Possivelmente não exista outra explicação razoável: a edição de sábado da Folha de S. Paulo, contando com dados do Instituto Datafolha, preferiu proteger o ministro da Justiça Flávio Dino (indicado para o Supremo Tribunal Federal) a produzir jornalismo de verdade, sustentado por fatos.
A Folha não é de contrariar o Datafolha, mas se a Folha contrariou o Datafolha talvez seja porque tenha havido consenso entre o jornal e o instituto; ou seja, não houve contrariedade intramuros ao se definir a abordagem do material estatístico.
Qualquer aluno de jornalismo em qualquer faculdade de Comunicação em qualquer esquina do País aprenderia de imediato que, diante de informações apuradas, não há como pegar o desvio da ignorância nem da malandragem. O que deve ser priorizado como carro-chefe da matéria a ser produzida é o que se chama de informação principal.
AJEITADA DE BOLA
No caso da ajeitada no peito da acomodação da Folha do Datafolha o que se escondeu do público muito além de sonegar a manchetíssima de primeira página à altura de qualquer faculdadezinha de jornalismo foi o fato de que entre todos os resultados da pesquisa do Datafolha o que mais chocou foram os números sobre a percepção dos brasileiros no combate à corrupção: nada menos que 59% dos entrevistados reprovaram o que se passa no País. Por extensão, com a atuação de Flávio Dino.
Ou alguém tem dúvidas de que um ministro da Justiça tão efusivo não influencia o ambiente nacional quando, por exemplo, é recebido como espécie de chefe de Estado num conglomerado popular dominado pelo crime organizado?
O combate à corrupção caiu em descrédito no governo Lula da Silva com Flávio Dino. Os 59% superam até mesmo os 40% do combate à forme e à miséria como outra preocupação nacional.
CASO PENSADO
Não se descarta que tudo tenha sido de caso pensado entre a Folha e o Datafolha. Tanto é que no texto de página interna o jornalista da Folha escreve o seguinte, que pode ser traduzinho como abertura do cofre de desconfiança de que tudo seguiu um rito consensual: “O petista é reprovado em uma área em que se costuma se orgulhar de suas iniciativas: o combate à fome e à miséria. Dos ouvidos, 40% acham que o trabalho é ruim ou péssimo, 31% regular e 28% ótimo ou bem. Já seus números sobre o combate à corrupção serão combustível para seus adversários, que costumam associar as gestões petistas a malfeitos, com os escândalos do mensalão e do petrolão. Aprovam o trabalho do governo Lula na área só 15%, ante 23% que dizem achá-lo regular e 59%, que o reprovam.
Embora o texto da Folha de S. Paulo seja confuso e gere dúvidas, não parece desencaminhar o roteiro interpretativo mais lúcido: apesar de o quesito “Corrupção” ter sido mencionado por 6% dos entrevistados como um dos principais problemas do Brasil, dentro de um conjunto de 14 setores considerados obrigações federais, o nível de desesperança é elevadíssimo, chegando aos já mencionados 59% no total de entrevistados.
DESESPERANÇA
O que subjacentemente esse percentual refletiria? Que a corrupção chegou a um nível tão escandalosamente ruinoso a ponto de perder prioridade na escala comparativa. Corrupção seria algo tão improvável de passar por mudanças efetivas que perde a força motora de impulsionamento lógico.
Esse sentimento só salta aos olhos mesmo (e também nos dados) quando colocado em xeque em termos de aprovação e reprovação, por abarcar o ambiente nacional de maneira geral. Haveria, portanto, um ecossistema comportamental de agudíssima deserção quanto a critérios de moralidade e ética.
Tudo, goste-se ou não, a Operação Lava Jato procurou colocar nos devidos lugares ou em níveis menos escandalosos e mais propícios a punições. Até que o Supremo entrasse em campo e melasse o jogo sob a cortina de legitimidade de minúcias judiciais à disposição de poderosos bandidos sociais.
Para que não reste dúvida sobre a hierarquia psicossocial neste momento no País, individualmente a Saúde lidera o ranking de preocupação dos brasileiros, entre as áreas de responsabilidade do governo federal. O setor é o principal problema para 23% dos eleitores.
