Hoje é Dia do Jornalista. Não ligo para essas coisas, mas há quem ligue e eu respeito. Acho que jornalismo é uma atividade compulsoriamente diária para quem é de fato do ramo e que, portanto, deveria ser atentamente observada também a cada dia. Talvez a melhor maneira de dizer o quanto o jornalismo é importante é fazer o que vou fazer agora. Com 20 anos de diferença, o jornalismo profissional sem militância e sem subserviência da revista de papel LivreMercado mostrou o quanto estava à frente da academia e também de autoridades públicas pouco afeitas ao trabalho para valer.
Tenho um gosto particular de combate produtivo associado à admiração pelos acadêmicos, sobretudo àqueles que aparecem no Grande ABC. E hoje, Dia do Jornalista, é uma oportunidade especial.
Desindustrialização sempre foi um dos temários essenciais no guarda-chuva de regionalidade inconformada da revista LivreMercado e de CapitalSocial. Tanto é verdade que há 750 textos sobre o assunto no arquivo das duas publicações. Há variantes como “evasão industrial” que, cumulativamente ou não à “desindustrialização”, podem aumentar o estoque de abordagem substantiva ou acessória de um vírus jamais combatido para valer na região. E que faz estragos contínuos.
Separando os jornais
O que tem a ver LivreMercado/Capital com a academia a ponto deste jornalista exaltar um dia especial que jamais considerou um dia especial?
Foi a reportagem que acabo de ler no Diário do Grande ABC sob o título “Região tem 308 galpões que já foram empresas e estão ociosos”. Não, a reportagem não é de hoje. É de 14 de fevereiro último. Ora, bolas, por que tanto atraso? Porque ainda estou colocando em dia a leitura atrasada, acumulada, de meu dia a dia abruptamente interrompido pelo ataque de um assassino. Devagar vou ponto a casa da leitura em ordem.
Os jornais foram separados diariamente como sempre pela minha família diante de eventuais ausências. No caso específico, mostraram os exemplares (Diário do Grande ABC, Folha de S. Paulo, Estadão e Valor Econômico) que todos acreditavam que eu poderia voltar vivo do hospital. Vivo e sem sequelas neurológicas. Acertaram nas duas moscas.
Reportagem do Diário
Mas, voltemos ao que interessa agora. O Diário do Grande ABC publicou uma matéria cuja temática a revista LivreMercado esmiuçou na edição de outubro de 2001 – duas décadas antes, portanto. Primeiro, vamos aos trechos principais do Diário, os quais são mais de 50% do texto total:
Resultado de décadas de desindustrialização, o Grande ABC coleciona galpões ociosos. Nas sete cidades, existem 308 espaços vazios, entre 5.000 m2 (metros quadrados) e 1 milhão de m2, que anteriormente abrigavam linhas de produção e centenas de trabalhadores. E este cenário pode se agravar ainda mais com a pandemia do novo coronavírus, devido ao avanço do uso da tecnologia, e da implantação da indústria 4.0. O levantamento integra a dissertação de mestrado da economia Gisele Yamauchi, defendido pela Universidade São Judas Tadeu. A cidade que concentra maior parcela dos 308 depósitos sem utilização é São Bernardo, com 127 ou 41,2% do total. Segundo Gisele, o município sofreu mais por causa do tamanho e por ser “o que mais detém a atividade industrial da região e, consequentemente, é a cidade que mais possíveis áreas industriais ociosas”.
Mais dissertação
Apesar disso, toda a região sofre com o mesmo problema, fruto do processo desindustrialização enfrentado desde pelo menos, 1989. Consolidado como um dos principais polos industriais do Estado, principalmente do setor automotivo, o Grande ABC vem assistindo à evasão ou encerramento de grandes empresas nas últimas décadas. (...) “Embora os galpões sejam privados, o ônus fica para a cidade, e essa que é a parte mais complicada quando se fala em gestão pública. Além de algumas estarem com impostos atrasados e nenhuma gerar mais atividade produtiva, trata-se de situação que virou questão urbana. Prédios podem ser palco de invasão e problemas sanitários”, afirmou Gisele. (...) O levantamento da economista levou quase dois anos para ser concluído, com base em intensa pesquisa imobiliária e checagem in loco. Todo o trabalho foi orientado pela professora do programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu, Andréa de Oliveira Tourinho.
