Quando lancei o livro Complexo de Gata Borralheira num Teatro Municipal de Santo André lotadíssimo, em abril de 2002, não poderia imaginar que 22 anos depois a enfermidade sociológica exigiria mais que uma cadeira de rodas de espera para tratamento delicado, mas otimista. A situação se agravou neste século a ponto de exigir tratamento numa UTI de mobilização por causa da gigantesca parafernália das barulhentas e dispersivas redes sociais.
Vou tratar disso hoje intercalando alguns trechos do livro Completo de Gata Borralheira, entre parênteses, para que a compreensão dos fatos e da história seja facilitada.
(O que você quer dizer com isso, Santo André?
-- Trata-se do seguinte, São Paulo: somos dependentes em larga escala também de sua luminosidade e de sua atratividade cultural porque não contamos com veículos de comunicação de massa. O Grande ABC não tem emissoras de TV aberta.
-- Sabe que não tinha atentado para isso? Estou tão distante de vocês, e vocês tão distantes de mim, que não havia notado isso.
-- Calma Rio Grande da Serra, calma que tem mais. Não temos TV de massa e só contamos com uma emissora de rádio para tratar do nosso dia-a-dia. Somos totalmente dependentes de São Paulo. E não pensem que não temos TV aberta porque falta interesse de investidores. O problema é que tecnicamente isso não é possível. Precisaríamos contar com uma barreira natural, isto é, com montanhas, para interceptar as imagens geradas em São Paulo e produzir imagens locais. Como a topografia não nos ajuda e a tecnologia não faz milagres, ficamos apenas com emissoras em UHF e a cabo que, todos sabem, têm audiências residuais e não dispõem de recursos técnicos, materiais e humanos para programações que rivalizem com as dos grandes conglomerados de comunicação.)
INFERIORIDADE
Logo abaixo, reproduzo uma das quase três centenas de textos que fazem referência à expressão Complexo de Gata Borralheira, e que também ajudará o leitor a compreender esse fenômeno com profundas raízes culturais.
Resumidamente, para que se entenda o que se segue, e se abra o apetite ao consumo integral do texto mencionado, Complexo de Gata Borralheira original, do livro de 2002, registra em forma de alegorias o sentimento de inferioridade da região em relação à pujante Capital e, como consequência, os arroubos de bairrismo na tentativa individual, coletiva e institucional de dar respostas que só confirmam a enfermidade.
Nesta quase metade da terceira década do novo século, quando a região vive cumulativamente o pior estágio social e econômico da história dessa fragmentação territorial insana, sou forçado a admitir que estaria na hora de um novo livro.
(-- Tem razão Diadema, tem razão. Mas de tudo que foi elencado por vocês para martelar esquecimentos e lembranças, queria saber um pouco mais sobre essa história da chegada dos grandes conglomerados comerciais, que também recepcionei com todo o carinho em minhas terras. Afinal, não se pode criar obstáculos para o crescimento econômico.
-- Primeiro falo eu, querida São Paulo, porque foi o meu território que mais apanhou com essa invasão aqui no Grande ABC. Como você bem disse e sabe, a chegada de grandes redes varejistas e de hipermercados também em suas terras teve efeitos negativos de concorrência predatória aos pequenos negócios. Mas como você é nobre, tem as mais variadas alternativas econômicas, os impactos sociais foram proporcionalmente menores. Aqui foram diferentes. Muito diferentes.
-- Permita Santo André que, como conheço também esse enredo, gostaria de acrescentar sucintamente para a querida São Paulo, que acabou de falar, alguns pontos aos seus conhecimentos teóricos e práticos. Aqui no ABC o grande comércio fez um estrago imenso porque, como no seu território, ancorou sem maior preocupação social. Até porque nossos poderes públicos -- por descuido, desinteresse, dificuldade de conectar as legislações municipais e principalmente porque não existe um arcabouço legal em nível federal para disciplinar a questão -- deixaram a coisa rolar ao sabor dos ventos e dos interesses arrecadatórios. Sim, interesses arrecadatórios porque estamos todos caindo pelas tabelas do ICMS. Esse imposto, todos sabem, significa grande parte de nossa capacidade de receita orçamentária. Perdendo uma parcela dessa arrecadação por causa da evasão industrial, temos de lubrificar outras fontes para calibrar a qualidade de vida que, como água de chuva, despenca morro abaixo, ou para diminuir a criminalidade, que avança como fogo morro acima.)