FICHA COMPLICADA
Se no sábado a Folha amenizou a situação de Flávio Dino, na edição seguinte, de domingo, foi muito além ao publicar breve biografia do indicado ao STF. A ficha corrida político-partidária de Flávio Dino é um horror. Mas a Folha passou o pano o tempo todo. Completou o serviço sujo de evitar constrangimentos à véspera da provável aprovação do barulhento político e ex-magistrado à Corte Suprema.
Mas, volto à edição de sábado. A manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) centralizou a atuação no Congresso Nacional (“Congresso pode controlar R$ 50 bi em ano eleitoral”) com a seguinte linha complementar: “Relator do orçamento aumentou reserva para emenda parlamentar em 2024”.
Chamo a atenção do leitor para fixar-se na cronologia. Estou me referindo à edição de sábado e fiz breve abordagem da edição de domingo. Na edição de sábado, com a manchetíssima sobre a atuação do Congresso Nacional, a Folha de S. Paulo jogou no lixo da desimportância um desdobramento da pesquisa do Datafolha, publicada no dia anterior, sexta-feira.
A chamada de primeira página reservada na edição de sábado da Folha de S. Paulo, dos desdobramento da pesquisa do Datafolha, não passou de algo minúsculo, no alto da página, quase imperceptível: “Saúde é o maior problema do País, aponta Datafolha”.
FUGINDO DA REALIDADE
Reproduzo o texto da primeira página da edição de sábado, que faz referência aos dados do Datafolha. Veja o que a Folha de S. Paulo escreveu: “A saúde é o principal problema do país para 23% dos brasileiros. Em setembro, esse percentual era de 17%, e entre as maiores preocupações nas áreas sob responsabilidade do governo federal, empatava com segurança pública, que caiu a 10%. A pesquisa ouviu 2.004 pessoas em 35 cidades na terça (5) e tem margem de erro de dois pontos percentuais” – escreveu o editor de primeira página da Folha.
Não é preciso dizer o que o enunciado está dizendo nas entrelinhas para quem entende do ofício de jornalismo: a Folha caprichou na proteção ao presidente da República e especialmente ao ministro da Justiça. Tanto que não faz referência à insegurança pública, que tem acentuado a fuga de cérebros do País e até mesmo impede a contratação de jogadores de futebol que atuam no estrangeiro por equipes brasileiras, como denunciou ainda outro dia a presidente do Palmeiras, Leila Pereira.
PROTEGENDO LULA
Agora vamos à manchetíssima de primeira página de sexta-feira passada da Folha de S. Paulo ao revelar a primeira fornada de dados do Instituto Datafolha:
Lula tem aprovação de 38% em cenário estável após 11 meses”. A linha complementar diz o seguinte: “Trabalho do presidente é reprovado por 30%, diz Datafolha; para 57%, ele fez menos que o esperado”.
Jornalisticamente, jornalisticamente, jornalisticamente, temos um caso escabroso de passada de pano que, todos sabem, não se verificou e nem poderia se verificar ainda num passado recente. A manchetíssima minimamente correta da Folha de sexta-feira com base no Datafolha seria mais ou menos nestes termos: “Maioria diz que Lula faz menos que o esperado”.
O que a Folha e o Datafolha deveriam pesquisar e juntar as peças numa mesma manchetíssima, numa próxima rodada junto aos entrevistados, é elaborar alguma pergunta que ligue uma coisa à outra. Uma coisa é a percepção expressa na edição de sexta-feira sobre a atuação geral do governo federal; outra coisa seria buscar resposta que vinculasse ou não o governo petista ao desencanto no combate à corrupção. Algo como: “Qual sua avaliação sobre o combate à corrupção no Brasil depois que a Operação Lava Jato foi desativada?”.
Os leitores podem esperar sentados. Não há interesse chamada Velha Imprensa em penitenciar-se diante da ofensiva de contraforça que explodiu a Operação Lava Jato que (parafraseando a cidade de São Paulo na letra consagrada), com todos os defeitos, carregava no peito uma lufada de moralidade e ética na vida pública nacional. Estão aí os bandidos sociais livres, leves e soltos para fazer principalmente da política o que sempre fizeram.
Total de 1877 matérias | Página 1
29/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (27)