LivreMercado de 2001
Agora vamos aos principais trechos (e são muitos, mas não passam de 20% do total) da reportagem/análise produzida por este jornalista e o também jornalista André Marcel de Lima para a edição de outubro de 2001, sob o título “Evasão continua. Quando vamos reagir de fato?”. A bem da verdade, a matéria é mais do André do que do Daniel, porque foi ele quem garimpou as fontes nucleares de dados. Leiam o que LivreMercado oferecia de qualidade e precisão aos leitores:
Uma proposta para a sociedade regional: vamos reduzir a evasão industrial e salvar o Grande ABC do esvaziamento econômico que se acentua a cada ano. Evasão industrial é realidade que precisa deixar de ser lançada para debaixo do tapete do comodismo, da dissimulação e mesmo da negação. Negar o inegável é incorrer no pior dos desatinos. Por isso, a Editora Livre Mercado decidiu lançar a campanha Chega de Evasão, É Hora de Mobilização como um dos pilares do programa Construindo o Futuro. A decisão se prende a informações preocupantes: uma única empresa especializada em terrenos virgens ou desocupados, galpões abandonados e fábricas instaladas no Grande ABC contabiliza 2,5 milhões de metros quadrados à venda na região. Desse total, 400 mil metros quadrados são de 40 indústrias de médio porte que estão em atividade, mas se preparam para bater asas. Isso mesmo: querem ganhar mais competitividade e para isso consideram o Grande ABC inviável.
Mais 2001
Esses números devem chamar a atenção de lideranças públicas, trabalhadores e comunidade porque, sem fazer alarde, mais 40 indústrias de porte instaladas em Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema estão com imóveis à venda. A informação parte de uma logomarca respeitável no mundo dos negócios imobiliários. É a Bamberg, uma das maiores consultorias de imóveis industriais, comerciais e residenciais de São Paulo. A contabilidade histórica da empresa registra mais de três milhões de metros quadrados negociados em 15 anos de atividades. A falta de dados confiáveis nas prefeituras e nas inúmeras imobiliárias sediadas no Grande ABC é um dos nós górdios do planejamento ocupacional da região. Como propor políticas de desenvolvimento econômico sustentável sem ter às mãos -- livre de interesses políticos, institucionais e privados -- um desenho bem-acabado do mapa regional de deserções industriais e de terrenos que jamais foram ocupados produtivamente, entre outros motivos, por causa de leis restritivas demais?
Mais 2001
O balanço da Bamberg, jamais detalhado ou mesmo dimensionado publicamente pela empresa, deve ser interpretado como espécie de abertura de uma fresta que pode levar a constatações mais desagradáveis. Isso porque envolve praticamente apenas empreendimentos de médio porte cujos dirigentes recorrem com mais frequência a empresas de consultoria imobiliária mais renomadas. A raia miúda de pequenas indústrias que desapareceram do cenário do Grande ABC nas duas últimas décadas está pulverizada por dezenas de imobiliárias locais. Por isso, qualquer diagnóstico sobre o universo de espaços disponíveis na região pode ser exercício incompleto, embora importante. Certo mesmo é que a Bamberg tem 2,5 milhões de metros quadrados disponíveis ou potencialmente disponíveis no Grande ABC. Para se ter ideia do tamanho desse negócio para a empresa, enfileire 625 quarteirões de tamanho padrão e encontrará o resultado espacial mais facilmente identificável. Se ainda tiver dúvida, experimente correlacionar o estoque da Bamberg a 6,25 quilômetros de quarteirões seguidos. Ou a 25 áreas ocupadas pelo Clube Atlético Aramaçan, em Santo André.
