Não adianta tapar o sol da gravidade econômica e de conteúdo do jornalismo impresso regional em todo o País com a peneira rastaquera e provinciana. Ao completar 63 anos de circulação, o Diário do Grande ABC está na fila cada vez mais acelerada de transformações que o colocarão principalmente como um produto digital. Resta saber se o digital alcançará as prioridades de leitores cada vez mais arredios, quando não vorazes multiplicadores de consultas diversas e de baixa fidelidade informativa.
Mais que isso: resta saber também se o Diário do Grande ABC será apenas um produto digital ou vai conviver num esforço de resistência como produto digital e produto de papel. E quais seriam as proporções de sustentabilidade econômica para seguir na praça. Não adianta a audiência diária aumentar se a fonte desse crescimento for a plataforma virtual de baixíssimos resultados financeiros. A qualidade final do produto, seriamente abatida, é o que importa segundo a ótica de leitores que também são consumidores, que também são eleitores, que também são cidadãos.
O Diário do Grande ABC deste 2021 é bastante diferente do Diário do Grande ABC que dirigi por nove meses entre julho de 2004 e abril de 2005. E é muito diferente do Diário do Grande ABC dos maiores investimentos na redação e de respostas positivas, no período dos anos 1990 com Alexandre Polesi no comando editorial. A estrutura já era incompatível com respostas orçamentárias de uma região que afundava na desindustrialização e perdera naquela década mais de 100 mil empregos formais no setor industrial.
Voo panorâmico
Vou fazer um voo panorâmico sobre como vejo o Diário do Grande ABC tendo perspectiva relativamente histórica a instrumentalizar a reflexão. Detalhamentos não cabem nesta análise. Couberam e foram explorados em voos rasantes no Planejamento Estratégico Editorial. Foram quase 100 mil caracteres de avaliações.
Se por uma conjunção de fatores extraordinários o Diário do Grande ABC desse salto quântico e se tornasse um produto que iniciasse arremetida rumo ao melhor jornalismo regional do País (algo como as quase duas décadas da revista LivreMercado, ponto de convergência que me levou a aceitar o convite para comandar o jogo por nove meses), nem assim o futuro seria seguro. Fazer do Diário do Grande ABC em qualquer plataforma um produto em que se sobreponham análises demanda tantas mudanças quanto colocar ordem no mercado paralelo de corrupção do mercado imobiliário.
Há pontos de interrogação desafiadores que dificilmente serão superados pelo Diário do Grande ABC de Papel e exigirão muitos esforços para se consumar no Diário do Grande ABC Digital.
Com o faro de duas vezes ombudsman autorizado único do jornal ao longo da histórica e com a sintonia fina de ombudsman não autorizado não só do Diário do Grande ABC, mas de todos os veículos de comunicação que julgar interessantes a abordagens, já sinto cheio de predomínio da digitalização das edições do Diário do Grande ABC como carro-chefe de produção e audiência. Aliás, distinguir circulação (no papel) e audiência (na Internet) é muito mais que eventual capricho -- é mesmo a diferença entre uma plataforma e outra.
As matérias publicadas na semana passada, que remeteram aos 63 anos da publicação, são mais que indícios para quem sabe ler – são a porta de entrada à solução de um produto inviável financeiramente numa região em decomposição econômica.
Artimanhas entrelinhas
Saber ler é muito importante para decifrar o que se passa na mídia. Quem não tem intimidade com o publicado não tem a mínima ideia do que está no não publicado. É fácil compreender o que os donos de jornais imaginam que são segredos confinados entre parceiros de ocasião ou perenes. A leitura atenta e comparativa escancara tratativas extracampo. Mas isso é outra história que exigiria várias edições deste site.
Aliás, as dezenas de textos como ombudsman não autorizado e autorizado revelam muitas minúcias de contorcionismos que parecem combustão natural, mas não são.
Voltando ao que interessa: o Diário do Grande ABC de Papel já pegou a trilha do Diário do Grande ABC Digital. Tem sido assim com jornais regionais impressos em todo o mundo. Essa tendência de cunho de sobrevivência econômica só não alcançou os jornais que já fecharam as portas. E fecharam as portas entre outros motivos porque desdenharam da avalanche tecnológica carregada de metamorfoses culturais.
Na também maioria dos casos são jornais regionais que, ao trocarem o papel pelo impresso naufragaram de vez. Qualidade de verdade custa dinheiro grosso. E o digital não dá o retorno desejado. Ultrapassar esse terreno movediço não é tarefa fácil.
Enfermidades agregadas
Pesam contra a resistência impressa cada vez mais fragilizada do Diário do Grande ABC vetores que em outros quadrantes do mundo são apenas semelhantes em algum grau. No Grande ABC há enfermidades próprias a abalar o jornalismo impresso regional e que se estenderão ao jornalismo digital porque não há milagre na transposição. Água não vira vinho. Muito menos vinagre. Há pontos insuperáveis. Não há como neutralizá-los, exceto com uma engenharia multidisciplinar que tenha o produto jornalístico observado como massa crítica das expectativas da sociedade.
O jornalismo de papel é cada vez mais caro e inviável nas publicações regionais, mas o jornalismo digital embora mais em conta não sobreviverá como fonte de credibilidade e conhecimento sem adotar políticas editorais coerentes com os anseios da sociedade.
Todos os pontos listados abaixo impactam duramente o Diário do Grande ABC. No passado exclusivamente de papel também impactavam, mas em intensidade mais branda.