UNIVERSALIZAÇÃO
Seria algo como Complexo de Gata Borralheira Universal. Sim, frequentamos a roda-viva de um mundo sem fronteiras e vamos nos dando muito mal. Nada surpreendente, entretanto. Afinal, um organismo social debilitado, como sempre ou quase sempre foi o Grande ABC, é um prato-pronto a estilhaços comportamentais individuais e coletivos que o tornam ainda mais vulnerável.
E estamos nos dando muito mal porque o municipalismo que sustentava e atormentava os desejos também está indo para uma cova rasa de identidade estraçalhada, enquanto a regionalidade propriamente dita já dançou há muito tempo o último tango sem dó nem piedade.
Vou fazer desta abordagem, hoje, apenas uma cavalgada inicial no lombo das evidencias inegáveis que nos assolam. Há muito mais do que se segue neste texto a analisar, mas o bom senso exige que o faça com vagar. Afinal, foi nesta manhã, ao separar página por página dos jornais físicos que recebo em minha casa, que me dei conta de que Complexo de Gata Borralheira é muito mais do que já foi e por ser muito mais do que já foi precisa ser atualizado mesmo com dores e dissabores que se acumulam.
Estamos vivendo tempos difíceis. Nossa identidade coletiva vai para o fundo do poço. Quando escrevi Complexo de Gata Borralheira há mais de duas décadas estávamos todos à beira de um precipício, mas havia esperança e alguns fundamentos de mobilização social que sugeriam reação. Hoje estamos à deriva.
Somos uma sociedade fragmentada culturalmente e estraçalhada economicamente. Talvez o resultado disso, no futuro, seja uma sociedade mais aparelhada para entender o Brasil e o mundo como um todo, porque haveremos de aproveitar alguma coisa mais útil tendo às mãos essas maquinhas diabólicas que abrem as fronteiras ao conhecimento.
(-- Não acredito, não acredito que seja pegadinha, Ribeirão Pires. Recuso-me a imaginar que alguém tenha tido a coragem de me tirar dos imensos desafios da maior cidade da América Latina para um bate-bola com a periferia sem que houvesse pelo menos uma razão muito forte. Tenho muito o que fazer. São Paulo não pode parar, não é verdade?
-- O ABC também não pode parar, São Paulo.
-- Santo André tem razão, São Paulo, mas estou mesmo é preocupado comigo. Queria dizer isso só no seu ouvido, sem que meus vizinhos tripudiassem sobre isso, mas não tem jeito. Vou desabafar. É o seguinte: São Caetano é uma maravilha na boca de todo mundo, mas só eu e Deus sabemos o quanto perco de sono só de imaginar duas possíveis catástrofes que podem se abater sobre mim.
-- Não diga, São Caetano. Jamais imaginei que você fosse capaz de perder o sono. Afinal, é um Município consolidado do ponto de vista urbano, não tem favelas, não tem miséria, não tem MST e tudo aquilo que a gente conhece de grandes e médias cidades. Não tem nem mesmo uma réplica do World Trade Center para o Osama Bin Laden derrubar.
-- Ah, maravilhosa São Paulo!, o meu problema não é o que não tenho. É o que tenho. Tenho a General Motors e a Casas Bahia. Se ficar sem as duas, danço bonito. A GM garante parte substancial do meu ICMS, que reverte em arrecadação tributária, em obras, em salários do funcionalismo. A Casas Bahia sustenta o sucesso do esporte. Qualquer coisa diferente que acontecer com uma ou com outra, caio do cavalo.)
REDES DISPERSIVAS
Entretanto, porém e todavia, em termos de regionalidade, prevejo o pior. Seremos cada vez menos o que somos e o que somos é muito menos do que já fomos sem ter sido um exemplo de integração social.
Aliás, isso já está presente no presente que, ao virar futuro, e sempre vira futuro, deixará um rastro de certa homogeneidade depreciativa em forma de um Complexo de Gata Borralheira ainda mais pronunciado. Tratarei disso também em outro texto.
Mas nem por isso deixaria de dar um exemplo de imediato: cada vez mais as redes sociais jogam os eleitores da região na barafunda da política nacional, concentrando a maioria das participações e intervenções populares.
A gestão pública municipal da região, segregada em nichos controlados por grupos organizados especificamente para isso, está inteiramente controlada por forças especificas.
A democracia do contraditório é escassa. Valentões locais se manifestam nas disputas estadual e nacional, mas silenciam ante situações análogas no âmbito municipal e regional. Inclusive porque há choques constrangedores, nos quais heróis e vilões se confundem em papeis trocados.
