Espero que não me acusem de racismo porque se trata apenas de uma metáfora retirada do campo genético: os metalúrgicos da região querem aumento real de 2% nos salários ou partirão para a greve, mas não enxergam que o buraco é mais embaixo e se localiza na Bahia, com repercussão que vai se alastrar: os chineses estão chegando para produzir milhares de veículos elétricos.
Mais que observarem os chineses com atenção do que teremos num futuro não muito distante e o prosseguimento da desindustrialização liderada pela debandada do setor automotivo, os metalúrgicos deveriam reagir.
Bastaria para tanto bater na porta de um ex-metalúrgico, que liderou o chamado Novo Sindicado a partir do final dos anos 1970 na região, e que hoje ocupa pela terceira vez o Palácio do Planalto. O mesmo ex-metalúrgico e companheiros de governo que hoje estendem o tapete vermelho para invasores vermelhos com os quais mantêm afinidades ideológicas.
É ELE MESMO
Sim, é ele mesmo, o presidente Lula da Silva. O governo federal e também o governo estadual estão oferecendo todas as benesses para que os chineses da BYD se instalem na fábrica desativada da Ford em Camaçari, na Bahia. Já está tudo acertado. A fábrica chinesa vai despejar dentro de dois anos, segundo previsão dos chineses, 150 mil veículos elétricos.
O jornal Valor Econômico de terça-feira publicou uma reportagem que dá bem o tamanho da encrenca que deverá impactar não só o mercado de veículos da região como também de outras praças produtivas que não seguirem o ritmo de produção avermelhada.
O problema é mais grave na região por conta do pioneirismo das montadoras de veículos e os custos relativos maiores dos salários e também da substituição do universo de autopeças apropriadas para combustíveis fósseis e etanol por um número muito inferior exigido por novas tecnologias.
Escreveu o Valor Econômico que um evento na antiga fábrica da Ford, em Camaçari, formalizou os planos da BYD para fabricação de carros elétricos no País. A pretensão é que a produção comece em fins de 2024 e começo de 2025. Durante o evento de lançamento da pedra fundamental – escreveu o Valor – o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, do PT, anunciou um projeto de lei do governo do Estado, a ser discutido pelo Legislativo, que prevê isenção de 100% de IPVA de carros elétricos até R$ 300 mil e IPVA de 2,5% para veículos elétricos acima desse preço. Tudo já pactuado com os chineses.
MUITO INVESTIMENTO
A BYD promete investir R$ 3 bilhões na primeira fábrica de carros híbridos elétricos fora da Ásia. Os chineses dizem que serão criados mais de cinco mil empregos.
Tem mais benesses aos chineses. O senador baiano Otto Alencar, do PSD, afirmou que, além da isenção prevista pelo governo baiano, está encaminhando ao Senado estímulos ao setor que beneficiariam a BYD. Além de carros, a companhia planeja fabricar ônibus e caminhões elétricos em Camaçari.
Os chineses da BYD estão confiantes de que farão da fábrica em Camaçari um tentáculo internacional. Num discurso lido, o presidente Wang Chuanfu apresentou a empresa como sendo a maior do mundo em veículos movidos segundo ele à nova energia, com projetos em mais de 75 países. E, segundo a reportagem, “com uma dose de exagero falou dos planos da BYD para o Brasil, para além da fábrica. Chuanfu disse com a confiança típica de quem faz: “Nós queremos apoiar a Bahia, especialmente Camaçari, a se tornar o Vale do Silício do Brasil. Por isso, nós vamos construir um centro de pesquisa e desenvolvimento em Salvador”. A capital baiana fica a uma hora de Camaçari.
SEM EQUILIBRISMO
Não tenho ideia de quantas lideranças dos metalúrgicos da região (são 43 mil trabalhadores, sem contar os 25 mil das montadoras) cruzariam o futuro da categoria e da região com o equilibrista Philippe Petit.
O francês andou numa corda bamba estendida entre as Torres Gêmeas a 400 metros de altura durante 40 minutos. Abriu mão de dispositivos de segurança. Nem mesmo um cinto o prendia ao cabo sobre o qual andou, correu, dançou e finalmente, se deitou para ver o céu.
