Imprensa

Caso Celso Daniel é a Escola
Base de muitos jornalistas

DANIEL LIMA - 25/11/2022

Não queria estar na pele e principalmente na alma do repórter Valmir Salaro, protagonista de um dos maiores erros da Imprensa nacional. O documentário que a Globoplay oferece aos assinantes sobre a escola infantil cujos donos e funcionários foram acusados de pedofilia me remeteu ao Caso Celso Daniel, do qual participei ativamente.  

Valmir Salaro não teve o desconfiômetro que tive. Por isso está agora e desde muito tempo empanturrado de culpa e remorso. 

Enquanto ele faz mea-culpa como narrador do documentário, agradeço aos céus por ter remado contra a maré de linchamento de Sérgio Gomes da Silva. 

Como se sabe, Sérgio Gomes da Silva ganhou a marca estigmatizadora de “Sombra” no caudal de acusações impiedosas e imprecisas, quando não abusivas, de membros do Mistério Público Estadual. 

Sérgio Gomes da Silva passou de vítima a autor intelectual do sequestro seguido de morte do então prefeito de Santo André.  

DANOS CONSUMADOS  

Todo mundo mais ou menos bem informado sabe a história da Escola Base. Mas não custa refrescar a memória. Vou reproduzir mais abaixo o que está disponível na Internet.  

Isto posto, voltemos ao drama do jornalista Valmir Salaro, a quem conheci numa breve passagem que ele teve no Diário do Grande ABC. 

Não há como minimizar os estragos que Valmir Salaro (e muitos outros veículos de imprensa que o seguiram na sanha de espetacularização de um crime que jamais existiu) causou às vítimas.  

Por mais que viva, Salaro jamais vai deixar de se sentir culpado. E é mesmo, goste-se ou não.  

CRIMES ANÁLOGOS  

Mas, mesmo com todas as nuances humanas que o drama pessoal o impacta, não deveria se sentir inconsolável. Crimes análogos são cometidos desde sempre pela Imprensa. Deliberadamente ou por conta de circunstâncias especiais, como o da Escola Base. 

O Caso Celso Daniel foi uma dessas narrativas escabrosas a partir da politização e da partidarização do sequestro ocasional.  

Já escrevi mais de 200 textos sobre isso. Não vou rememorar as razões que me levaram a sair da função de transmissor de informação para um patamar acima, de contestador de narrativas divorciadas da realidade.  

Para arrematar o Caso Celso Daniel, sugiro aos leitores que ainda não o fizeram, que o façam: assistam ao documentário também da Globoplay, lançado em abril deste ano.  

TRABALHO SÉRIO  

Está ali um trabalho extraordinário em que todas as partes foram ouvidas. As sete supostas mortes paralelas ao assassinato, cultivadas pelo MP instalado em Santo André, foram desmentidas pelos próprios promotores públicos que as estimularam no jogo de fantasias que teve uma jornalista da Folha de S. Paulo disseminadora de equívocos e manipulações.  

Mas, voltemos a Valmir Salaro. Se aquiete um pouco, porque desde muito tempo o jornalismo não é uma atividade infalível. Principalmente quando acredita piamente em determinadas fontes de informação. 

O delegado de Polícia do caso da Escola Base apropriou-se de estrelismo insano e arrogante. Até parece alguém que nestes dias deita e rola no cenário político-judicial brasileiro. Mais que isso: não só deita e rola como é aplaudido por fanáticos da mídia e de facções ideológicas.  

ABUSOS E ABUSOS  

Devo estar vivo num futuro não muito distante para saber até que ponto não teria caído a ficha de radicalismos editorais dominados por interesses inconfessos que, por exemplo, transformam manifestações cívicas como as vistas no Sete de Setembro em atos antidemocráticos.  

Ninguém com quem mantenho relações diretas e indiretas tem qualquer característica de frequentar ambientes de risco a terceiros.   

Poderia ir mais longe e enveredar por caminhos semelhantes como os que negam, por exemplo, que o processo eleitoral desta temporada está recheadíssimo de aberrações jurídicas, a começar pela confirmação de um candidato de extensa ficha corrida comprovada e jamais inocentada.  A lista de impropriedade é tão vasta que dispensa detalhes.  

