Vamos ver se o leitor está esperto? Imagina uma cidade ou mesmo uma região (e no caso é onde vivemos, o ABC Paulista) que, num determinado período, vê explodir o número de estabelecimentos comerciais e de serviços. Isso é positivo ou negativo? No caso da nossa região, é mais uma vez tremendamente negativo. Números isolados de um contexto histórico são números perigosos. Malandramente perigosos e perniciosos.
Por isso, cuidado com o que você consome em informações. Vivemos uma segunda onda de nordestinização econômica da região. E há quem prefira chamar essa catástrofe econômica e social de crescimento econômico. Que São Jorge nos acuda.
SEGUNDA ONDA
O Diário do Grande ABC de hoje e o Diário do Grande ABC de algumas semanas atrás, quando não o Diário do Grande ABC de décadas passadas, coloca num patamar de comemorações notícias relativas ao avanço da gastronomia na região.
Outro dia foi a explosão de pizzarias, agora, na edição de hoje, elege-se Santo André como o maior polo gastronômico da região, capaz de rivalizar com São Paulo.
Toma-se um nicho geográfico, no caso o Bairro Jardim em Santo André, pelo todo.
O Diário do Grande ABC e outras mídias que caíram nessa arapuca de pauta da assessoria do prefeito de Santo André acabam se dando mal. Vai – uma vez mais -- faltar sustentabilidade. Como faltou no passado que recupero logo abaixo.
NORDESTINIZAÇÃO
O que vivemos é sim uma segunda onda de nordestinização comercial e de serviços na região. Escrevi sobre isso há quase 30 anos. E repeti a conceituação durante esses anos todos. Não esperava ter de repetir.
Quem tem memória sofre com permanentes ataques de triunfalismos que agentes públicos infiltram na sociedade para vender gato por lebre. Enquanto isso, a banda do rebaixamento da qualidade de vida toca aquela musiquinha típica de funeral.
Com base em dados oficiais, de fontes de instituições federais, vamos colocar mais uma vez ordem nesse galinheiro especulativo.
IMPOSSIBILIDADE
O que garanto com retaguarda estatística é que é impossível crescimento de verdade nos setores de comércio e serviços (vamos ficar só por aqui) sem o respaldo de crescimento do PIB como um todo e do mercado do trabalho compatível com ganhos de mobilidade social.
No caso das áreas de alimentação e de serviços em geral, o que ocorreu em todos os municípios da região foi o que chamaria de explosão de empreendedorismo por necessidade, não de oportunidade.
Empreendedorismo por necessidade é uma situação em que o desempregado de hoje mete as caras para virar um comerciante ou um prestador de serviços geralmente sem informações básicas para medir o grau de risco.
DE OPORTUNIDADE
Empreendedorismo de oportunidade é exatamente o contrário: vislumbra-se um nicho específico associado ao perfil de consumidores de determinada área e se plantam as sementes do sucesso.
Estou sendo reducionista, mas preciso na definição dos dois tipos básicos de empreendedorismo.
Quem trata os empreendedores como ocupantes da mesma plataforma de características não sabe nada de economia em qualquer dimensão.
No ABC Paulista, então, o estrago provocado no casco da credibilidade de quem troca o rigor pelo aplauso fácil, o tempo tem demonstrado que se trata de operação camicase.
RECESSÃO E EXPLOSÃO
No período de 2010 a 2022, quando o ABC Paulista viveu as consequências da maior recessão da história (especificamente nos anos 2015-2016 com Dilma Rousseff no poder federal foram 22% de queda do PIB Geral) houve uma explosão nos dados de empreendedorismo.
E as áreas de alimentação e de serviços gerais demarcaram essa fenômeno ramificador de empobrecimento que, aos incautos, se traduz em sucesso numérico como se fosse sucesso econômico.
Vamos então aos números? Em 2010, havia na região 5.936 estabelecimentos da área de alimentação e 29.014 na área de serviços gerais. Em 2022, saltamos para 23.036 empreendimentos na área de alimentação e 120.842 na área de serviços gerais.
NÚMEROS, NÚMEROS
Crescemos, no sentido numérico ( tão consistente economicamente quanto a rigidez de uma bexiga) 74,23% em alimentação e 76% em serviços gerais. As pizzarias e tantos estabelecimentos de alimentação estão nessa massaroca.
Tenho os dados dos sete municípios da região, base da seguinte afirmativa: não há nada, absolutamente nada, do ponto de vista de gestão pública coordenada além das fronteiras de semelhanças operacionais, que indique alguma cidade como inovadora no campo de apoio ao empreendedorismo a ponto de influenciar resultados palpáveis de discricionaridade por mérito metodológico.
FORÇAS OPONENTES
Mais que isso: como o crescimento numérico se opõe ao rebaixamento do consumo no período em questão, o que tivemos na configuração da região foi o mesmo fenômeno geral: o empreendedorismo por necessidade avançou deleteriamente combinado com o afrouxamento do potencial de consumo. Conclusão? Uma catástrofe. Uma segunda onda de nordestinização.
Nordestinização é um neologismo que criei na área econômica para trazer às ruas da região o que vi nas ruas do Nordeste: o acavalamento canibalesco de pequenos negócios de comércio e serviços. Garagens de residências transformadas em mercadinhos, em confeitarias, em lanchonetes, em tudo o que você imagina. Isso é nordestinização. O que temos de sobra. E que inflam as estatísticas.