A diferença entre a façanha do equilibrista francês e o futuro que aguarda os metalúrgicos da região e que a travessia será dolorosamente traumática porque não contamos com especialistas em sobrevivência e reação econômicas no setor mais importante e vulnerável na região. Temos torcidas organizadas cegas, surdas e mudas aos apelos de modernização de relações trabalhistas e novas configurações desenvolvimentistas.
MUITO ESPAÇO
A questão que se coloca é que veículos exclusivamente movidos à bateria ou híbridos vão ocupar cada vez mais a paisagem nacional. Hoje não chegam a 5% das vendas anuais, mas a projeção é que ganhem velocidade intensa. O apelo ambiental move o mundo. Na Europa e nos Estados Unidos subsídios fazem parte do cardápio de investimentos na tecnologia que fará dos combustíveis fósseis vilões indesejáveis.
Faltam informações que situem o nível de preocupação com carros elétricos da cúpula sindical mais próxima do setor automotivo na região, no caso o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.
PREOCUPAÇÕES DE SOBRA
Quem eventualmente, por descuido ou negligência, quando não por ignorância de valores agregados, ainda não se deu conta do quando o capitalismo estatal chinês vai fazer estragos na região (e no Brasil de maneira menos grave), deveria ler entre outros especialistas o jornalista e mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua. Trata-se de Igor Patrick, também colunista da Folha de S. Paulo. Ele fez uma breve análise sobre a BYD na Bahia. Vale a pena reproduzir alguns trechos:
Primeiro – “Em vários aspectos, o fim das operações da Ford em Camaçari, na Bahia, e a chegada da chinesa BYD à cidade é um prenúncio de um novo mundo no mercado de mobilidade global. O acordo, oficializado com a devolução da fábrica sob administração americana para o governo estadual é o primeiro passo para que uma das maiores empresas de carros elétricos e eletrificados no mundo tome a dianteira deste crescente mercado no Brasil”.
Segundo – “A BYD é só uma parte de uma revolução iniciada há décadas pela China. Enquanto a política industrial dos Estados Unidos ignorou largamente a área, os chineses vêm apoiando desde 2010 a popularização dos chamados carros verdes – nomenclatura questionável, dado o grau de degradação ambiental necessário para a produção de seus componentes”.
Terceiro – “A iniciativa foi, acima de tudo, uma resposta a uma demanda doméstica. A China crescia na casa dos dois dígitos na época, em um impulso sustentado primariamente por combustíveis fósseis. Com um trânsito cada vez mais caótico, e poluição do ar em níveis cancerígenos nas principais metrópoles do país, o governo tentou de tudo: rodízios, políticas de limitação para emplacamento de carros novos, aumento de impostos. Mas a frota nacional continuou a se avolumar”.
Quarto – “Os carros elétricos e eletrificados foram a solução mais realidade. Pequim então iniciou uma agressiva política de subsídios, investimentos em tecnologia e construção da infraestrutura necessária para esta modalidade”.
Quinto – “Pequim se certificou de garantir dois fatores essenciais para o sucesso da empreitada: o acesso a matérias primas e as pesquisas em tecnologia e desenvolvimento. Os chineses hoje dominam cerca de 70% de todas as reservas de lítio no planeta, material essencial para a produção de baterias para carros elétricos. A influência diplomática na África também garantiu acesso privilegiado às minas de cobalto, no Congo, país com maior abundância do material”.
Sexto – “A exportação foi o caminho natural para as montadoras chinesas depois que elas se consolidaram no mercado doméstico. Enquanto isso, alternativas americanas ficaram pelo caminho”.
Sétimo – “A Europa tem feito avanços e, ciente da dificuldade de competir com as alternativas do gigante asiático, discute a implantação de tarifas adicionais para as chinesas BYD, GWM e outras. É colocar band-aid em uma ferida que ainda demorará muito para cicatrizar-se: se o futuro da mobilidade for verde como pede o planeta, sua fabricação será vermelha” – escreveu o especialista.
Entenderam por que os 2% dos metalúrgicos são uma merreca diante do vendaval que vem chegando. Como se não bastassem os vendáveis já que nos varreram do topo do setor automotivo com fundas repercussões sociais?
Total de 1892 matérias | Página 1
07/11/2024 Marcelo Lima e Trump estão muito distantes