A manchetíssima de hoje não é exatamente o que você está pensando, mas também pode ser o que você está pensando. O que você está pensando é que prefeitos nunca morrem, até porque deixam legados e pecados a conferir permanentemente. O que estou pensando é outra coisa também: eles que já morreram, mas seguem vivos e outros que estão vivos, mais vivos do que os vivos comuns, não podem ser descartados. E não serão. Estava a ponto de jogá-los no lixo, mas recuei. Vou explicar.
Pouco depois de cair três semanas de cama, em novembro do ano passado, acometido de Covid, uma Covid que só descobri ser portador depois de 10 dias de tormentas, pouco depois, portanto, decidi com minha secretária que daria fim ao arquivo de páginas de jornais que mantenho há 25 anos.
Lancei-me à empreitada porque descobri que muita coisa guardada já não tinha valor algum. Poderia, no máximo, com o uso daquele material, escrever uma meia-dúzia de livros semelhantes ao que lancei em 2004: “Meias-Verdades”. Aquela obra trata de tropeços da mídia imprensa, dos grandes jornais paulistas e do Diário do Grande ABC. Se a situação já era ruim no começo do século, imaginem depois.
Atropelos e reflexões
Entendi em dezembro do ano passado que estava na hora de mudar o roteiro. Talvez por conta da letargia que sucedeu à Covid, estava decidido a zerar o estoque de arquivo. E iniciei o processo. Divididas em ordem alfabético-temática, me livrei de dezenas de pastas. Aproveitei a mudança de endereço de escritório para fazer uma limpeza geral.
Aí aconteceu o que todos sabem, aquele tiro no rosto que me tirou de circulação e que ainda me mantém semi-recluso. Deu tempo suficiente para pensar e repensar. E agir. Numa das visitas ao meu escritório, aos trancos e barrancos, comecei a vasculhar pastas elegíveis ao desaparecimento. Ou seja, todas elas. Foi quando me deparei com o senso crítico que sempre haverá de brotar. Será que deveria mesmo jogar no lixo absolutamente tudo? Sobretudo enfiar nos sacos plásticos inclusive temáticas da região, tão caras a este site?
Cheguei à conclusão que deveria ser menos radical. Que há material regional (o arquivo é tematicamente globalizado) suficientemente rico em informações que garantiriam estudo mais minucioso. Daí a decisão de suspender a radicalidade e ser mais criterioso.
Pastas relevantes
Não se pode abrir mão de determinados períodos das atividades públicas e econômicas da região. Peguei como experimento à reavaliação do caso de eliminar totalmente ou não as pastas da administração (2009-2012) do prefeito Aidan Ravin, morto agora no início do ano, vítima de Covid.
Não precisei mais que de algumas páginas de jornais para abandonar de vez a ideia do descarte. Aidan Ravin é um prato cheio a quem pretende entender a Santo André de hoje, embora tenha lhe sobrado muita tranqueira do passado.
Fiz a mesma experiência com as pastas de Luiz Tortorello, em São Caetano, e alguma coisa que sobrara de Newton Brandão, em Santo André. Tantos outros prefeitos que passaram e estão atuando na região também constam das pastas.
Não abrirei mão de nenhum deles. Todos são peças de uma carpintaria de previsibilidades inoperantes em larga escala. Raramente se encontram lances inovadores que coloque um ou outro em distinção regional. Uma repetição que se soma a escândalos que recrudescem a cada temporada. Escândalos para valer ou escândalos fabricados, como se viu agora recentemente no caso da Fundação do ABC e supostos fura-filas.
Decepção do século
O caso mais emblematicamente surpreendente, e decepcionante, entre os prefeitos eleitos no Grande ABC neste século é o do médico Aidan Ravin. Da glória improvável, embora fabricada por terceiros que tomaram o seu governo, à desgraça de morrer por um vírus maldito e com pendências judiciais seríssimas, Aidan Ravin foi a mais frustrante das vitórias de Executivos da região. E particularmente de Santo André.
Aidan Ravin terminou a carreira derrotado na campanha a vereador, ano passado. O mesmo cargo que o catapultou ao sucesso. Obteve em 2004 quase 10 mil votos tendo a Vila Luzita como berçário político.
Todos já sabem como se deu a reviravolta em Santo André, em 2008. Um resultado que desafiou a todos os institutos de pesquisa. O petista Vanderlei Siraque terminou o primeiro turno na boca da comemoração, com 49%. Aidan Ravin chegou a 21%. Sempre em números redondos.
