 50 centímetros do atirador. Feito o disparo, a máquina seguiu operacionalmente apta. Algumas inconformidades não comprometem o desempenho.
Desconfio que a rendição da ciência à crença é um gesto de humildade. E de reconhecimento de que entre a vida e a morte há muito mais mistérios do que supõe a vã filosofia.
Reclamação, não discussão
O segundo ponto, que detalho no depoimento às autoridades policiais, desloca informações para um terreno que não condeno, mas que poderia ser mais bem avaliado, saindo-se, portanto, do piloto automático.
Qualquer conotação de que antes do tiro à queima roupa teria havido o que numa linha clássica de violência se chamaria de “discussão” significa rendição ao automatismo explicativo de casos de violência.
Não houve nada caracterizado como discussão no sentido clássico do termo, que remete a conflitos comportamentais. Houve de fato e somente uma reclamação em termos ponderados, civilizados, de que o serviço contratado não fora cumprido.
A diferença entre reclamação e discussão é que na primeira situação as partes não guerreiam verbalmente – apenas ponderam, mesmo que subsista a individualidade subjetiva da irritação. A segunda, no caso de discussão, as partes se agridem verbalmente, a induzirem violência criminal.
A gravação da verdade
Estou rezando para que apareça a gravação da verdade que minha secretária registrou na Polícia pouco tempo depois do incidente, enquanto médicos do Hospital São Bernardo executavam ações científicas na UTI.
A ponderação relativizadora de que “nada” justificaria a violência imposta é uma ofensa, não uma salvaguarda humanista e civilizatória. O pressuposto está fora do esquadro. Não há condicionante à agressão.
O “nada” no caso do milagre do pet shop pode significar tudo, ou seja, uma zona de conflito incontrolavelmente violenta entre cliente e proprietário. O “nada” do caso é “nada” mesmo.
Os sete anos de relacionamento com donos e funcionários de outro pet shop são a prova provada -- como tantas outras que poderia elencar -- de que respeito a quem me serve. Filho de pequeno comerciante, ex-atendente em balcão de padaria, tenho as marcas de admiração aos empreendedores. A história de LivreMercado e de CapitalSocial é prova disso.
Que, portanto, a gravação do ambiente no pet shop, friamente surrupiada pelo agressor logo após o tiro à queima-roupa, seja encontrada pela Polícia.
Inquietude social
Não vou virar escravo de meu algoz. Tenho muito a fazer nessa nova vida. Deixo-o completamente fora de meus planos. Quero nos próximos tempos recuperar o que perdi fisicamente e desbravar o que ganhei espiritualmente. Quero reforçar uma trilha cada vez mais sólida para ir ao encontro de forças que me sustentaram a vida.
Meus planos para o futuro são os melhores possíveis – sempre reconhecendo que a batalha ainda não terminou, como insiste em pensar a parte mais viva de minha nova vida.
Um futuro melhor possível não se estende necessariamente a terceiros que subvertem a meritocracia, a cooperação, o exercício de mecanismos que retirem da inércia improdutiva os pulmões de responsabilidade social. Estamos regionalmente asfixiados; socialmente, entregues a deus-dará.
É impossível praticar jornalismo de conveniência, sob qualquer aspecto ético e moral, quando uma população inteira de Diadema e uma população inteira de São Caetano correspondem aos pobres e miseráveis do Grande ABC. Ou quando os ricos e a classe média tradicional são cada vez menores.
Nossa desigualdade social é extravagantemente dolosa e culposa. A mobilidade social, mais que perder tração, foi puxada morro abaixo. Da missão denunciadora de um Grande ABC em depauperação incontrolável, jamais abrirei mão.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)