No caso da edição de hoje do Diário do Grande ABC, a resposta ao questionamento do título não poderia ser outra: a lata do lixo. O exemplar estava encharcado.
Há mais de 300 anos sou assinante do Diário do Grande ABC, assim como da Folha de S. Paulo e do Valor Econômico.
Recentemente, descartei o Estadão porque mudou de formato físico. Adotei a assinatura digital.
Há 300 anos o inferno se repete: se chover, e sempre chove de madrugada, perco o exemplar.
Essa reclamação posta num artigo de pessoa jurídica que sou quando escrevo pareceria um exagero se não houvesse entranhada uma questão que vem do passado.
VOLTANDO AO PASSADO
E acho que os leitores gostariam de saber. O transtorno não se prende exclusivamente à personalização de uma queixa; ou seja, a uma banalidade.
Vou contar uma história sem poupar nomes. Está consolidada na honestidade intelectual e factual.
Uma história ligada à extensão do exemplar encharcado do Diário do Grande ABC que descartei hoje de manhã sem ter tido a oportunidade de uma leitura básica. Como faço todos os dias quando o exemplar está sequinho da silva.
Rodava a roda da vida profissional no segundo semestre de 2004. Estava respaldado pelo primeiro e único Planejamento Editorial Estratégico que o Diário do Grande ABC já conheceu. Era uma reunião de diretores e acionistas do jornal, na Rua Catequese.
PROBLEMA ANTIGO
Estava diretor de Redação lastreado entre outros pontos por ter criado e produzido a melhor revista regional do País.
À mesa, se não me engano, o casal Ronan-Terezinha Pinto, novos acionistas do jornal, e Maury Dotto, um dos fundadores e remanescentes dos acionistas antigos.
Talvez houvesse mais alguém à mesa no sexto andar, espaço reservado a encontros especiais.
Estava este jornalista reconhecendo o terreno da Redação e da empresa como um todo, num processo de reforma editorial que duraria 11 meses e que se encerrou num workshop extraordinário de três horas, em abril do ano seguinte.
Dois dias depois do workshop estava este jornalista demitido. E quase todos os demais participantes não duraram muito também. O Diário acabara de enterrar o último plano de recuperação editorial.
DE PRIMEIRA LINHA
Foi a última vez que o Diário do Grande ABC contou com tantos jornalistas de primeira linha. A derrocada, comum aos veículos impressos nestes século de mudanças tecnológicas e econômicas, foi avassaladora.
Volto à reunião do segundo semestre de 2004. O leitor precisa entender aonde pretendo chegar com o exemplar encharcado de hoje que foi para a lata do lixo.
Durante aquele encontro, fiz uma observação de cunho exclusivo de consumidor privilegiado que tivera a oportunidade de estar com quem comandava a empresa dona do exemplar que ajudava a produzir e que recebia em casa.
Alertei sobre a insistência de meu exemplar ser lançado fora da proteção de uma garagem de veículo (a mesma de hoje) e ficar ao deus-dará caso a chuva chegasse, como sempre chegava de madrugada.
DESCONFORTO INCÕMODO
Jamais imaginei que a reclamação de consumidor também de colaborador preocupado com o destino do produto que a Redação produzia a cada dia, exaustivamente, fosse gerar tanto desconforto.
Fui admoestado pelo acionista Maury de Campos Dotto ante o silêncio do casal Ronan Maria Pinto.
O que o caríssimo leitor faria caso fosse um executivo contratado pelo Diário do Grande ABC para colocar aquela bagunça de Redação em ordem?
Havia algumas opções disponíveis no currículo profissional diante da reação intempestiva, grosseira e agressiva do acionista em questão.
TRÊS ALTERNATIVAS
Primeiro, ficar em silêncio e aceitar passivamente a reação típica de patrão.
Segundo, pedir desculpas e seguir a reunião como se nada houvesse de desagradável no ambiente, colocando-me como desastrado insubordinado corporativo.
Terceiro, reagir com dignidade e provar que estava ali, àquela mesa, como um profissional que deveria ser respeitado e, mais que isso, admirado, por estar preocupado com o destino transformador do produto final de quase duas centenas de colaboradores.
HORA DA VERDADE
Como aprendi na vida que há uma divisória definidora do caráter, e que se situa entre a dignidade e a sujeição acovardada, e, principalmente no caso, de que fora contratado para fazer o trabalho da melhor maneira possível, colocando-me, entre outros pontos, também como cliente fiel do produto editorial, não tive dúvida.
O que fiz? Talvez o casal Pinto não se lembre. Talvez Maury de Campos Dotto, a quem admiro pela iniciativa de lançar um jornal num Grande ABC que nem era Grande ABC naquela metade de século passado, também tenha esquecido.
O que fiz, então? Disse com clareza, firmeza e um tom de voz ponderado, talvez um pouco acima: não aceitava ser tratado como funcionário comum, um subordinado qualquer. Ou seja: estava li, àquela mesa, como executivo contratado para colocar a casa em ordem. E a casa em ordem era uma tarefa dimensionalmente ampla e irrestrita.
