Imprensa

Diário do Grande ABC em 180
minutos de gravação histórica

DANIEL LIMA - 28/04/2021

Estou repassando aos leitores de CapitalSocial que constam de minhas listas do aplicativo WhatsApp a primeira de quatro etapas da gravação de um encontro histórico. Era 19 de abril de 2005 e o Diário do Grande ABC vivia fase de transição societária. Fora este jornalista convidado nove meses antes a assumir a direção de redação. Nove meses depois estávamos lá eu e todos os editores. Nas próximas semanas libero gradativamente os demais blocos de gravação.  

A pauta foi tratada como um testamento à direção do jornal em forma de um workshop que revelou com clareza e independência individual e coletiva o que se passava naquele endereço da Rua Catequese.  

Foram 180 minutos inesquecíveis que, mais que o momento do jornal, ultrapassava os limites do tempo sugerido. Afinal, expunha a gestão do maior e mais poderoso negócio de comunicação na região ao longo dos anos. Uma sincronia finíssima com o descarrilamento econômico do que na metade do século anterior se configurou a capital automotiva do País. O Grande ABC destes tempos é de oficialidade informativa em larga escala. Os medíocres da gestão pública agradecem.  

Quem achar que jornalismo e economia regionais não são parentes próximos precisa fazer reciclagem. Quando a degringolada industrial cede espaço ao domínio político, o tripé Estado-Sociedade-Economia se desmancha.  

Oportunidade de ouro  

Quem já ouviu a gravação várias vezes sempre se encanta com o conteúdo. Quem a ouviu apenas uma vez sentirá vontade de repetir a experiência. E quem ainda não teve a oportunidade de exercitar o compromisso social de conhecer as entranhas do jornal deveria fazê-lo. A defasagem de 15 anos acrescentou mais dramaticidade a uma atividade abaladíssima por novas tecnologias.  

No meu caso, que descobri por acaso uma cópia em disquete daquele encontro, tenho matado a saudade ouvindo agora meus companheiros de trabalho em casa, nestes tempos de convalescença. Antes disso, nos deslocamentos semanais à Capital ou numa viagem qualquer ao Interior próximo.  

Afinal, qual é a razão para retirar do fundo do baú de acervos divididos entre o sótão de minha residência e os amplos armários do escritório um encontro realizado há 16 anos?  

São vários os fatores, entre os quais, como não sou falso humilde, desses que minimizam apenas da boca para fora a importância do que vivera, a reação se deve ao fato de ter ficado perplexo ao me ver de volta do hospital no qual passei entre a vida e a morte durante 10 dias.  

Fui tratado como um qualquer pelo Diário do Grande ABC, publicação na qual trabalhei durante 16 anos e ocupei, em seguidas promoções, todos os cargos. Duas vezes, entre as quais, como Diretor de Redação. E duas vezes como ombudsman, além de Editor de Esportes e Editor de Economia.  

Banalização do caso  

Banalizou-se o incidente nas páginas do jornal. Colocaram-me especificamente nas manchetes como um briguento em pet shop. Jamais se deu o destaque devido e honesto ao fato mais importante e comprovador da emboscada que me colheu: o assassinato não consumado foi gravado pelo próprio sistema instalado no pet shop e o autor do tiro em meu rosto, frio e calculista, surrupiou o material para supostamente evitar a condenação, assinando um atestado de estupidez que Tribunal de Júri algum negligenciará.  Fui covardemente atacado. Sem motivo algum. Agira o tempo todo como um diplomata. A gravação levada embora pelo assassino prova isso.  

O tratamento jornalístico beirou o desprezo, como se a própria história do jornal não valesse absolutamente nada porque comportou as atividades deste profissional. Ou seja: o jornal a que tantos anos servi com paixão a ponto de negligenciar relações familiares (esse é um dos preços a quem abraça a profissão para valer, sabem todos os jornalistas) me dedicou a quase insignificância, além de imprecisa, informativa policial. Até parece que uma de minhas marcas naquela publicação (a cláusula pétrea que impus de a manchetíssima de primeira página ser sempre de cunho regional, não copiada do Jornal Nacional, como o encontrei) não valesse nada.  

Sem surpresa  

Nada que a cobertura do meu assassinato frustrado nas páginas do Diário do Grande ABC tenha se constituído surpresa. Há especificidades de relacionamentos que não valem a pena ser colocadas, as quais passam inclusive pela ruptura de um projeto editorial que alteraria completamente a história da publicação – e que estava no cerne daquele workshop.  

Esse (o assassinato não consumado e o explícito desrespeito ao histórico do próprio jornal) é um dos pontos, mas não o principal da divulgação da gravação de 2005.  

