Economia

Dormimos na cama de suposta
vocação industrial. Nada pior

DANIEL LIMA - 29/06/2021

Li outro dia uma Entrevista Desejada do mercadista imobiliário Milton Bigucci no Diário do Grande ABC. Entre muitas preciosidades em resposta às bolas levantadas para marcar gols de placa, que terminaram invariavelmente em chutes de perna de pau argumentativo, chamou-me a atenção uma questão conceitual que parece, apenas parece, porque tosca, inteiramente sustentável.  


Milton Bigucci sugeriu e o jornal deu destaque a uma espécie de sentença tranquilizadora, a de que o Grande ABC tem vocação industrial,
reproduzo na sequência tanto a pergunta quanto a resposta: 


Diário do Grande ABC -- Como o senhor enxerga o Grande ABC economicamente hoje? Afinal, a região sofre com a desindustrialização e o fechamento de empresas, como a Ford. Em contrapartida, há aumento no número de comércios e serviços. O senhor acredita que essa é, de fato, a nova vocação?


Milton Bigucci -- Não. Acho que deveria haver incentivos para que as indústrias se instalassem nos municípios. Essa moda, que são os setores comercial e de serviços, não é vocação. Acho que não podemos perder a vocação industrial. Os setores devem sim existir, um depende do outro, mas a vocação da nossa região é industrial. Devemos incentivar a permanência das indústrias e o aumento dos empregos.


Vocação e legado


Milton Bigucci precisa entender que vocação é uma coisa, legado é outra coisa. O que temos é um legado que não estamos sabendo administrar. Nós, no caso, são as instituições públicas, principalmente, e privadas, acessoriamente. Além da sociedade desorganizada, claro.


Também precisa entender o mercadista imobiliário que não são incentivos fiscais que vão resolver o enxugamento permanente da indústria do Grande ABC. Muitos municípios ainda se utilizam de políticas incentivadoras e não encontram maiores barreiras porque praticamente não geram conflitos internos. Tenta-se aqui há mais de duas décadas e os resultados são pífios.


Incentivos fiscais para quem pretenderia chegar ao Grande ABC criaria privilégios em relação às empresas já instaladas. Redução generalizada que contemplasse as duas partes brigaria com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Milton Bigucci não sabe dessas coisas porque as coisas que ele sabe não são visíveis a mercadistas imobiliários.


A realidade nua e crua é que o Grande ABC recebeu de mão beijada um presente de terceiros e não soube cuidar. Sempre faltaram políticas públicas convergentes que traçassem uma linha de horizonte de sustentabilidade do modelo econômico aliado a uma repartição de renda mais ajustada aos pressupostos de qualidade de vida.


Ladeira de igualdade


Criamos e cultivamos durante longo tempo castas de famílias ricas, de uma forte classe média e, na esteira de descuidos, de uma horda de deserdados que só aumenta. Aliás, aumenta em proporção semelhante ao arrefecimento de ricos e da classe média. Temos o pior dos mundos, ou seja, o mundo da igualdade social tão defendida pelos extremistas de esquerda, mas à custa de desequilíbrios incontroláveis.


Somos cada vez menos proeminentemente ocupados por famílias de extratos sociais elevados e, em contrapartida, mais densamente representados pelo proletariado, por pobres e miseráveis. O figurino brasileiro ganhou uma imensa filial no Grande ABC. Antes, éramos um ponto fora da curva. Vamos caminhando para um estreitamento social deplorável de ricos, classe média, proletariados e miseráveis.


A literatura econômica conta com centenas de exemplos mundo afora de supostas vocações industriais. São localidades que teriam nascido para dar de braçadas na produção de produtos e serviços de valor agregado. Salvo exceções que só confirmariam as regras, nada disso é sustentável. Qualquer território é potencialmente industrial quando se tem tecnologias à mão. Braços e mentes se treinam para produzir em qualquer canto.


Confeitaria de divindades


Milton Bigucci entende muito, mas muito mesmo, de mercadismo imobiliário, porque mercadismo imobiliário é uma arte que dispensa considerações. Entretanto, de anatomia econômica que fuja de tijolos e argamassas, além de burocracias públicas sempre desvendáveis, é tão especialista quanto este jornalista em astronomia.


O que tanto o mercadista imobiliário quanto os demais agentes públicos e privados da região precisam entender é que o bolo da industrialização não é efeito direto de uma confeitaria de divindades que decidiram premiar determinado território com supostas condições naturais.


Não existe nada na natureza no sentido puro do termo que dê guarida à condição de vocação à industrialização manufatureira. E tampouco que assegure industrialização permanente. Estamos num desgastado estágio de legado que poderá virar pó ante demandas sociais.


Da agricultura à manufatura


Quem dissesse no começo do século passado que o Grande ABC então prevalecente em agricultura se tornaria gigantesco polo industrial manufatureiro, atrás apenas da Capital, provavelmente seria considerado ruim da cabeça e doente dos pés.