SEM MEIAS-PALAVRAS
Aprendi no tempo curto mas inesquecível de atirador do Exército Brasileiro que hierarquia, disciplina e tudo o mais são requisitos básicos.
Fui um atirador exemplar, me perdoem a franqueza. Tanto que fui convocado, entre quase cinco mil recrutas, a proferir a palavra em nome deles, na cerimônia de conclusão do serviço militar. Escrevi de próprio punho o pronunciamento. Mal completara 19 anos de idade.
Pouquíssimas pessoas sabem dessa história dos bastidores do Diário do Grande ABC. Agora, muitas passarão a saber.
Decidi revelar os lances daquele encontro porque o exemplar encharcado que descartei sem ler hoje de manhã me fez voltar ao passado.
RETORNO EMBLEMÁTICO
E a volta ao passado é emblemática. O Diário do Grande ABC desde então, e mesmo antes de então, entrou em processo de fragilização como produto editorial.
Não só o Diário do Grande ABC, mas, em se tratando da região, como expressivamente o exemplo mais contundente dos estragos provados pela digitalização na área, pela desindustrialização, pela perda da própria identidade editorial, entre outras sequelas que a longevidade de circulação oferece como cronometro de um case assustador.
Embora faça série de restrições de diversos calibres ao Diário do Grande ABC, a ponto de, numa escala de zero a dez, não atribuir mais que nota um à publicação, entendo que a debilidade deve ser adicionada ao carrinho de prejuízos inestimáveis à cultura regional.
Um carrinho cujo destino quase irrefreável ao descarte, independentemente da chuva de madrugada, precisaria ser contido a qualquer custo.
E sobre isso não pretendo escrever agora. Qualquer custo para o salvamento do Diário do Grande ABC entenda-se como um preço que leve em conta a ética e a qualidade editorial.
Passando como passei por todos os cargos possíveis da Redação do Diário do Grande ABC em quase um quarto de minha atividade profissional iniciada em Araçatuba aos 15 anos de idade, vivo um cotidiano rotineiro quando cada exemplar chega à minha residência.
Da mesma forma que sei porque sei o que a Folha de S. Paulo e o Valor Econômico vão me apresentar como linha editorial, o Diário jamais me surpreende. Mas deveria.
NOTA SEMELHANTE
A nota um de hoje não é muito diferente da nota dois que atribui ao jornal naquele 2004, quando assumi a direção de Redação.
O déficit de qualidade e profundidade do jornal ante a demanda social, cultural e econômica da região é profundo.
Entretanto, nem essa constatação retira a imperiosidade de o jornal continuar a pertencer ao portfólio de relevância da região.
O exemplar encharcado de hoje que parece ser o exemplar encharcado do passado daquela incômoda reunião de diretoria é o exemplar encharcado de uma realidade que se confunde com uma metáfora.
Embora com alguns pecados capitais facilmente identificados, não se deve deixar de louvar o Diário do Grande ABC que recebo todas as manhãs em minha residência.
Trata-se de um soldado da resistência física nestes tempos de digitalização incontrolável.
SITUAÇÃO INESCAPÁVEL
Molhado ou não, o Diário do Grande ABC retrata perfeitamente a sequência lógica de uma região que o próprio jornal sintetizou no título e que jamais se converteu em realidade operacional.
Nossa regionalidade prática é tão ilusória quanto a leitura de um exemplar encharcado.
O que mais temo como cidadão do Grande ABC em estágio de estupidez é que, da mesma forma que acreditar em regionalidade ficcional, o exemplar encharcado e descartável do Diário do Grande ABC de hoje esteja encharcado e descartável também mesmo quando a chuva não desaba no horário de entrega.
Para terminar: vai completar dois anos que o jornal a quem dei parte de minha vida profissional me deve a verdade sobre um assassinato não consumado fisicamente.
A verdade multiplamente provada e comprovada, mas sonegada, é um crime editorial, caro senhor Ronan Maria Pinto.
Precisamos de um Diário do Grande ABC forte e sequinho mesmo quando molhado para que a verdade dos fatos não seja maculada por interesses outros ou deficiências múltiplas.
REPOSIÇÃO FEITA
Estava com este texto concluído antes do meio-dia quando, seguindo programa de recuperação física numa bicicleta ergométrica, ouço um barulho de moto seguido de um ruído indefectível: o exemplar do dia do Diário do Grande ABC, descartado de manhã, foi reposto sem que reclamasse diretamente ao setor competente. A reposição obedeceu ritual de sempre, ou seja, ao alcance da chuva. Que, naquele momento, dera uma trégua.
Uma boa alma leu no WhatsApp minha reclamação numa das listas de transmissão que me mantém conectado ao mundo regional. Exemplar à mão, separo as páginas que me interessam ler de imediato e, em seguida, vou para uma nova etapa: descarto o material sem durabilidade à consulta e guardo aquilo que vai ser levado ao arquivo de papel que , também, obedecerá a novo estágio de avaliação – por curto prazo e por longo prazo.
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29/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (27)