Antes mesmo daquele primeiro de fevereiro fatídico já distribuíra aquela gravação de mais de três horas a alguns leitores de CapitalSocial. Talvez tenha sido também por isso que a surpresa pós-assassinato não consumado tenha sido a não-surpresa da cobertura do jornal.  

O motivo de então, e o principal entre todos, é a relevância de se conhecer o último grande trabalho jornalístico efetivado no Grande ABC por uma equipe de profissionais que honram a camisa da empresa e a paixão pela região de tantos omissos.  

Homenagem a todos  

Tenho tanto orgulho daquela equipe de profissionais que massificar as análises expostas durante o workshop de forma extraordinariamente serena, contributiva, agregadora, é o mínimo que poderia fazer. Retirá-los da penumbra como ex-funcionários do jornal (não me consta que qualquer um deles tenha permanecido na empresa por muito tempo após aquele encontro) é uma forma de homenagem e agradecimento.  

Torná-los protagonistas mesmo que retardatariamente da atividade jornalística na região é um dever de ofício que aquela gravação atesta.  

Houvesse no Grande ABC algo que poderia ser chamado de comprometimento social e institucionalidade responsável, o material da gravação seria transformado em livro que extrapolaria o âmbito corporativo. Ali está o retrato de uma sociedade em decomposição participativa, entre outras constatações.  

Bastidores dispensáveis  

Não pretendo revelar detalhes de bastidores, por assim dizer, que me levaram a promover aquele encontro em, repito, 19 de abril de 2005. A reunião fora das dependências do Diário do Grande ABC era estratégica. Não deveria subsistir qualquer influência restritivo-psicológica às avaliações do produto que ia aos leitores.  

Essa independência locacional se mostrou adequada, mas talvez tenha sido exagero meu. Aquela turma era por natureza e profissionalismo repleta de gente de personalidade e competência.  Nem mesmo se temiam espiões.  

Primeiro, porque diretoria e acionistas da empresa foram convidados ao encontro como espectadores. Não apareceram. Segundo, porque se deliberou previamente que o evento seria gravado em áudio e encaminhado à diretoria. O que se deu dois dias depois. Terceiro, porque havia sim uma espiã entre os participantes. Todos os demais sabiam disso, mas nem por isso a infiltrada deixou de participar e de se manifestar. Possivelmente apenas ela, a infiltrada, não sabia que todos sabiam que era uma estranha no ninho de lealdade e comprometimento para valer com o jornal e a sociedade.  

Sem vieses políticos  

Os leitores que forem contemplados com aquele conjunto de ideias poderão ter uma visão mais aproximada e apropriada do significado de jornalismo profissional que, nestes tempos, virou algazarra ideológica.  

Jamais em toda a minha carreira, ocupando todos os postos possíveis de uma redação e, consagração das consagrações, tendo meu próprio produto durante duas décadas (a revista de papel LivreMercado, além desta revista digital), jamais em todo esse período específico, cometi o desatino ético de instrumentalizar politicamente qualquer texto. E aquele workshop de 16 aos atrás foi o retrato da liberdade de expressão. Nem nas entrelinhas consta qualquer avaliação desgarrada do espectro profissional de varredura nas entranhas editoriais do Diário do Grande ABC.   

Para quem viveu como vivi aquele encontro e conta com a oportunidade que a tecnologia possibilita de recuperar palavra por palavra de tudo que fora exposto, só existe mesmo uma obrigação a fazer como companheiro de trabalho de uma redação engajada num projeto que preparei durante um fim de semana no Interior do Estado, alinhavando os passos mais importantes para início dos trabalhos – a manifesta decisão de levar sobremodo aos formadores de opinião e tomadores de decisão do Grande ABC um retrato fiel do que é jornalismo de verdade.  

Ineditismo da ação  

Não há na literatura da atividade que abracei aos 15 anos de idade nada que se assemelhe àquele workshop, entre outros motivos porque não se tratou de lavagem de roupa suja. Aqueles profissionais expuseram mais que lamentações justas: eles, todos eles, menos um, infiltrado, demonstraram visão empreendedora surpreendente, oferecendo calhamaço de propostas à direção da empresa.  

Aquele workshop extraordinariamente comovente é responsável por uma grande dúvida em minha carreira profissional. Não sei se aqueles 180 minutos são mais importantes, igualmente importantes ou menos importantes que os 18 anos da revista LivreMercado, publicação inovadora no jornalismo regional entre outras características porque decifrou e sistematizou o DNA do texto personalizado, não-commoditizado, analítico que, apenas em situações circunstanciais, se praticava na região.   

A dúvida é persistente, mas quando se invade um outro campo, de irmandade profissional conjugada com esforço coletivo em defesa da região, nada supera aquela demonstração gravada em 180 minutos. Imperdível – por mais que LivreMercado tenha sido, também nesse campo, uma grande experiência de vida.  



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