Qual é a melhor maneira de distribuir a principal fonte de arrecadação dos municípios paulistas, o ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços)? Como superar o modelo atual, que atribui peso rarefeito ao elemento humano na definição dos valores transferidos, em contraposição à ênfase da produção industrial que gera Valor Adicionado e incentiva a guerra fiscal?
A mudança na legislação do ICMS é proposta lançada por LivreMercado há mais de um ano. Recentemente, encontrou apoio de especialistas tanto na esfera governamental, caso do xerife da arrecadação paulista, Clóvis Panzarini, como de consultorias privadas e deputados estaduais e federais. Mas há uma alternativa anunciada como capaz de encurtar o caminho rumo à reparação desse mal que causa desequilíbrios socioeconômicos sistêmicos — a reforma tributária que patina há seis anos no Congresso Nacional.
Quem defende a reforma tributária como instrumento com dom de reorganizar a distribuição do ICMS e acabar com a fratricida guerra fiscal entre Estados e mesmo entre municípios é o secretário de Economia e Planejamento de São Paulo, André Franco Montoro Filho. “Se há algo dentro da reforma tributária que está caminhando bem e deverá ser resolvido é a questão do ICMS” — afirma Montoro Filho. “A receita do ICMS terá base de cálculo mais ampla que a atual e será atribuída ao Estado de destino do consumo, não mais ao Estado produtor. Com isso, alterará significativamente a composição de receitas dos grandes municípios, os mais prejudicados pela legislação atual” — afirma o executivo do governo Mário Covas.
O raciocínio de Montoro Filho sobre a mudança no ICMS ser contemplada pelo Congresso Nacional não é desproposital, embora recomende contenção do entusiasmo não só por causa do prazo para efetivação, que depende de intrincadíssimo xadrez político, como também da aplicação prática.
Fator destino
Está certo que o governo federal decidiu deixar o ICMS apenas para os Estados. O texto da reforma tributária aprovado pela comissão da Câmara Federal prevê um ICMS estadual e outro federal. O federal agregaria o atual IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), que incidiria sobre produtos e serviços selecionados e cuja lista será estabelecida em lei complementar.
O ICMS estadual continuará sob competência dos Estados, mas terá legislação unificada. Cada Estado estabelecerá as regras do ICMS com base em critérios fixados em lei complementar. A gestão do ICMS da reforma tributária vai exigir um fundo administrado em conjunto entre representantes dos Estados e do Distrito Federal exatamente porque vai prevalecer — para efeito de recolhimento do imposto — o fator destino e não mais de produção.
Se tudo isso ganhar a agilidade que a situação exige e for mesmo transformado em nova legislação, Paulínia será o símbolo dos municípios enviesadamente beneficiados e que vai perder as benesses da legislação atual que lhe confere liderança absoluta na receita per capita do ICMS.
Paulínia tem apenas 41 mil habitantes, mas com economia fortemente centrada em setores químico e petroquímico, de baixa ocupação de mão-de-obra, beneficia-se da legislação atual com o maior índice per capita do Estado. Afinal, 76% de todo o volume do ICMS destinado pelo Estado de São Paulo aos municípios paulistas deriva do Valor Adicionado. E Valor Adicionado é fortemente o resultado da indústria de transformação.
Um exemplo: a nafta que é a principal matéria-prima da indústria petroquímica de primeira geração, caso da Petroquímica União no ABC Paulista, é transformada em múltipla cadeia de subprodutos químicos por empresas de segunda geração até que, já no ponto terminal do processo, nas indústrias de terceira geração, vira uma infinidade de produtos. Pára-choque de veículo é um entre tantos. Essa cadeia produtiva gera Valor Adicionado sequencial que se reflete nos valores de arrecadação do ICMS no território onde ocorreu a transformação.
Sistema desastroso
Como a Constituição Federal exige que 25% dos valores recolhidos em forma de ICMS pelos Estados sejam distribuídos aos municípios e desse total três-quartos sejam definidos por meio do Valor Adicionado, o que se tem como resultado é o privilégio ao fator produção em detrimento do aspecto população, cujo peso ponderável é de apenas 4%.
Um exemplo prático da legislação: de cada R$ 100 que o Estado de São Paulo arrecada com ICMS, são devolvidos R$ 25 para os municípios. Essa subdivisão obedece a proporcionalidade que tem a escala de 76% de acordo com o Valor Adicionado, 4% pelo número de habitantes e o restante tendo uma parcela fixa de 2% para cada Município e percentuais para áreas inundáveis, áreas agricultáveis e arrecadação própria.
O resultado dessa equação é desastroso. Tão desastroso que Clóvis Panzarini, coordenador da arrecadação tributária do Estado, afirmou recentemente que não tem mais sentido privilegiar máquinas em vez de homens.
Exemplo bastante emblemático da deformidade gerada pela legislação atual envolve Paulínia, na Grande Campinas, e Santo André, no ABC Paulista. O Índice de Participação de Paulínia no bolo de distribuição do ICMS paulista é de 2,38% para o próximo ano, o que significa 0,5881% para cada 10 mil habitantes. Paulínia sedia a maior refinaria da Petrobrás no Brasil e tem 22,3 vezes mais ICMS per capita do que Santo André, que soma 616 mil habitantes e tem Índice de Participação de 2,61%.