Por motivos mais que conhecidos, de cunho exógeno, ou seja, completamente fora de qualquer ação individual ou coletiva regional, fomos beneficiados pelo plano desenvolvimentista do governo federal: ganhamos de presente um passaporte ao futuro – embora com prazo de validade, ou de revalidação.


Mais de meio século depois, como resultado de uma política industrial imposta pelo Estado por conta da localização estratégica destas terras, encontramo-nos numa encruzilhada. Ganhamos um bilhete premiado, mas cuidamos mal e porcamente do potencial de enriquecimento coletivo.  O pior capitalismo possível, de imbricamento com o Estado em acordos de proteção interna e externa, esgotou-se.


A desindustrialização implacável, porque negligenciada, arrefece a cada temporada o poderio industrial outrora inquestionável. Caímos pela tabela no ranking industrial do Estado de São Paulo há pelo menos quatro décadas. E vem um triunfalista, como tantos, imprimir uma marca voluntarista, interesseira, de que cultivamos vocação industrial.


Exemplos no futebol


Como se a expressão “vocação industrial” fosse uma fortaleza de elementos macroeconômicos e microeconômicos que jamais sofreria abalos. E que o futuro que chega a cada dia não deveria ser avaliado com inquietação.  
Vocação e legado são, portanto, verbetes inconciliáveis no caso da economia do Grande ABC.


Transpostos os dois conceitos para o mundo do futebol, por exemplo, uma maneira de tentar ser didático, vejam o exemplo do Santos. O time da Vila Belmiro que me deu tanto desgosto quando jovem, é historicamente vocacionado a jogar no ataque, a produzir atacantes extraordinários. A cultura santista é de atacar o quanto puder. Um treinador retranqueiro não tem vida longa. O ambiente santista é de criação.


Capital versus trabalho


O Grande ABC não tem na economia a vocação futebolista da Baixada Santista. Aqui o ambiente econômico-industrial foi marcado por anos de chumbo de embates entre capital e trabalho – como em diferentes pontos do mundo produtivo. Na Baixada Santista, especialmente nos arredores da Vila Belmiro, ninguém ousaria negligenciar a ofensividade dentro de campo.


Por outro lado, somente agora, depois de anos tenebrosos de antagonismo à beleza do futebol, a hermética Seleção da Itália move-se com brilho nas imediações do campo adversário não como resultado de contragolpes planejados, mas de insistentes construções ofensivas.  
A industrialização do Grande ABC a partir de metade do século passado não teve o respaldo da sociedade como um bem a ser preservado e, mais que isso, aperfeiçoado. Diferentemente disso: tratou-se de frequente e doloroso manancial de embates entre empreendedores e sindicalistas, como é da ordem geral do capitalismo democrático.


Doenças holandesas


Ainda não somos uma bola perdida industrialmente porque o setor automotivo e o setor químico-petroquímico, nossas Doenças Holandesas, seguram o repuxo. Mas estamos longe do que fomos e também e do que seremos quando metade deste novo século se completar.


Não fizemos de um acidente geográfico a lição de casa da cultura industrial como matéria-prima de equilíbrio socioeconômico. Sem transformar o incidental em cultural, em vocacional -- porque também vocação é consequência de circunstâncias que abrem caminhos antes insondáveis -- sobra-nos um legado desprezado porque carente de avaliação, planejamento, monitoramento e operações de suporte.


O que existe no Grande ABC é a pior associação possível quando meto a mão na criatividade e correlaciono o destino aos exemplos do futebol. O Grande ABC econômico é notadamente uma retranca à italiana e uma cínica inventividade à santista.


A retranca italiana entra na contabilidade regional por causa da inobservância de mudanças que exigiam atualização da metodologia aplicada.


Já a inventividade regional reversa à santista (e, portanto, nociva) decorre da fartura de intervenções ao longo de décadas com o propósito exclusivo de negar o inegável – ou seja, de que estávamos caindo pelas tabelas. Somos insuperáveis em tapar o sol do empobrecimento majoritário com a peneira de bem-aventurados minoritários.


Mistura ruim


Tradução: temos a legitimidade dantesca do que existiu de mais monótono ao espetáculo do futebol que os italianos transformaram em pragmatismo (lembrem-se do crime de 1982, quando a Seleção Brasileira mais talentosa desde 1970 caiu no Estádio Sarriá) e o desprezo às redes como primeiro mandamento da arte de seduzir os torcedores. Somos uma sociedade dedicada à letargia e à preguiça de cultivar um legado lotérico.


O que o mercadista imobiliário entrevistado pelo Diário do Grande ABC expôs aos leitores não passou, portanto, de nova camada de proselitismo sem comprometimento com a sociedade. Tanto é verdade que nem mesmo no setor que representa há mais de três décadas é possível encontrar um exemplo sequer de desprendimento à própria categoria, quanto mais à sociedade em geral.


 



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