Imprensa

CARTA ABERTA AO DONO DO
DIÁRIO DO GRANDE ABC (12)

DANIEL LIMA - 19/09/2023

A recuperação do Diário do Grande ABC como produto jornalístico passa obrigatoriamente pela junção de dois caminhos só aparentemente inconciliáveis: a regionalidade e o municipalismo. Não existe obstáculo algum a interpor-se de forma desestimulante a ponto de impedir que essas duas linhas paralelas não se encontrem no horizonte chamado futuro. 

No caso do Diário do Grande ABC, o que temos é uma aberração editorial quando não econômica da empresa que edita o Diário do Grande ABC. Deixar de cultivar essas duas preciosidades que se completam invade o terreno da imprevidência estratégica.   

O Grande ABC não virou essa maçaroca institucional porque o destino estaria traçado inquestionavelmente, a separar suposto joio da regionalidade do trigo do municipalismo, ou o joio do municipalismo do trigo da regionalidade.  

Esse é o ponto central: ao longo de décadas de circulação o Diário do Grande ABC não se inseriu com a mesma intensidade no mundo da regionalidade e da municipalidade tendo-se em vista que o autarquismo do segundo sempre emperrou a construção do primeiro.  

DOMÍNIO MUNICIPALISTA  

Traduzindo: o municipalismo dos sete municípios da região, cultuado até nestes dias com rescaldos dos movimentos emancipacionistas, moveu as engrenagens contraproducentes à transformação do regionalismo numa obra a ser recorrentemente valorizada. 

Festejar o municipalismo em cada data reservada à emancipação político-administrativa é uma forma legitima de fortalecimento da identidade, mas é repressora ao regionalismo porque soa uma libertação condenatória quando deveria existir atmosfera de conciliação e cooperação.  

Para quem ainda não entendeu o significado sociológico, entre tantos, da região em contraposição ao municipalismo de sete cidades, ou o municipalismo de sete cidades contraposto ao regionalismo, quem sabe bastaria apenas uma sugestão que, exatamente por contemplar o que poucos, pouquíssimos apreciam no fundo da alma municipalista, soaria como aberração. 

DIA DO GRANDE ABC 

O que vou propor transpira como provocação e não nego essa intenção. Somente um choque poderia despertar a consciência geral de que não será com a exacerbação municipalista que vamos sair da enrascada em que nos metemos. Ou alguém anda tem dúvidas de que deixamos de ser o centro do mundo brasileiro, como éramos quando tínhamos o monopólio ou o controle quase total da indústria automotiva? 

De que se trata, afinal, essa provocação? Já imaginou o leitor se a região se convertesse numa determinada data no centro de atenções da sociedade que a habita? 

Como assim? Vou ser reto e direto, além de maluco de pedra quando se considera, repito, a ofensa em que se traduziria afirmar que o regionalismo é muito mais importante que o municipalismo. Quer saber?  

Então vai bomba: imagine o leitor se uma determinada data do calendário gregoriano fosse dedicada ao “Dia do Grande ABC”, com feriado regional e programação festiva anual, em cada Município? 

MELHOR FÓRMULA  

Seriam mais apropriados eventos municipalistas em torno do regionalismo ou um megaevento numa determinada cidade, mas como foco regionalista? 

Talvez fosse mesmo mais ajuizado concentrar tudo num único Município, centralizando esforços e infraestrutura. O conceito de que os sete municípios formam um único endereço institucional exigiria direcionamento de uma programação integracionista que o municipalismo de eventos mitigaria.  

Mas qualquer argumentação em contrário também tem validade e força. O Dia do Grande ABC festejado sob um mesmo conceito em cada Município, numa mesma data, teria o condão da descentralização-concentrada. O morador de cada cidade teria contato direto com a história da região sem precisar sair do território em que reside.  

O Dia do Grande ABC seria, nas primeiras edições, o tiro de larga, dentro de um complexo de iniciativas que remodelaria o sentimento municipalista num sentido extraordinariamente significativo.  

CONEXÃO REGIONAL  

Quem sabe com essa iniciativa, que se fortaleceria ao longo dos tempos, a abstração desprezada chamada Grande ABC se tornasse um culto à interdependência compulsória dos municípios que reúnem quase três milhões de habitantes?  

Se fosse dono do Diário do Grande ABC, um dono muito mais competente que o dono atual no campo jornalístico, porque sou jornalista há 300 anos e ele jamais o foi ou será, se fosse dono do Diário do Grande ABC agarraria essa ideia com unhas e dentes. Não vou cobrar direito autoral.  