Zebra de branco
No segundo turno deu Aidan Ravin, a quem chamei de “zebra de branco”, em referência ao indefectível uniforme de médico. Carismático, obeso, era uma extraordinária fábrica de votos a cada metro linear que percorria nas ruas de Santo André. Tudo isso o ajudou a vencer a disputa. Mas a negligência e o já-ganhou da turma de Vanderlei Siraque contribuíram bastante. Aidan Ravin foi prefeito de um único mandato e muitos escândalos.
Vou ao arquivo digital de CapitalSocial e verifico que a incidência de Aidan Ravin como protagonista ou como coadjuvante circunstancial chega a 496 textos. Não é pouca coisa. Luiz Tortorello aparece 259 vezes. Newton Brandão, 121 vezes. Dos prefeitos atuais, Orlando Morando está em 494 textos. Paulinho Serra em 484.
Quer saber quantas vezes em textos distintos aparece Celso Daniel? Vamos lá: 1.530. E deverá aumentar o cacife, porque ainda não terminou a atualização dos tempos de revista LivreMercado. E tampouco do Caso Celso Daniel, com o documentário que está chegando.
Como se observa, não é porque os tenho em grandes quantidades nesta revista digital que os minimizo nos jornais impressos. Uma coisa nem sempre tem a ver com a outra. Os jornais impressos, sobretudo o Diário do Grande ABC que prevalece nos meus arquivos, tratam do pontual, do circunstancial. CapitalSocial vai no estrutural, no analítico. São fontes complementares. Ficam para a história do jornalismo regional em modelos diferenciados.
Herdeiro improvável
O que temos na praça quando concentramos o facho nos três nomes que constam da manchetíssima de hoje, aí em cima, é que apenas Luiz Tortorello deixou o alguma coisa que poderia ser chamada de sucessão político-eleitoral.
Thiago Tortorello, que dizem ser de profissão cientista político, algo que desconheço na prática, agora arrumou um jeito de dar um drible na vaca do candidato Fabio Palacio e se meteu como secretário municipal de Tite Campanella, o prefeito-tampão que quer ser prefeito-prefeito como o pai no passado.
O problema de Thiago Tortorello, sobrinho de Luiz Tortorello, é que é ruim de voto. Concorreu em São Caetano nas últimas eleições e mal somou eleitores que o garantiriam na Câmara de Vereadores. Um estoque suficiente, entretanto, somado pelo nome familiar, para negociar espaço na atual administração. A família Tortorello ainda tem votos em São Caetano. Mas nem sombra do sempre catalizador Luiz Tortorello.
O que gostaria mesmo de saber, já que passa o ocupar a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, é o que Thiago Tortorello pretende em São Caetano. Algumas propostas já formulei aqui e nenhum prefeito levou adiante. São Caetano está encalacrada logisticamente (mais que Santo André) e não se abre perspectiva a quase nada. Exceto, quem sabe, a um nicho mais amplo na área de saúde dedicada à terceira idade. A mesma terceira idade que incidiu em recordes de mortes por Coronavírus.
Nova linha do tempo
Newton Brandão deixou uma legião de correligionários órfãos e nenhum aparentado que assumisse a memória eleitoral. Tem ao que parece um sobrinho ou algo assim, Edgard Brandão, que jamais se submeteu ao voto popular. Prefere mesmo os bastidores de quem está no poder. Seja vermelho, cor de rosa ou azul. O discurso muda de acordo com a cromática partidária à qual se aproxima.
Já Aidan Ravin parece que em vida não conseguiu convencer a própria mulher a entrar na política, embora não faltem avaliações de eleitores e algumas autoridades políticas que a coloquem como possibilidades de, aproveitando a afetividade saudosista, dar uma passada pela via eleitoral. O irmão Silvio Ravin, que dizem se assanhar para concorrer a alguma coisa, é dessas figuras que colocam qualquer aliado de cabelo em pé porque está a léguas de distância do magnetismo do ex-prefeito.
Entenderam, portanto, algumas das razões que me fizeram abandonar a proposta de acabar com o arquivo de papel? Ou preciso ser mais claro? Por exemplo: é possível rastrear em muitas páginas, quando se tem a linha do tempo como parceira, o quanto de impropriedades se construíram aparentemente do nada, mas todas, absolutamente todas, conectadas a projetos políticos que naufragaram. E que também venceram nas urnas.
Quando vejo entre os vivos atuais um Paulinho Serra e um Tite Campanella vivíssimos e se abraçando nas páginas de jornais de papel e digitais, quando os vejo no mesmo dia em que denuncio fura-filas nas duas cidades, e quanto associo a foto aos desejos de Paulinho Serra fugir da possibilidade de tornar-se ex-prefeito sem mandato algum, e um Tite Campanella em plena campanha eleitoral, quando vejo isso, é preciso esperar por novas linhas do tempo que estarão tanto na prova física do papel quando na prova digital da Internet.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)