FLUXO DE SUCESSO
Quando a região era viveiro industrial também além de Santo André, havia flagrante distorção econômica. Atividades de comércio e de serviços contavam com consumidores empregados em grandes empresas de produção e a concorrência era civilizada. O nível de sucesso era abundante. Com a desindustrialização e a chegada de grandes conglomerados de comércio e de serviços, a biruta virou. E a nordestinização chegou avassaladora. A demanda recuou e a oferta se elevou extraordinariamente. Escrevi muito sobre isso.
Voltando aos números do período de 2010 a 2022, a variação de estabelecimentos da área de alimentação na região obedece a sincronia de ajustes locais entre os municípios.
Um exemplo? Enquanto na área de alimentação Santo André contava com 1.699 unidades em 2010 e passou para 6.339 em 2022, em São Bernardo o total de 1.806 estabelecimentos em 2010 passou para 7.023 em 2022.
OUTRO CAPITALISMO
Percentualmente, que é uma métrica sustentável, em Santo André o crescimento numérico de estabelecimentos de alimentação chegou a 73,20% no período, ante 74,29% em São Bernardo. Na área de serviços gerais, Santo André chegou a 76,52% de crescimento numérico, enquanto São Bernardo registrou 73,63%. Os demais municípios registraram números semelhantes.
Portanto, o que tivemos no período desses 12 anos analisados foi mesmo uma explosão do capitalismo de desespero, por assim dizer.
Quem disser outra coisa não terá segurança de transmitir confiança à sociedade porque se trataria de fraude informativa.
NICHOS DOS 30%
Os casos de nichos comerciais e mais especificamente de gastronomia que têm no Bairro Jardim o que seria o direcionamento mais entusiástico (e enganador no sentido geral), se sustentam porque, felizmente, ainda temos 30% da população da região ocupando os estrados de Classe Rica e Classe Média Tradicional. São perto de 300 mil domicílios do total de um milhão.
Ou seja: seria o fim da picada acreditar que por mais que a região tenha sido duramente castigada na Economia nas últimas quatro décadas, não haveria sombra de prosperidade mesmo que herdade de parte da população.
O que não se pode cometer é o pecado de tratar o minoritário como majoritário. A exceção pela regra. A porção pelo todo.
A região há muito sofre as consequências da desindustrialização e seguirá a sofrer porque não há reação coordenada e sustentada. Tanto que o PIB de Consumo, também conhecido por Potencial de Consumo, cai ano a ano na região, em contraste com outras geografias do Estado e do País.
Veja na sequência alguns trechos da análise que fiz sobre o fato de que mais nem sempre é mais e menos muitas vezes é o mais com vestimenta fraudulenta.
Quando mais empresas não significam
mais desenvolvimento econômico
DANIEL LIMA - 14/03/2012
O Diário do Grande ABC de ontem caiu numa antiga armadilha que desmontamos também há muito tempo: acreditou no conto da carochinha de que mais empresas nos setores de comércio e de serviços significam dinamismo econômico. No caso da Província do Grande ABC, mesmo nos últimos anos da Província do Grande ABC, é melhor não acreditar. Mais que isso: é melhor descartar. Vivemos há uma década e meia o que chamo de "nordestinização” econômica. Vou explicar o neologismo.
Até metade dos anos 1990, quando a Província ainda não sentia as dores mais profundas da desindustrialização que na última década do século passado cortou 100 mil empregos industriais com carteira assinada, comércio e serviços estavam muito aquém do potencial de consumo da região. O emprego industrial, embora já em processo de declínio, que, de fato, começou em meados de 1980 com a interiorização movida à guerra fiscal, anestesiava o sonho do negócio próprio.
EMPREGO FARTO
Quem estava empregado na indústria, numa indústria que sempre pagou salários maiores que os demais setores, não tinha razões para montar o próprio negócio. Comércio e serviços da Província eram negócios de famílias. Rentáveis, confortáveis, acomodados.
Aí veio o que se sabe (e a maior parcela da imprensa regional procurou esconder na esperança de que os sintomas seriam imperceptíveis) e houve uma enxurrada de desempregados com dinheiro no bolso de indenizações por longos anos de trabalho prestado a indústrias.
Foi um deus-nos-acuda. Gente completamente despreparada montou todo tipo de empreendimento com a cara, a coragem e dinheiro no bolso. A grande maioria se deu mal também porque os grandes conglomerados nacionais e internacionais aportaram na região.
Mas a explosão de empreendimentos provocou e ainda provoca estragos num ambiente de refluxo do PIB (Produto Interno Bruto).
VELOCIDADE TOTAL
Canibalizou-se de tal forma o mercado regional que empreender se tornou uma aventura. O número de empreendimentos corre em raia própria com velocidade assombrosa, enquanto a produção de riqueza expressa no PIB tem o andar de tartaruga. Não poderia mesmo dar certo.
Essa disputa maluca ainda não terminou, embora tenha arrefecido desde que, nos últimos anos, mesmo com a baixa capacidade de geração de emprego industrial, a saturação do mercado evidenciou-se.
Ainda há mais gente abrindo negócios do que fechando negócios formalmente. Ou seja: a quantidade de estabelecimentos comerciais e de serviços que abre as portas é invariavelmente maior do que a quantidade de estabelecimentos comerciais e de serviços cujos titulares procuram os órgãos competentes para dar baixa.
Há um desvio estatístico que ilude os incautos. Sem contar que mais competição num ambiente econômico constrangido pela flacidez do PIB significa carnificina concorrencial.
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