A grandiosidade econômica do Grande ABC ajudava a arrefecer as dificuldades. As complicações atuais são muito maiores do que quando elaborei aquele plano estratégico e desenhei há 16 anos uma revolução no produto levada a cabo por um grupo extraordinário de jornalistas.
Gravações imperdíveis
Aquele legado está à disposição de quem pretender ouvir três horas de gravações de um workshop que marcou minha despedida do comando da redação. Não há título de Cidadão de Santo André e tampouco Medalha João Ramalho de São Bernardo que me comoveram mais. Longe disso.
Mas vamos ao que interessa agora, que, repito, não eram obstáculos tão complexos como há uma década e meia.
Há problemas exógenos (externos) e endógenos (internos) que fazem do Diário do Grande ABC experimento a malabaristas na sustentação financeira do produto mesmo com profundas limitações editoriais de agora.
Encruzilhadas a superar
Reparem nos fatores internos e externos, separadamente ou sistêmicos, que atormentam o futuro do Diário do Grande ABC e o lança ao mar de tubarões no democrático e insano mundo digital:
Degringolada econômica do Grande ABC.
Concorrência midiática da Capital e das redes sociais.
Identidade regional em frangalhos.
Representatividade política pífia.
Institucionalidade rarefeita.
Tendência implacável à digitalização.
Não esqueçam que trafegamos em voo panorâmico. Nada de detalhamento de inconformidades corporativas. O feixe de complicações não deixa margem a manobras radicais que possam, num passe de mágica, alterar a ordem das coisas. São buracos negros que não podem ser negligenciados em qualquer plano de investimento no produto chamado Diário do Grande ABC. O retorno financeiro seria pouco provável. Os investidores perderiam muito dinheiro.
Sem milagres
Humildemente confesso que fosse hoje e mesmo que o Diário do Grande ABC contasse com insumos mais qualificados como naquele 19 de abril de 2005, quando da mais relevante participação de jornalistas na história do produto, não teria coragem de elaborar aquele planejamento editorial.
Não há argumentos no curto e mesmo no médio prazo a contemplar investimentos como garantia de retornos financeiros. Certamente a rentabilidade seria de ordem social, de cidadania, mas não se vive de vento. Desconheço mecenas na região que se sensibilizariam com projeto editorial. Por outro lado, não faltam bandidos sociais decididos a atrapalhar.
Tanto não se vive de vento ou de ilusão que não é por falta de propostas que me mantenho quietinho no meu canto como diretor de redação, repórter, redator, articulista e tudo o mais desta publicação digital. Não aceito nem que a vaca tussa qualquer proposta para reeditar os pressupostos da revista LivreMercado, que durou quase duas décadas. Talvez no campo digital decida -- se me der na cachola -- fazer algo a mais que este site. Propostas também não faltam. Mas o tiro na cara de primeiro de fevereiro fez com que congelasse negociações com dois grupos diferentes. Antes de decidir vou consultar o médico sobre a possibilidade de o projétil ter remexido o cérebro a ponto de me desfalcar de um parafuso na engrenagem cognitiva.
Dieta rigorosa
Não vou detalhar cada um dos pontos essenciais listados acima para assentar improváveis tijolos na casa do jornalismo de papel que desmorona em todo o mundo. Estão aí os jornalões brasileiros (Folha, Estadão e Globo) em permanente mergulho na tiragem de papel e avanço na audiência de assinantes virtuais. Nada que uma coisa compense financeiramente a outra. Muito distante, distante.
Os grandes jornais de papel com circulação cada vez mais raquítica, a ponto de não alcançarem média diária de 80 mil exemplares, estão proporcionalmente mais próximos da realidade do Diário do Grande ABC, ou seja: são vitrines que podem ser entendidas como sobrevivência do produto no formato convencional enquanto a ramificação se dá nos meios eletrônicos.
O valor dos novos produtos que substituem gradualmente os antigos produtos (ou seja, do jornal digital que se sobrepõe lentamente ao jornal de papel) será equivalente ao estágio em que se encontram os veículos tradicionais. Quem faz jornalismo com competência (mesmo que enviesado) terá menos dificuldades de seduzir os leitores digitais.
Três desafios
Quem, entretanto, como o Diário do Grande ABC, em estágio de pauperismo editorial, vai sofrer mais. Será preciso uma revolução para o Diário do Grande ABC Digital ganhar tração natural dos 63 anos de existência física que, a bem da verdade, é cada vez menos intensa porque sofre as consequências dos estragos mencionados acima.
No fundo e pensando bem, o Diário do Grande ABC tem três desafios a superar para não cair na vala comum (diferenciada de acordo com a qualidade editorial) dos veículos que só contam com plataforma digital.
Primeiro, manter-se como jornal de papel; segundo fortalecer a marca de jornal digital e; terceiro, ganhar sinergia com os dois modelos. Tudo isso num ambiente hostil de uma região metropolitana que tem a maior Capital do País como referência de tudo e as insuperáveis barreiras internas de uma sociedade que cada vez mais ganha perfil cultural de periferia paulistana e de um parque industrial intensamente impactado pela macroeconomia sempre desfavorável a um território que perdeu a corrida da competitividade.
Já foi embora o vento que no passado de glórias soprou a favor e contribuiu muito para o Diário do Grande ABC de Papel se tornar o maior veículo impresso fora das capitais. Pior: cedeu-se espaço a uma tempestade de desindustrialização contínua que infla camadas do proletariado, enquanto a classe média e os nichos de ricos são cada vez mais minoritários. A debacle se completa internamente com uma quase marginalidade intelectual que fermenta águas fétidas e proporcionam a festa dos bandidos sociais.
Total de 1884 matérias | Página 1
13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)