A maioria dos leitores acredita que entende de jornalismo, especificamente de jornalismo impresso diário. Está enganada tanto quanto quem supõe, sendo leigo, conhecer os caminhos da genealogia. Jornalismo impresso diário é para quem é do ramo e se dedica ao ramo, não a quem, mesmo do ramo, é de uma ramificação frouxa.
Por essas e outras a industrialização de fake news tomou conta do mercado da informação. E pouca gente se dá conta disso. Minha experiência como ombudsman autorizado e não autorizado me doutrinou a desvendar o que é informação confiável e informação deformada.
Não leio jornais (e revistas) com um olhar qualquer. É um trabalho intenso, desgastante. É claro que exercito essa tarefa quando o alarme da desconfiança adverte. Ler como ombudsman tudo que leio seria cansativo demais.
Tanto estou preocupado com o que consumo (sou provavelmente um dos leitores mais longevos e intenso do jornalismo impresso diário, com quatro veículos lançados diariamente na garagem) que alimento meu cérebro e minha alma com extremo cuidado. Prevenção contra as modalidades mais comuns e menos detectáveis do que resumidamente chamaria de fake news não faz mal algum. Distante disso.
Generalizando fake news
Outras expressões na língua estrangeira e na língua pátria poderiam ser acrescentadas para tipificar desvios da imprensa impressa diária. Vou ficar com fake news abrangente, como conceito de inverdade, manipulação, protecionismo, perseguição, essas coisas.
A modalidade que mais se espalha nestes tempos (e no Grande ABC é acintosa porque despreza a inteligência alheia) poderia ser chamada de “esconde o contraponto e expõe o supostamente verdadeiro”. Está certo o leitor que considera a essência do entre aspas muito extenso, algo que poderia merecer simplificadamente crachá de fajutice jornalística. Por isso mesmo, repito, é melhor chamar generalizadamente de fake news.
Vou mostrar já-já aos leitores o que é essa prática de explicitação de uma suposta verdade e o descartar dissimulado da verdade supostamente sobrevivente.
Explícita-esconde
Antes, quero lembrar que há quase 20 anos escrevi o livro “Meias-Verdades”, que tratou de erros crassos do jornalismo diário. Foram algumas dezenas de cases que mereceram, cada um, o esmerilhamento crítico de quem já estava na profissão havia muito tempo. Hoje, mais maduro, diria que uma segunda edição comportaria temáticas até então inexistentes ou menos frequentes que não mereceram abordagem.
No caso deste artigo, prometi que não me desviaria um centímetro da modalidade em questão. O explícita-esconde que coloca a verdade na berlinda apenas para quem é do ramo, porque quem é do ramo tem obrigação de saber mais, é uma pandemia na região.
Afinal de contas, como é o explicita-esconde dessas fake news? Simples: dá-se destaque gigantesco a determinada pauta (geralmente alçada à manchetíssima, que é a manchete principal de primeira página), cujo enunciado é agudamente impactante ao alvo escolhido e, quando se vai ao miolo da publicação, a história é outra, muito ou alguma coisa diferente.
É claro que o enunciado de primeira página se repete na página interna, porque é preciso reforçar a responsabilidade do alvo da vez.
Peste impressa
No caso do Grande ABC, o alvo da vez nestes tempos tenebrosos de dinheiro curto e economia em fragalhos é o prefeito Orlando Morando. O mesmo Orlando Morando que não conta com habilidade para oferecer o contraponto mais consistentes às denúncias – sim, denúncias, porque é disso que se trata geralmente. O ex-prefeito Luiz Marinho também foi vítima de modalidade semelhante, embora com cromossomos diferentes.
Voltando ao que interessa, o enunciado diz uma coisa com tessitura informativa aparentemente consistente. A produção do texto em larga escala fundamenta o que seria a verdade dos fatos, sempre numa ótica de unilateralidade informativa, até que, nos trechos finais da matéria, reduzidos à formalidade de uma resposta oficial protocolar, configura-se o que se resolveu chamar de democracia informativa.
Mais que uma pandemia, trata-se de uma peste do jornalismo impresso diário a maquiagem com cara de suposta realidade dos fatos sobrepondo-se à essência de um contraponto no mínimo a ser igualmente levado em conta.
Santos e demônios
O jornalismo impresso brasileiro (e a configuração dessa tragédia é tão internacional quanto a polarização político-ideológica) mergulhou no túnel do tempo e resgatou o que existiu de mais deletério num período em que o gangsterismo da mídia fora naturalizado como característica intrínseca ao chamado quarto poder.
