Imprensa

CARTA ABERTA AO DONO DO
DIÁRIO DO GRANDE ABC (17)

DANIEL LIMA - 30/10/2023

Outro dia o Diário do Grande ABC cometeu uma das maiores barbaridades da praça regional ao publicar um anúncio para reforçar a equipe de redação. Publicar anúncio nesse sentido já é um absurdo, porque significa vulnerabilidades estruturais que vou explicar mais adiante. Agora, entretanto e todavia, publicar um anúncio para contratar jornalistas que tenham amplo domínio da língua inglesa, aí é demais. 

Recentemente fiz uma abordagem superficial sobre esse assunto. Ainda há o que escrever.  

Melhor que o Diário do Grande ABC, advertido por mim ou por quem quer que tenha sido, tenha desistido da ideia que, no fundo, aos mais atentos, desnudou as próprias fragilidades. O anúncio desapareceu no dia seguinte e não voltou mais.   

Se o Diário do Grande ABC cultivasse sensibilidade à vergonha própria com tantos outros temas conhecidos e abordados nesta série ou mesmo circunstancialmente num aplicativo digital, teria desempenho muito melhor. Seria um Diário do Grande ABC muito diferente do que está aí. 

E não se trata essa conclusão de algo pecaminoso deste jornalista, como se pretendesse arrogar-se o sabe-tudo. Nada disso.  

ATUALIZAÇÃO IMPORTANTE  

A explicação é simples: de jornalismo, no mínimo conheço o mínimo que jamais poderia ser desperdiçado por um jornal em decadência mais agressiva desde que foi comprado pelo empresário de transporte coletivo Ronan Maria Pinto.  

Não posso de forma alguma contestar a barbeiragem do Diário do Grande ABC na tentativa de reforçar seu quadro de redação sem oferecer sugestões como contrapartidas. Mais que sugestões: soluções já praticadas, inclusive na Redação do Diário do Grande ABC. 

Os tempos despertam mudanças que precisam ser acompanhadas atentamente. Se repetisse em qualquer redação de jornalismo diário ou não na região o que planejei e executei à frente da Redação do Diário do Grande ABC no começo dos anos 1980, quando estava ali como coordenador de produção, um cargo que de fato significava diretor operacional de Redação, certamente faria adaptações. 

ESCOLINHA DO DIÁRIO 

Naquele trabalho que durou quase três anos e foi interrompido porque o Diário do Grande ABC preferiu um outro modelo de comando de Redação, criei o que chamei carinhosamente de Escolinha do Diário.  

O projeto poderia ser replicado a qualquer tempo, acrescentando-se algumas inovações. 

A Escolinha do Diário consistia em algo que poderia ser relacionado às divisões de base do futebol em geral, ou seja, à formação de talentos para introdução na equipe principal.  

A Redação do Diário do Grande ABC naquela época contava com pelo menos 200 profissionais em várias áreas correlatas. Para se ter a ideia da diferença em relação a estes dias em que o jornalismo de papel rateia, quando não perece, temos hoje no Diário, segundo informações, apenas duas dezenas de profissionais. Ou 10% daquele efetivo.  

Não à toa o jornal conta com grande massa de informações publicadas de origem externa. Principalmente de propaganda oficial disfarçada de jornalismo das assessorias de Imprensa dos prefeitos – menos de Orlando Morando e de José Auricchio, inimigos da casa e sobre os quais o jornal direciona matriz própria de atenção, sempre contando com forças externas, de adversários dos dois prefeitos.  

Afinal, o que fiz quando estava à frente do dia a dia da Redação do Diário do Grande ABC entre 1982 e 1984, tendo como parceiros de jornada de comando a jornalista Valdir dos Santos, que, experiente, cuidava da edição da primeira página, e o também jornalista Ademir Medici, meu contemporâneo, escalado para dirigir matérias especiais? 

Minha Escolinha do Diário consistia numa inventividade produtiva que lancei mão porque sentia a importância de contar com equipe de jovens prontos para o combate em busca de informações.  

Havia no Diário do Grande ABC muita rotatividade na Redação, por conta de demandas da Capital. O Diário, como a região, sempre sofreu de Complexo de Gata Borralheira. A maioria dos profissionais que ali estavam veio de São Paulo para um período de emergência profissional obrigatória ou fazia do Diário um entreposto para dar saltos rumo aos jornais da Capital.  

O Diário do Grande ABC sempre teve orgulho dos profissionais que saiam e brilhavam na Capital. Mal se dava conta de que havia algo equivocado, e esse algo equivocado era justamente a ausência de política de recursos humanos a fortalecer continuamente a qualidade da publicação. Uma política de recursos humanos que tivesse a obsessão de impedir o vazamento de parcelas da memória da Redação. Cada jornalista que saia era um pedaço de conhecimento regional que se esvaia.  

