A conta é simples, ao mesmo tempo em que é devastadora. Só não assusta tanto quem vem lidando com a desindustrialização do Grande ABC há muitos anos --- mesmo contra a correnteza de um ufanismo vergonhoso, porque preguiçoso: o Grande ABC perdeu em 34 anos, entre 1985 e 2019, nada menos que 54 fábricas iguaizinhas à da Ford desativada em 2019.
São 153.622 trabalhadores industriais com carteira assinada que desapareceram no período. Nada menos que 49% do efetivo. Santo André e São Caetano lideram o ranking de degola. Por isso estão caindo pelas tabelas de desenvolvimento econômico a cada nova temporada.
A região contava em 1985 com 298.736 trabalhadores industriais. Em 2019 restaram 145.114. Sabe quanto significa isso? Uma fábrica de 376 trabalhadores com carteira assinada desativada a cada 30 dias. No caso do Grande ABC foram fábricas desativadas e transferidas. Mudaram de endereço. Escafederam-se para bem longe ou bem perto. Em busca de competitividade que a região foi perdendo aos poucos.
Traduzindo os dados
A conta que fiz leva em conta que a fábrica desativada em São Bernardo pela Ford contava com 2.8 mil trabalhadores diretos. Quem é adepto do conto do vigário de que o Grande ABC não passou por desindustrialização precisa fazer uma penitência e refletir sobre o quanto entorpece a verdade.
Afinal, 153.622 mil trabalhadores de saldo negativo são uma São Caetano de habitantes. Ou a soma de Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. É muita gente, muito salário, muito consumo. Não à toa o Grande ABC perde a cada ano mais geração de riqueza, mais classe rica, mais classe média. E ganha mais pobres e miseráveis.
Ganhos de produtividade industrial com o uso de tecnologia não salvam a pátria regional. Há desequilíbrio demais entre investimentos produtivos, concentrados nas grandes empresas, sobretudo do setor automotivo, e empregabilidade em vertigem. Não é pouca coisa que metade dos empregos industriais com carteira assinada virou pó.
Subir de vida?
Aos descuidados, aqueles que se deixam enganar pelos ladrões do futuro, não custa lembrar que já nos roubaram o presente de mobilidade social, aquela especialidade em que o pobre de hoje vira proletariado amanhã e prepara o terreno para virar classe média baixa no futuro ainda mais adiante. E assim, quem sabe, chegue ao topo das classes sociais.
Não custa lembrar que essa montanha de trabalhadores a menos na indústria do Grande ABC não é o total geral do período. Estão aí os representantes dos oito maiores setores da atividade de produção. Na verdade, é quase todo o universo de carteiras assinadas de ontem e de hoje. Só não é a precisão geral, cuja variação não mudaria muito o cenário de destruição.
Temos muitas rodadas editoriais para esmiuçar os dados estatísticos. Os números estão na mais recente edição do boletim do Conjuscs, ramal de estudos da USCS, Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Transformei pedra relativamente bruta em análise. É assim que o jornalismo precisa ser. Se dependesse exclusivamente da fonte acadêmica, caso desconhecesse a realidade da região, assim como o passado, provavelmente cometeria erros imperdoáveis.
Por exemplo: o material da USCS assinado Gisele Yamauchi e Jefferson José da Conceição tem horror ao verbete desindustrialização. Não é a primeira vez que, principalmente Jefferson, atuante nas lides sindicais, prefere negar ou dissimular o histórico de afrouxamento da indústria regional. Mais uma vez ele se utiliza de definições como “reestruturação produtiva e as transformações tecnológicas ocorridas no período, que resultaram em acentuada eliminação de postos de trabalho”.
Negacionismo acadêmico
Jefferson sabe que não são apenas uma coisa e outra que estão na gênese da desindustrialização regional. Ganha um prêmio especial quem encontrar na nova edição do Conjuscs algo que se refira à desindustrialização como realidade histórica da região. Se o verbete aparecer, provavelmente será no sentido de se negar o desfiladeiro econômico do Grande ABC. Há espécie de síndrome sindicalista a permear a negativa acadêmica.
Não se admite que as ações sindicais no período que começou com a liderança do então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Lula da Silva, tenham alguma coisa a ver com isso. O sindicalismo da região reúne face positiva inegável que se alinha à própria corporação. O outro lado da moeda é motivo a excomunhão.
Fossem apenas as razões apontados pelos dois acadêmicos autores do trabalho sobre o comportamento do emprego industrial ao longo dos anos, o Grande ABC não estaria em situação de competitividade econômica diferente dos principais municípios e regiões do País, porque se trata de duas peças-chaves na produção industrial.
Múltiplos fatores
Os males do Grande ABC são muitos, mas têm origem no movimento sindical que Jefferson defende a todo custo e que, mesmo com mudanças, ainda permeia as relações entre capital e trabalho com decibéis acima dos concorrentes de outras região. As dificuldades também passam pela guerra fiscal, chega ao Plano Real, prossegue em direção à globalização econômica, entra no tiro pela culatra do trecho sul do Rodoanel e pega de primeira, entre tantos outros vetores, a inapetência coletiva das instituições locais, sobretudo os administradores municipais.