Uma das primeiras providências que Ronan Maria Pinto deveria tomar para levar adiante o Dia do Grande ABC seria compreender que, como não é do ramo, e não ser do ramo em questão não é pecado, procuraria profissionais da área de marketing e trataria de adotar medidas para dar uma reviravolta na viuvez do sentimento de regionalidade.  

Possivelmente o maior equívoco no marketing do Diário do Grande ABC foi acreditar, mas pouco fazer, na compulsoriedade de que poderia, apenas como produto editorial e consequentes coberturas jornalísticas, apropriar-se do sentimento de regionalidade em sete municípios vocacionados à separação político-administrativa. 

SEM CONTROLE  

O Diário do Grande ABC jamais teve o controle tático da integração regional que poderia ter exercido ou influenciado com razoável poder de catequização nos períodos em que mais foi expressivo como produto.  

Mais que isso: não há equivalência entre uma linha editorial usualmente glorificadora do municipalismo e apreço pela regionalidade. Transpira-se subjetivamente na região uma dupla enfermidade sociológica: o regionalismo é uma afronta ao municipalismo e, consequentemente, incrementa uma rivalidade degenerativa. Retrato tudo isso no livro Complexo de Gata Borralheira.    

Longe de mim sugerir que os libertários municipalistas devessem ser repreendidos. O movimento emancipacionista em si não proporcionou ou incrementou o divisionismo municipalista como pecado capital.  

Particularmente, entendo que passado tanto tempo, o que tivemos na prática foi uma operação que se converteu num erro clamoroso quando se observa a região como região, não como compartimentos municipais. Perdemos compulsoriamente a capacidade de organizar o território sob um prisma de ganhos de produtividade em todos os sentidos. Mas isso é outra história.  

PODERIO DILUÍDO  

Como, então, o principal instrumento de comunicação social da região, um poder hoje diluído e diversificado entre outras mídias, o Diário do Grande ABC jamais imprimiu política editorial vigorosa e irreversível que impedisse ou amenizasse as dores do separatismo como fonte de fragmentação econômica e social.  

Não acredito que tenha se esgotado o tempo à reação, mas não seria esse tempo resgatável se permanecerem os valores estabelecidos ao longo de décadas, imaginando-se que organizações como o Clube dos Prefeitos ou qualquer outra instancia determinaria estancamento e recuperação.  

O Dia do Grande ABC que praticamente replica o nome do jornal mais tradicional da região abre uma possibilidade imensa às próximas gerações enxergarem que a São Caetano mais rica está inserida no ambiente social e econômico de uma Diadema mais rebelde e carente, de uma Mauá mais sofrida, de uma Santo André empobrecida, de uma São Bernardo fortemente trabalhista, de uma Ribeirão Pires sempre à espera de um boom desenvolvimentista e de uma Rio Grande da Serra bucólica.  

FALTA REGIONALIDADE  

Não pretendo desfilar aqui e agora os valores culturais e materiais que estão no conjunto dos municípios da região. Seria desnecessário. O que temos é uma situação mais importante e chocante para quem estaria determinado a mudar as regras desse jogo de perde-perde. 

O fato é que regionalidade não existe. E na medida em que há divisionismo e, mais que isso, esse divisionismo é estupidamente incentivado, tornando-se, portanto, uma rivalidade estúpida, esses mesmos valores culturais e materiais se perdem, se miniaturizam.  

Também não vou desfilar aqui uma porção de ideias práticas para tornar o Dia do Grande ABC memorável. As sugestões demandariam algumas horas até se colocada a uma mesa de colaboradores. Vou deixar isso a eventual transposição da proposta em projetos de lei dos Legislativos das sete cidades.  

DESAFIOS A SUPERAR  

Aliás, como não faltam vereadores que acompanham meu trabalho, quem sabe algum deles dê tratos a bola e decida, já na semana que começa, disseminar a possibilidade de, em conjunto, estudar detalhadamente como seria a regulamentação do Dia do Grande ABC.  

Viu como estou avançando o sinal? Quem não sonha não realiza. Alguma vez alguém perguntou como foi possível a um jornalista que jamais pretendeu ser nada além de jornalista ter criado uma revista regional que se tornou a maior e mais respeitada do País, porque única na qualidade editorial?  

Também não vou contar a história da revista LivreMercado aqui. Seria desnecessário. Além das dificuldades inerentes ao empreendimento propriamente dito, o estofo editorial, voltado ao setor econômico, era um acinte, quase ofensivo, naquele ambiente regional em que o sindicalismo e o trabalhismo imperavam.  