LULA EXEMPLAR  

Mesmo para quem, como eu,  já votou em Lula da Silva o personagem em questão,  repetir o que disse William Bonner naquela abertura deplorável de entrevista seria um atestado de servilismo imperdoável.  

Temos uma Escola Base a cada dia no jornalismo brasileiro. Não se fazem vítimas humanas diretas, como no caso da Escola Base de verdade, mas se constroem narrativas sob aplausos da plateia doutrinada a enxergar apenas uma parte do todo, qualquer que seja essa parte, qualquer que seja o todo.  

Não duvido que um ou outro leitor tenha se contraposto às peculiaridades da carreira do ex-presidente apontadas aqui, tornando-o candidato à santificação.  

O drama de Valmir Salaro é o preço da ambição profissional de um então jovem em busca da fama. Nada diferente de tantos outros jornalistas iniciantes. Ninguém estaria, na imprensa, imune a deslumbramentos. 

Valmir Salaro só não deu a sorte que muitos têm. Estava na hora e no lugar errados como repórter da principal emissora de TV do País.  Se ainda hoje a Globo estraçalha reputações, imagem naqueles dias sem os diabólicos aparelhinhos portáveis.  

Não misturo as bolas quando remeto a Escola Base ao Caso Celso Daniel. E tampouco a estes dias tenebrosos em que um imperador judicial é aplaudido por fanáticos ou interesseiros. Trata-se do mesmo problema, ou seja, da dificuldade de conciliar jornalismo e realidade sem cair no abismo da resposta fácil a situações complexas.  

O amadurecimento profissional do repórter Valmir Salaro o levou a prestar contas públicas dos erros cometidos no caso da Escola Base.  

Não ousaria dizer que se trataria de gesto calculado que pretenderia incrementar a própria carreira crepuscular.  

EXPERIÊNCIA CONTA  

O arrependimento parece sincero, embora Valmir Salaro não seja exatamente uma reprodução pessoal de emotividade. Cada um com sua personalidade. Nem sempre o que parece é de fato.  

De novo num confronto entre os dois casos e o trabalho que realizei,  talvez tenha obtido a vantagem de não mergulhar no pântano de precipitações e incongruências porque já somava mais experiência que Valmir Salaro e, sobretudo, por ter exercido numa Redação muitas outras tarefas além de reportagem, primeiro estágio da profissão.  A linha operacional de Redação da TV Globo falhou totalmente, o que reduz a carga de responsabilidade corporativa de Valmir Salaro. 

Costumo dizer aos mais chegados que é fácil levar no bico a pessoa física que carrego, o tal Daniel José de Lima, mas a pessoa jurídica, este Daniel Lima, é mais complicado. Da ingenuidade ao ceticismo é um piscar de olhos. Ou de função social.  

CASO CELSO DANIEL  

Embora haja conversão propagandística que aponta a Escola Base como o maior equívoco da Imprensa nacional ao longo dos tempos, o Caso Celso Daniel é insuperável nesse ranking entre outros motivos porque é múltiplo. É um enredo gelatinoso e labiríntico.   

Dramas humanos não faltaram, derrapadas da mídia proliferaram, abusos de autoridade se amontoaram, idiossincrasias políticas abundaram, oportunismos narrativos agigantaram-se. Muita gente tirou uma lasquinha da desgraça que abateu o prefeito Celso Daniel e seu fiel escudeiro, Sérgio Gomes da Silva.  

Celso Daniel foi assassinado principalmente porque (e isso consta de desabafo do então secretário de Segurança Pública de São Paulo) o compromisso ético de a imprensa não divulgar casos de sequestro, múltiplos naqueles dias, foi desrespeitado pela TV Globo.  

Resultado? Os sequestradores se apavoraram com a batata-quente (eles descobriram que se tratava do prefeito de Santo André e não de uma vítima qualquer) e, precipitados, cometeram o assassinato.   

CUIDADO PROCESSUAL  

Tenho uma coleção completa do noticiário do Estadão, da Folha de S. Paulo e do Diário do Grande ABC sobre o caso Celso Daniel. Tudo em papel.  

O material contribuiu muito para o documentário da Globoplay. A equipe da Produtora Escarlate, que produziu a obra, vasculhou centenas de páginas.  