As redes sociais refletem a sociedade regional em que prevalece o alheamento deliberado ou mesmo ignorante, no sentido literal, do ambiente municipal e regional.
Segue o texto que escrevi em agosto de 2001, ou seja, há 23 anos, alguns meses antes de escrever Complexo de Gata Borralheira em forma de livro:
Caso freudiano, não
para marqueteiros
DANIEL LIMA - 14/08/2001
O Grande ABC sofre de dupla esquizofrenia cultural. Rejeita a si próprio, num sentimento paroquial de explicação sociológica nada complicada, e quer que o valorizem, algo que também tem fácil explicação sociológica.
Recente pesquisa anunciada pela Agência de Desenvolvimento Econômico a propósito dos serviços industriais na região confirma o que há muito LivreMercado batizou de Complexo de Gata Borralheira, expressão metafórica criada para sintetizar a sobreposição que permeia a realidade histórica local.
Queremos que outras regiões nos respeitem, sobretudo os paulistanos tão próximos, mas insistimos em nos subestimar. Ou, numa tentativa caricata de tornar a emenda pior que o soneto, partimos para um bairrismo artificializado para tentar mudar um quadro sistêmico.
A pesquisa da Agência aponta que os empreendedores da área de serviços industriais querem campanhas de marketing tanto internas quanto externas para valorização do Grande ABC. Não há nada de surpreendente na constatação porque, até prova em contrário, a quase totalidade dos entrevistados mora e vive na região.
Se o universo da pesquisa for ampliado, o resultado será o mesmo porque não há como mudar os fatos. Somos, decididamente, uma região que sofre do complexo de inferioridade pela proximidade com a Capital, mais rica e exuberante. Achamos isso internamente. E nos acham isso, externamente.
Se a patologia é velha conhecida -- e não seria essa pesquisa que a contrariaria --, o perigo está na terapêutica. Não faltam experimentos desastrosos que entornaram ainda mais o caldo cultural de subserviência psicológica à Capital.
Toda vez que se lança qualquer proposta de valorização da imagem da região, o bom senso corre o risco de ser assassinado em nome do Complexo de Gata Borralheira. O tratamento é mais perigoso ainda quando surgem oportunistas que desconhecem o histórico de ocupação social da região, mas não medem esforços para agradar a plateia com ações e discursos evasivos, sempre recheados de palavras mágicas.
CAPITAL MELHOR
São tantos os exemplos que fundamentam o caráter suburbano do Grande ABC que talvez se torne perda de tempo relacioná-los. Em pequenos gestos, em ações aparentemente pouco importantes, está lá escancarado um certo ranço de pertencer ou não à região.
Formaturas de colegiais? A maioria opta pela Capital. Não adianta argumentar com preços mais vantajosos oferecidos pelos clubes locais. São Paulo dá status. Agência de publicidade? Da Capital, é claro. Mídia impressa? É difícil convencer o leitor do Grande ABC de que o esvaziamento industrial é algo tão certo quanto dois e dois são quatro se um veículo qualquer da Capital, mal informado quase sempre sobre a região, escrever o contrário. Produtos sofisticados na região? Bobagem. Os da Capital são melhores. E os produtos populares também.
É por essa e outras que paulistanos que vêm até o Grande ABC geralmente arrebitam o nariz com olhar e gestos de delegados de polícia incomodados por mais uma ocorrência envolvendo miseráveis. Não faltam, com isso, charlatães que se locupletam por determinado período porque exibem credenciais paulistanas com a mesma força de uma ISO 9000.
São constrangedores os casos de empresas que se deixaram cair no canto de sereias engravatadas, polidas, paulistanas da gema, deixando de lado profissionais locais menos emplumados. Ou mesmo de profissionais da região que, por terem passado pela lavagem cerebral da Capital, voltam como heróis.
A vocação de subordinação à Capital está entranhada no Grande ABC. Só não é mais insidiosa do que as tentativas canhestras de quem procura combatê-la com balas de festim do aventureirismo, do messianismo e, principalmente, do proselitismo servil.
Não se trata de tarefa simples transplantar medidas de marketing confiáveis e sábias que reposicionem a autoestima regional num amplo compartimento, com flexibilidade suficiente para readequações pontuais ancoradas em estratégia que tenha a responsabilidade social como manto sagrado. Somos um caso para Freud, não para marqueteiros.
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