O que mais dói mesmo para quem entende do riscado do jornalismo impresso diário é o avocar à santificação e a terceirização de demonização das redes sociais.
O incômodo (além dos danos financeiros) do impacto das redes sociais é flagrante no jornalismo impresso diário. Lança-se mão de campanhas publicitárias desclassificatórias.
O que os donos do jornalismo impresso diário não entenderam ainda é que seus produtos caminham na mesma direção de baixa credibilidade das redes sociais porque a sociedade armada de tecnologias começa a entender o jogo do poder do qual a mídia é tão participante quanto refém; quando não, capataz.
Redes sociais
Há muitas flores que não se cheiram nas redes sociais. Gentes desclassificadas, assacadoras de inverdades contínuas. Entretanto, dadas as características que separam as redes sociais do jornalismo impresso diário, e que podem ser resumidas na tradição da segunda como fonte de competência e sustentação de mentiras ou meias-verdades, não há dúvida de que os males proporcionados por quem está há mais tempo no mundo da informação é infinitamente maior.
Volto ao tempo para deixar um recado aos eventuais detratores que podem ver nestas linhas algo menos nobre no combate ao jornalismo diário, como se estivesse este profissional saudoso dos tempos, dos muitos tempos, de redação. Passei mais da metade de minha vida em redações, doutrinado a seguir o cronograma de produção e fechamento editorial. O recado é que o passado me garante idoneidade interpretativa do que é a mídia em geral, e o jornalismo impresso diário em particular.
Passado testemunhal
Na edição de fevereiro de 1997 (portanto há mais de 24 anos) na coluna “Campo Aberto”, da revista LivreMercado, escrevi um artigo sob o título “O que a imprensa poderia fazer para ajudar de fato a melhorar o País”. Reproduzo alguns trechos.
A imprensa tem muita responsabilidade nos destinos do País. Se o Brasil é o que é, um Terceiro Mundo com a mais grave das endemias, a disparidade de distribuição de rendas, parcela da conta deve ser debitada aos donos dos órgãos de comunicação, sobretudo aos mais influentes, e a boa parte de seus profissionais. Ao longo de décadas forjaram-se mitos que não valem pitadas de fumo. Escolheram-se heróis que não resistem à exumação moral e ética. Lustraram-se caudilhos demagogos e oportunistas. Endeusaram-se supostos líderes que não passam de embustes. Tudo porque a Imprensa sofre da doença crônica do raquitismo analítico e do imediatismo informativo. Um imediatismo cuja profundidade do noticiário geralmente não ultrapassa a superficialidade do descarte. Exceto em situações especiais, caso do impeachment do presidente Collor de Mello, originário não de uma investigação da mídia mas da denúncia do irmão Pedro, a Imprensa dificilmente associa-se para alterar o rumo dos acontecimentos. É mais fácil praticar o jogo de interesses específicos, de perseguições tolas, de marketing escancarado, de composições estranhas, de incursões empresariais extramidia.
Mais artigo de 1997
Exatamente porque não prioriza pontos essenciais, ao optar pela pulverização de pequenos esforços, a Imprensa perde a potencialidade de transformações que lhe é inerente. O instituto da correção monetária, que, desvirtuado, resistiu três décadas com perversas consequências, talvez seja o exemplo mais flagrante do descaso da Imprensa às questões realmente relevantes. Ao dividir o País, durante todo aquele período, na banda saudável dos protegidos e na banda podre dos não protegidos da inflação, a correção monetária cavou o fosso social que há pouco mais de 30 meses o Plano Real conseguiu estancar.
Mais artigo de 1997
(...) No âmbito regional, o Grande ABC é, infelizmente, reprodução fiel dos equívocos e omissões administrativas das esferas federal e estadual, salvo honrosas exceções de gestores mais suscetíveis ao compromisso de bem-servir. É verdade que nos últimos tempos acentuou-se por parte da mídia mais influente junto aos formadores de opinião, entre a qual se coloca esta publicação, uma ação mais coordenada de cobrança de programas e ações público, empresariais e comunitários. Mas isso é apenas o começo de uma revolução à qual cada profissional de comunicação deve encarar como doutrina, não como simples circunstâncias enquanto não se lhe oferece um novo contrato de trabalho que lustrará seu currículo, como se o melhor currículo não fosse a efetiva participação nas mudanças socioeconômicas de um Município, de uma região, de um País.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)