FLUXO E REFLUXO  

Disse isso, ou seja, a ausência de política de recursos humanos, de forma respeitosa, certa tarde, ao diretor-presidente da empresa, Edson Danillo Dotto, numa reunião de chefias departamentais. Houve quem me olhasse estupefato. Menos um dos donos do jornal, com o qual mantinha relações episódicas.  

Como estava dizendo, havia fluxo e refluxo dos profissionais de Redação. Geralmente vinham para cá os jornalistas mais experientes, de alguma forma sem mercado de trabalho na Capital, e iam daqui para lá quem cultivava ambições e ilusões. As leis do mercado determinavam a sorte de cada um. 

Então, estava claro que precisava preparar jornalistas para ocupar espaços. Jornalistas da região. Por isso, a Metodista, tida e havida como o principal escoadouro de novos profissionais, era a preferida.  

Criei a Escolinha do Diário, portanto, sabendo que havia um modelo a ser explorado. Eram jovens da região que pretendiam transformar teoria em prática jornalística. O que se aprendia em faculdades de jornalismo estava para o dia-a-dia de uma Redação como o pebolim para quem quer ser jogador de futebol.  

CONCORRENTES NAS RUAS  

O que me desafiou (e que deveria desafiar o Diário destes tempos, ao invés de publicar anúncio tão patético) era definir uma estratégia de descoberta imediata de jovens com talento para serem utilizados com potencial de aprendizagem produtiva na Redação do jornal. 

Encontrei a fórmula utilizando as pautas de eventos a cada final de semana, obrigatoriamente cobertos pelo jornal. Independentemente de um profissional já contratado efetuar a cobertura do acontecimento programado, e que seria publicado pelo jornal, enviava em outro veículo três ou quatro dos jovens recém-formados para efetivar a mesma pauta, uma pauta paralela, cujo cumprimento era apenas uma informalidade para estudos de aptidões.  

Trabalhei nesse sentido com o princípio de entrevista coletiva.  Os três ou quatro jovens escalados para um mesmo evento eram tratados como se pertencessem a diferentes veículos de comunicação. De fato, integravam a turma da Escolinha do Diário. 

GRUPO DE REPOSIÇÃO  

Por que os meti numa mesma pauta e numa pauta que não seria utilizada como matéria do jornal do dia seguinte? Porque somente assim, ou seja, agindo concorrencialmente, eles poderiam mostrar qualificações a quem os colocou ali para de fato escrutina-los. No fundo, no fundo, o que queria mesmo era aferir os valores de técnica, talento e discernimento de cada um dos enviados. A partir daí, poderia começar a estabelecer juízo de valor individual bem fundamentado.  

Para encurtar a história verdadeira, ao fim do primeiro período da experiência da Escolinha do Diário, contava com um grupo razoavelmente confiável para eventuais reposições de modo a que não houvesse um impacto de qualidade nas páginas do jornal. Era, vamos dizer, o princípio de uma seleção de valores que faria a diferença nos tempos seguintes.  

Se fosse trazer ao presente aquela iniciativa reformista e revolucionária, porque concebida dentro de referenciais técnicos, não teria dúvida em preparar adaptações e mudanças.  

ADAPTAÇÕES E MUDANÇAS  

A primeira e principal seria, contando com as tecnologias disponíveis, organizar os conceitos de um curso de regionalidade em sintonia com as ações da Escolinha do Diário levada a campo. Ou seja: uniria o presencial ao digital para multiplicar o desempenho dos participantes em busca de uma associação perfeita entre o aprendizado complementar, pós-universidade, e o aprendizado ocupacional, no caso a regionalidade propriamente dita. 

Não há termos de comparação entre o que se deve atirar na lata do lixo de prioridade entre o domínio da língua inglesa para ser jornalista do Diário do Grande ABC e o conhecimento básico da regionalidade.  

Que Shakespeare vá para o inferno, nesse caso, porque o pragmatismo deve prevalecer. O Diário do Grande ABC não tem uma única razão sustentável para trocar a formação de um jornalista em regionalidade por um jornalista bilingue. Como não tinha no passado de submeter-se à ditadura de vestimenta, com jornalistas obrigados a usar paletó e gravata. Algo que jamais aceitaria.  

FUTURO EDITORIAL  

Se o Diário do Grande ABC fosse uma publicação com um mínimo de preocupação com o futuro editorial, que por sua vez pesa fortemente no futuro como empreendimento capitalista, deveria adotar um recorte diferente do proposto. A disseminação de uma pauta de ampla abrangência de regionalidade deveria constar obrigatoriamente não apenas da pauta em si, que se transforma em notícia no dia seguinte, mas da própria essência dos recursos humanos de Redação.  

Há quem imagine que Regionalidade é tudo aquilo que diz respeito a notícia sobre o que os municípios da região fazem além de suas fronteiras físicas ou individualmente com terceiro fora da região. Isso não é regionalidade coisa alguma.  