Mas foi exatamente por conta disso, de escrever sobre empresas e negócios, que decidi criar a publicação.  

SEM CONTENÇÃO  

E na primeira edição daquele tabloide acanhado, mas de alma comprometida com a sociedade, escrevi uma matéria revolucionária que colocava o dedo numa ferida até então camuflada, quando não negada, principalmente proibida: a dependência exagerada da região do setor automotivo e os primeiros sinais de desindustrialização. 

Poderia dar outros exemplos de que vale a pena pensar e realizar sem necessariamente alienar a dignidade. Para quem chegou em Santo André jovem com vários irmãos na carroceria de um caminhão de mudanças, vindo que vim do Interior de São Paulo, não há bola perdida.  

E no caso específico do Dia do Grande ABC, isso é o que chamaria de golaço. O dono do Diário do Grande ABC não precisa se sentir devedor a mim. Faço pela regionalidade, principalmente.  

É claro que não bastará criar o Dia do Grande ABC, programar festas comemorativas numa determinada data (alguém tem alguma ideia sobre quando seria a melhor?) e esquecer os outros 364 de cada temporada.  

O Dia do Grande ABC precisa ser costurado a cada dia nas instâncias municipais e regionais tendo-se como premissa essencial uma espécie de dogma que coloque a regionalidade acima de veleidades individuais e grupais, e a salvo da política partidária.  

ENROSCO DO CAROÇO 

Não é fácil, compreendo. Mas se o Diário do Grande ABC, maior beneficiário da iniciativa porque imanta o espírito da marca regional, passar por reformulação estrutural e conceitual que o retire das artimanhas destes tempos, tudo será menos difícil.  

É nesse ponto que entendo que há enrosco no caroço da azeitona da possibilidade real. Não vejo no Diário do Grande ABC destes tempos nada que induza a uma radical mudança como empresa e como produto.  

As torrentes tecnológicas que impactam os jornais de papel são, como já observei nesta série, apenas uma parte de um enredo de terror.  

O jornal perdeu a essencialidade informativa no sentido de qualidade e relativa independência. Está afastado das bases sociais mais representativas de formadores de opinião. Vive às turras com os adversários e distribui lantejoulas aos companheiros políticos sem levar em consideração, para valer mesmo, projetos que se inseririam no escopo do Dia do Grande ABC.  

CAINDO NA REAL 

O Diário do Grande ABC precisa cair na real de que, embora o Clube dos Prefeitos seja importante desde que foi concebido por Celso Daniel, a situação se degringolou a tal ponto que será difícil mesmo voltar ao estágio anterior, de inoperância.  

Os desfalques de São Bernardo e de São Caetano têm o lado positivo porque impuseram a quebra da naturalização de um estágio de falência institucional confundida com inapetência de alguns.  

O Clube dos Prefeitos será provavelmente outro a bordo de um Dia do Grande ABC como marco inicial de nova, para não dizer primeira e consistente, ação de regionalidade orgânica, da qual a sociedade participaria ativamente a partir da data comemorativa e simbolicamente instaladora de correção de um vazio institucional dilacerante.  

Ou seja: de fato, para valer, preto no branco, jamais o Grande ABC do passado e o ABC Paulista de presente existiram como uma força popular. O Fórum da Cidadania da segunda metade dos anos 1990, embora extraordinário no chamamento à realidade de então, não ultrapassou o teto das elites dirigentes de uma diversidade imensa de organizações coletivas. Mas não chegou à sociedade como um todo.  

IDEIA ATRASADA  

Aqueles que pretenderem desclassificar a possibilidade de criação do Dia do Grande ABC só se converterão ou se manifestarão alinhados ao meu histórico de ceticismo, mas nem por isso devemos insistir em ver o futuro da região como algo irrecuperável. Quem escreveu um best seller regional como “Complexo de Gata Borralheira”, única obra que devassou sem medos as profundas diferenças entre os municípios da região, tem todo o direito de sonhar um sonho diferente tendo como base palpáveis possibilidades de transformações.  

O Dia do Grande ABC está tão na cara, mas tão na cara, como antídoto ao municipalismo autárquico e castrador, que chega a ser alarmante não ter feito a sugestão antes e, mais ainda, que ninguém o fizesse também.  

A bendita provocação está lançada. Será que os mandachuvas vão continuar dando as cartas e sabotar a única estrada que nos levaria a mudanças para valer? É mais provável que sim.  



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