A cronologia dos fatos, só possível de compreensão mais acurada quando cuidadosamente submetida ao contato manual, é impiedosa com a Imprensa e determinados jornalistas que caíram no conto do Ministério Público.  

Foi exatamente por conta disso, ou seja, de observar atentamente o desenrolar das investigações que, a partir de determinado momento, tomei a decisão de ocupar um lugar solitário, incômodo, conflituoso, de que o crime urbano apurado por forças policiais foi mesmo crime urbano.  

OUVINDO TODOS  

Para tanto, diferentemente de Valmir Salaro no passado e de tantos jornalistas desde sempre, ouvi todos os lados. Inclusive os promotores criminais. Eles me atacaram duramente. O que poderia fazer este jornalista quando estava mais que escancarado que crime e corrupção não se cruzavam? Até porque, caso se cruzassem, seria a maior patacoada da histórica política da Nação.  

O Caso Celso Daniel e o Caso Escola Base deveriam caminhar juntos em qualquer tipo de análise que se analise a atuação da mídia. São situações que guardam entre si muitas semelhanças.  

Uma pena, entretanto, que a mídia insista em repetir diariamente situações análogas que custam vidas e biografias. Tanto em forma de assassinatos de reputação como de proteção a bandidos sociais.  

ENTENDA O CASO  

Escola Base foi uma escola particular localizada no bairro da Aclimação, em Brasil. Em março de 1994, seus proprietários (o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada), a professora Paula Milhim Alvarenga e o seu esposo e motorista Maurício Monteiro de Alvarenga foram injustamente acusados pela imprensa de abuso sexual contra alguns alunos de quatro anos da escola. Em consequência da revolta da opinião pública, a escola foi obrigada a encerrar atividades logo em seguida.  

O  chamado Caso Escola Base envolve o conjunto de acontecimentos ligados a essa acusação, como a cobertura parcial por parte da imprensa e a conduta precipitada e muito questionada por parte do delegado de polícia Edélcio Lemos, responsável pelo caso, que, supostamente, teria agido pressionado pela mídia. O caso foi arquivado pelo promotor Sérgio Peixoto Camargo por falta de provas. Até hoje é tema de estudos de faculdades e seminários de jornalismo,   , psicologia, psiquiatria e ciências sociais como exemplo de calúnia, difamação, injúria e danos morais.[2] 

Os acusados passaram a sofrer de doenças como estresse, fobia e cardiopatia, além de se isolarem da comunidade e perderem  empregos. Em 1995, Icusiro, Maria, Paula e Maurício moveram ação por danos morais contra a Fazenda Pública do Estado. Eles ganharam as duas primeiras instâncias. 

MORTE DO CASAL   

Em 2007, Maria Aparecida Shimada, diretora da escola, morreu de câncer. Em 2014, seu marido e um dos proprietários da escola, Icushiro Shimada, morreu de infarto, em sua casa em São Paulo. Ele já tinha sofrido um infarto do miocárdio em 1994. Eles ainda aguardavam o pagamento de algumas indenizações.  

Dois livros foram escritos narrando os acontecimentos e analisando os fatos. O primeiro foi lançado em 1995 com o título "Caso Escola Base: os abusos da imprensa", tendo ganho o Prêmio Jabuti em 1996.  O segundo, lançado em 2017, recebeu o título "Escola Base".  

MAIS LIVROS  

Um novo livro chamado O Filho da Injustiça escrito,  por Ricardo Shimada, filho de Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, será lançado em 2023 e irá abordar, além das investigações, detalhes da sua vida com os pais antes, durante e após todo o ocorrido.  

Em 2004, o documentário “Escola Base – Marco Histórico da Irresponsabilidade da Imprensa Brasileira” foi produzido por então estudantes de jornalismo Paulo Ranieri, Thiago Domenici e Gustavo Brigatto, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.[19] 

Em novembro de 2022, a GloboPlay lançou o documentário “Escola Base – Um Reporter Enfrenta o Passado”, conduzido pelo repórter Valmir Salaro, que fez a cobertura do caso na época. O documentário foi elogiado pelo mea-culpa que o repórter fez 27 anos após o acontecido.  

Uma série documental com produção do Canal Brasil foi anunciada com previsão de lançamento para o 2° semestre do mesmo ano.  



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