Regionalidade é o domínio de valor agregado sobre tudo que implica em relações consequenciais envolvendo os municípios da região, mais de um e preferivelmente os sete gerados pela emancipação político-administrativa. 

Um mantra que deveria esquadrinhar como cláusula pétrea cada notícia gerada pela Redação do Diário do Grande ABC teria como base crítica a influência da informação além do território municipalista eventualmente privilegiado.  

FLEXIBILIDADE REGIONAL 

É claro que nem tudo que é municipalista tem relações de plasticidade com conceitos de regionalismo, até porque há especificidades que não podem ganhar generalização. Entretanto, em muitas situações o que parece centralmente municipal tem o potencial de alargar-se rumo a outros municípios locais e mesmo desta metrópole. Não à toa, no Planejamento Estratégico Editorial que formulei e comecei a aplicar no Diário do Grande ABC, em 2004, tratei de nossa regionalidade no interior da metropolização que nos absorve.  

O resumo da história é que haveria, portanto, duas prioridades conexas à preparação de profissionais de Redação a uma eventual retomada de qualificação editorial do Diário do Grande ABC. Algo que jamais, nesse formato, de fato se deu na história da publicação.  

Primeiro, as técnicas de produção jornalística sobre bases práticas, saindo do enquadramento teórico das faculdades de jornalismo. Segundo, e em paralelo, curso intensivo sobre regionalidade, porque é disso que se trata produção informação de qualidade na região.  

Tenho na memória situações inusitadas do passado em que a Redação do Diário do Grande ABC contava com reforços vindos da Capital tanto em nível de chefia quanto de produção de informação propriamente dita.  

ESPECIALIDADES  

Talvez o uso de metáfora dê com mais consistência as aberrações cometidas quando não se compreendia e não se executava na prática o conceito básico de regionalidade numa linha de montagem de notícias.  

Imagine alguém ser chamado a prestar socorro a uma parturiente colhida de surpresa num ônibus apenas porque se formou em Medicina, mas sem qualquer apetrechamento técnico a prestar socorro específico àquela urgência. O jornalismo de múltiplas e excludentes funções lembra a Medicina de especialidades diversas.  

Houve situações constrangedoras no Diário do Grande ABC do passado, quando tecnologias não existiam para facilitar questões espaciais como hoje se decifra num aplicativo qualquer.  

Houve uma situação em que uma brilhante jornalista da Capital, agregada à equipe do jornal, encontrou dois obstáculos intransponíveis que reduziram drasticamente a produtividade funcional.  

Os textos sempre exemplares foram temporariamente suspensos para que atuasse como pauteira, primeira etapa da burocracia interna de Redação a separar informações preliminares do trabalho de campo, ou seja, quando uma sugestão se transforma em reportagem de fato.  

A pauta a ser cumprida era dupla, a primeira em Mauá e a segunda, vejam só, para aproveitar a saída, em Diadema. Dois extremos opostos na geografia regional. 

MAIS PROFUNDA  

O que isso significa dizer? Que a regionalidade implícita e explicita do jornalismo regional, seja qual for a publicação, vai muito além de se reconhecer a primariedade geográfica, que pareceria obrigatória, mas invade principalmente o terreno do domínio de valor agregado no sentido mais amplo dos sete municípios. 

O Diário do Grande ABC fez bem em dar fim àquele anúncio rigorosamente lamentável, mas isso não significa que o problema foi resolvido. A montagem de uma equipe de Redação a partir do quase-zero que se apresenta hoje, porque são poucos os profissionais no jornal, é o melhor dos mundos a mudanças significativas. O campo está aberto a composição de um quadro supostamente uniforme ou próximo disso em matéria de doutrinas a serem implantadas. 

Naquele período de 11 meses que chefiei a Redação do Diário do Grande ABC, entre 2004 e 2005, peguei o bonde andando. A Redação estava ali, relativamente adequada aquele contexto, mas com perspectivas de avanço considerável.  

No período de gestão daquele grupo, solicitei e fui atendido em duas contratações. E o time respondeu à altura. Não fosse a história que construí à frente da revista de papel LivreMercado, diria sem margem de dúvida que aqueles 11 meses no Diário do Grande ABC seriam os mais importantes de minha vida profissional juntamente com o período de 15 anos a partir do momento em que cheguei à publicação em 1970 como repórter esportivo. Entre um período e outro, os muitos anos de freelance na Agência Estado, do Grupo Estadão, também foram marcantes. 

Por experiência própria, portanto, não acredito jamais que alguém que não seja do ramo e, portanto, que precise dominar um idioma estrangeiro para habilitar-se à prática de lidar com informação e análise, seja mesmo a moldura de um quadro muito mais complexo do que os leigos imaginam. 



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