Mais 2001
(...) A consultoria prestada para a ZF Sistemas de Direção -- que trocou São Caetano por Sorocaba -- é exemplo de processo vinculado. A Bamberg detectou área no Interior de São Paulo e ainda encontrou comprador para o imóvel remanescente no Grande ABC. O Grupo Pão de Açúcar criou unidade do Hipermercado Extra no prédio de 70 mil metros quadrados. "O prédio foi vendido por US$ 10 milhões na época" -- recorda Michael Bamberg. A reação natural dos consultores da Bamberg para ocupar o imóvel deixado pela ZF em São Caetano foi buscar interessados no ramo de autopeças, com base na suposição de que a proximidade de pouquíssimos quilômetros da planta da General Motors serviria de poderoso atrativo. Mas o foco foi corrigido para o comércio varejista ao se constatar que o preço do terreno, próximo ao Centro de São Caetano, tornara-se elevado demais na comparação com vizinhos do Interior Paulista. "O custo do terreno afastou indústrias" -- lembra o consultor Antonio Mendonça. "O metro quadrado de terreno no Grande ABC gira em torno de R$ 80 a R$ 100, enquanto nas zonas industriais de Campinas e Sorocaba oscila entre R$ 20 e R$ 30" -- compara o diretor comercial Wilson Barbosa de Oliveira Júnior. "Além disso, existe a questão logística. Deslocar-se para o Rio de Janeiro ou Minas Gerais a partir de Campinas ficou mais rápido e econômico do que a partir do Grande ABC porque não é necessário atravessar o trânsito de São Paulo" -- observa o consultor, sem mencionar um dado a mais que coloca a desindustrialização da região em permanente fervura: a construção do eixo oeste do Rodoanel estabelecerá novas relações de logística para empresas que estão instaladas ou vão se instalar do lado oposto ao que se encontram os sete municípios do Grande ABC.
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(...) O Grande ABC precisa espantar um fantasma que o persegue há décadas. Que fantasma é esse? O maniqueísmo que ainda trata empreendedores com desdém. Enquanto a região insiste em minimizar a importância da livre iniciativa valorizando-a apenas como manancial de arrecadação de tributos, cidades do Interior paulista organizam-se para recepcionar investimentos. Até bandas de música são mobilizadas para saudar as novas fábricas. O fato é que o quase desprezo que os administradores e legisladores públicos dispensam aos empreendimentos industriais só se compara à escassez de articulações conjuntas da própria classe empresarial. O Grande ABC foi forjado economicamente sob o signo da individualidade competitiva para atender principalmente às montadoras de veículos. Parceria, cooperativismo e coopetição são práticas desconhecidas. Mas os tempos são outros. A vaca leiteira já não tem a mesma musculatura e não convém assistir passivamente o definhamento nem acreditar em semânticas que colocam o termo desindustrialização em blindagem contra o bom senso e o pragmatismo.
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(...) O fato inexorável é que o Grande ABC tem perdido força industrial simplesmente porque não tem feito praticamente nada de forma sistemática, efetiva e articulada para impedir novas debandadas. E, numa prática suicida, canta aos quatro cantos a chegada esporádica de novos investimentos que, além de geralmente canibalizarem os negócios já instalados, transmitem a falsa impressão de que há um novo mundo de desenvolvimento sustentado a ser comemorado. Para se ter idéia do quadro econômico da região, uma comparação ponta-a-ponta da geração de riquezas entre 1980 e 2000 indica que o Grande ABC perdeu praticamente um terço (32,7%) de participação no Valor Adicionado do Estado. A região tinha 13,89% de participação na produção de riquezas e impostos em 1980, contra 9,35% no ano 2000. Em reais, isso significa que em vez de gerar apenas R$ 21,2 bilhões em 2000, deveria ter gerado R$ 31,6 bilhões. Diferentemente dos sete municípios do Grande ABC, os cinco primeiros municípios do Interior do Estado de São Paulo no bolo do Valor Adicionado cresceram no mesmo período pesquisado, sempre tomando dados oficiais da Secretaria da Fazenda do Estado. Em 1980, Campinas, Paulínia, São José dos Campos, Jundiaí e Sorocaba totalizavam 8,12% de participação no Valor Adicionado do Estado, contra 13,89% do Grande ABC. No ano 2000, depois de apresentar curva sempre ascendente a cada cinco anos, comparado pelo critério ponta-a-ponta, esses cinco municípios do Interior do Estado registravam 16% de Valor Adicionado, contra 9,35% do Grande ABC.
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