A manchete principal de primeira página da edição de ontem e uma ampla reportagem da Folha de São Paulo sobre o que chamei aqui de “órfãos do Rodoanel”, expressão utilizada também pelo jornal paulistano, compõem um gol de placa em relação aos “filhos do Rodoanel”, que o Diário do Grande ABC publicou também em primeira página mas com reportagem inconsistente na edição de 11 de julho.
Ou seja: o Diário levantou a bola para a Folha correr para a galera. Talvez outras mídias possam ir ainda mais fundo no assunto. Uma reportagem especial no Fantástico seria providencial, porque a Serra Pelada de grandes obras viárias — e o trecho sul do Rodoanel é emblemático — provoca impactos até agora desprezados por autoridades públicas, empreiteiras e Imprensa. Uma calamidade em matéria de responsabilidade social que deveria envergonhar toda a sociedade. Principalmente nós, jornalistas.
Como não sou pago nem pretendo prestar serviços ao Diário do Grande ABC, porque ali já dei minha contribuição durante 16 dos 45 anos de carreira, não vou entrar em detalhes sobre os equívocos da reportagem publicada pelo jornal da Província do Grande ABC, outrora celeiro de craques do jornalismo.
Resumidamente, diria que há diferenças abissais de informações. Uma das quais é que o Diário do Grande ABC quantificou em 40 mil os trabalhadores no trecho sul, enquanto a Folha de São Paulo reduz a massa braçal a quatro mil.
Pesaram na reportagem da Folha as informações mais confiáveis, a abordagem mais completa, a determinação de tratar manchete de primeira página como deve ser tratada em qualquer veículo qualificado, ou seja, com profundidade, substância, essas coisas que diferenciam a reportagem principal das demais. Algo que o Diário do Grande ABC há muito jogou para escanteio, principalmente porque trabalha no fio da navalha com um quadro de redação reduzido e uma estrutura material debilitada.
Nesse ponto, a responsabilidade de Ronan Maria Pinto à frente da publicação precisa ser relativizada, embora tenha deixado para trás muitas iniciativas básicas. A verdade é que o jornalismo na Província do Grande ABC de imensos limites publicitários, há muito estrangulados por conta da desindustrialização, do canibalismo em serviços e comércio e do periferismo cultural e social, vive principalmente dos cofres públicos, que, por sua vez, geram dependências editoriais cada vez menos disfarçáveis. Mas isso é outra história.
Voltando aos órfãos do Rodoanel, talvez o Diário do Grande ABC tenha aprendido uma dura lição com a concorrência mesmo que sazonal da Folha de São Paulo na disputa regional por conteúdo: da mesma forma que não se joga fora um parceiro de carreira política (será que isso lembra alguém?), no jornalismo não se entrega de bandeja uma pauta especial.
Era preciso ir muito mais a fundo com os órfãos do Rodoanel que o Diário do Grande ABC publicou em forma de filhos do Rodoanel. Uma reportagem de fôlego é algo como um ato sexual satisfatório, se é que me entendem: pode até não ter tempo de duração pré-definido por teóricos e práticos, mas se sabe quando preencheu todos os requisitos.
Esticar ou abreviar a validade de determinados assuntos no jornalismo diário é questão de percepção. Quem não consegue calibrar o encontro entre o que se tem a oferecer de novidade e a demanda dos leitores corre o risco de frustrações e exageros. No caso dos órfãos do Rodoanel, ficou um gostinho de quero-mais que o Diário do Grande ABC não soube capitalizar. A Folha preencheu o espaço com a nítida vantagem de quem devassara pontos positivos e negativos do antecessor na cobertura. E sem frescuras típicas de editores, utilizou praticamente os mesmos termos da manchete de primeira página do Diário de duas semanas antes. Com a diferença de “órfãos” em relação a “filhos”. Até porque mais correta.
Sei lá se o vácuo da cobertura do Diário tem alguma coisa a ver com o sistema de banco de horas que dizem ainda existir naquela redação. Banco de horas foi uma tentativa de solucionar a sazonalidade de produção de veículos na Volkswagen, em São Bernardo (e que parece ter se espalhado por outras montadoras) supostamente para beneficiar empresa e trabalhadores. A metodologia regulava períodos em que boa parte do efetivo descansava com remuneração garantida e períodos em que essa mesma boa parte mantinha-se mais tempo no trabalho, ante a demanda do mercado. Na prática o que se constatou foi um descalabro. Principalmente porque trabalhadores com débito em conta corrente de horas negligenciaram a reposição programada.
No jornalismo, esse tipo de malabarismo administrativo com reflexos diretos na produção se converteu em desastre. No jornalismo, vírgula, porque foram alguns alquimistas que não entendem nada da atividade que meteram essa insanidade goela adentro da redação do Diário do Grande ABC.
Quando passei por lá, entre 2004 e 2005, desbaratei essa bobagem. Antes disso, garanti em negociações multilaterais (empresa, jornalistas e sindicado) a redução dos débitos da empresa e o parcelamento da conta que sobrou. Havia casos escabrosos de editores beneficiários de horas de créditos que eles mesmo controlavam. Um deles chegava a mais de 100 dias de descanso remunerado ou pagamento correspondente. Havia permanente vácuo nas editorias, porque a avalanche de credores era descomunal. Alguns profissionais chegaram a trabalhar menos de oito meses num ano.
Banco de horas numa redação é a estupidez em estado bruto. Não sei se está na origem da vacuidade do Diário do Grande ABC no caso dos órfãos do Rodoanel, com eventual descanso dos repórteres que cuidaram da matéria em 11 de julho. Se não for, a situação é ainda pior, porque não tem o respaldo de uma imprevidência gerencial. Afinal, transplantou-se para um ambiente de suposta criatividade e potencial de imprevisibilidade algo que fracassou numa linha de produção previamente programável.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!