Perder em volume de empregos 54 fábricas da Ford, ou uma população inteira de São Caetano, não é mesmo uma coisa qualquer. Em qualquer lugar do mundo haveria mobilização social. No Grande ABC amorfo e entregue às baratas de uma sociedade cada vez mais periférica e gataborralheiresca, a situação vai ficar ainda pior e nada de novo surgirá. Como assim? As opções que despontam no horizonte político manipulado, sobremodo em Santo André, é o indicativo de que, pior do que está, pior ficará.
Aguardem desdobramentos das avaliações que fiz tendo como base o exaustivo e importante trabalho dos acadêmicos da Universidade Municipal de São Caetano. A coleta de informações junto ao Ministério do Trabalho é uma ação importantíssima para entender o que se passou na região. A obviedade da desindustrialização negada é um tropeço que nem pode mais contabilizado como fato negativo. Já está precificado e juramentado.
Origem do estudo
Em novembro do ano passado, nesta mesma revista digital, me antecipei à ação dos acadêmicos da USCS ao revelar o quanto de emprego industrial formal o Grande ABC perdeu no período de 34 anos. A diferença entre um trabalho e outro é o período específico de cada um. Naquela oportunidade o tiro de partida foi janeiro de 1987 e a fita de chegada em dezembro de 2019. Agora o começo se dá em janeiro de 1985 e o término em dezembro de 2019. A USCS preferiu não contabilizar os dados de 2020 por causa de mudanças metodológicas que teriam alterado o nexo estatístico. Claro que também há diferença quando ao método: a USCS brilha ao setorizar o balanço do movimento empregatício dos trabalhadores industriais, enquanto CapitalSocial se limitou ao conjunto da obra. Como verão em seguida, sob o título “Sem 56 fábricas da Ford, não será a logística nossa salvação”, a análise praticamente é repetida agora. Leiam os trechos principais do texto de novembro do ano passado:
Aviso aos navegantes de águas supostamente redentoras da economia do Grande ABC, entusiasmados que se manifestam com o anúncio de um extraordinário empreendimento na área de logística, ocupada durante mais de meio século pela desertora Ford do Brasil: os empregos prometidos, 4.800 no total, não passam de lufadinha de vento maroto. Perdemos 56 fábricas da Ford em emprego nos últimos 34 anos. Não que a lufadinha de vento seja desprezível. Nada disso. É que é insuficiente, específica, menos nobre e contém o vírus de suposta solução fácil para os imensos, intrincados e desafiadores problemas econômicos locais. O que quero dizer é que, até prova em contrário, (e tratarei disso em análise específica), o que poderia sugerir uma nova vocação econômica do Grande ABC, não passaria de exceção que combina arrojo de investimento e oportunidade ocupacional imensa. Qual seria essa nova vocação? A área de logística, claro. Não temos na maioria do território regional elementos materiais e técnicos que nos conduzam à empreitada sistêmica de contar com o reforço do setor de logística que, mais que a menor distância entre dois pontos, se tornou, ao longo de transformações estratégicas dos empreendimentos privados, a melhor equação de custo-benefício entre vários pontos a partir de um determinado ponto.
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O setor industrial do Grande ABC, abatidíssimo por série de pragas, perdeu desde 1987 nada menos que o equivalente a 56 fábricas da mesma Ford. Foram 158.306 baixas de empregos formais industriais na região no período de 416 meses. A Ford contava no estertor da sobrevivência com 2,8 mil trabalhadores (e algo como mais 1.5 mil terceirizados que não entram nessa contabilidade). Sempre fico com o que resta de cabelo em pé quando sinto o cheiro da brilhantina de ufanismo fazedor de média ou meramente despreparado. Basta qualquer investimento no Grande ABC (e a maioria, para não dizer quase todo, se concentra no setor de comércio e de serviços pela força de tração de quase três milhões de habitantes) para que os incautos, os esperançosos, os românticos e tudo o mais apareçam no radar de repercussão de mídias sociais (e na imprensa convencional) para alardear a redenção.
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(...) Quando afirmo que o equivalente a 56 fábricas da Ford que se foi no ano passado mudou de rumo na economia do Grande ABC, o que quero dizer é que todas se escafederam ao longo de arredondados 34 anos – uma distância que começa a ser medida em janeiro de 1987 e termina em dezembro do ano passado, 2019. Nessa longa maratona de desajustes, ficamos pelo caminho. A desindustrialização em forma de empregos e de Valor Adicionado agigantou-se acima de qualquer média relativa no Brasil. Ou seja: somos um território marcado para emagrecer continuamente no setor que mais gera riquezas em forma de salários e de agregado de valor. O que quero dizer com isso é que de vez em quando aparece em forma de manchete e manchetíssima de jornal de papel e de jornal digital alguma coisa. (...). Na média histórica, desde janeiro de 1987, perdemos o equivalente a uma fábrica de 388 trabalhadores a cada 30 dias. Se alguém acha que isso deva ser considerado supérfluo, que se apresente sem a proteção de máscara de alguma instituição que, num País de símbolos falidos como o Brasil, emprestam credibilidade a fanfarrões e meliantes sociais.
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