Nos últimos 24 anos Santo André tornou-se o Município paulista mais duramente sangrado pela queda de arrecadação. Foram-se para o ralo da desindustrialização 65,74% dos valores recolhidos em ICMS em 1976. Atingida pela guerra fiscal, a ex-capital econômica do ABC Paulista registra arrecadação per capita de ICMS de 0,0263% para 10 mil habitantes. Enquanto boa parte do poderio econômico de Santo André esvaiu-se e hoje só os números absolutos a mantêm entre as 10 maiores do Estado, sobrou o ônus social de um das cinco maiores populações de São Paulo.
Gente demais
Santo André tem gente demais porque a base de sua economia, como da maioria dos grandes municípios paulistas, se deu sobre a fortaleza da indústria de transformação, que incorpora muitos trabalhadores nas linhas de produção. Com a desindustrialização, sobraram levas de desempregados e subempregados que pesam sobremaneira nos custos da infra-estrutura social que a Prefeitura é exigida a oferecer. Também as indústrias que sobraram demitiram para valer para ajustar-se à competitividade da globalização dos negócios.
Santo André e Paulínia são protagonistas de uma corrida desenfreada na tabela de Índice de Participação do ICMS. Em 1976, portanto há 24 anos, Santo André desfrutava de 4,70% de toda a receita de ICMS do bolo repartido pelo governo do Estado. Era muito dinheiro, consequente de sua pujança industrial de massa que atraia grossas camadas de migrantes.
Paulínia, ainda sem o complexo químico/petroquímico, detinha 0,27% de participação no ICMS em 1976.
Daí em diante a situação se inverteu: enquanto Paulínia acumulava saltos atrás de saltos sem comprometer-se pela densidade demográfica, Santo André registrava mergulhos sobre mergulhos no ranking dos maiores.
O caso envolvendo Paulínia e Santo André não é exceção no quadro comparativo entre municípios paulistas. Tanto que o secretário estadual André Franco Montoro Filho embala a expectativa de quem luta e torce por mudanças nos critérios. De forma geral, todos os municípios que reúnem mais de 150 mil habitantes estão cada vez mais próximos da linha de tiro da ameaça ao desenvolvimento sustentado.
Cada morador de Campinas recebe 17,3 vezes menos que cada morador de Paulínia. Taubaté (15,2 vezes), Jundiaí (11,4 vezes) e Ribeirão Preto (22,6 vezes) são outros exemplos de extensa lista. Outras cidades beneficiadas pela legislação que praticamente desconsidera o peso populacional são as pequenas Luiz Antonio, São Sebastião, Cubatão e Ilha Solteira. Todas com menos de 100 mil habitantes cada, além de Barueri, com 130 mil.
Políticos inoperantes
A aberração que regulamenta a distribuição do ICMS há muito tempo teria sido eliminada se os Executivos e os Legislativos não ficassem tão atavicamente presos a artimanhas políticas que negligenciam os efeitos dos destinos dos tributos recolhidos pela União, pelos Estados e municípios. Invariavelmente, os responsáveis pela administração pública não só se omitem como desfrutam das brechas legais que criaram quasímodos como a guerra fiscal.
O secretário estadual André Franco Montoro Filho prefere não incursionar por caminhos políticos para combater o resultado final desse mostrengo que transformou o Brasil num emaranhado de distorções econômicas e sociais. Montoro Filho opta pelo aspecto positivo e claramente otimista de que a guerra fiscal está com os dias contados. “O que falta para acertar a reforma tributária, principalmente com relação ao ICMS, nos dá a certeza de que a guerra fiscal vai acabar” — anima-se.
É o que realmente deve acontecer. Até porque não há como sustentar um modelo que se esgotou. Ou não é verdade que a guerra fiscal chegou ao paroxismo de voltar-se contra seus próprios criadores, com a constatação de que a disputa se tornou nefasta para os cofres públicos? Guerra fiscal virou proselitismo político, peça do enxadrismo eleitoral. Mas não há mais como manter-se diante das fundas restrições determinadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, a cujos políticos transgressores estão previstas penas que vão da prisão pura e simples à perda de mandato.
Entretanto, os efeitos destrutivos da guerra fiscal ainda vão prolongar-se por estimados 15 anos pós-aprovação da reforma fiscal. A exemplo de vazamentos de usinas nucleares, como a de Chernobyl na antiga União Soviética, as medidas tomadas imediatamente após a anormalidade eliminam avarias técnicas, mas não impedem a propagação de rastros de contaminação.
O caso da guerra fiscal à brasileira é assim também. Para acabar com a disputa desigual por investimentos produtivos, na qual se oferecem pacotes de vantagens que investidores e empresários não pestanejam em aceitar porque correm contra o relógio da exclusão empresarial num mundo de negócios globalizados, a expectativa é de que serão necessários 15 anos, a partir da data de promulgação da emenda constitucional que instituir a reforma. Afinal, as vantagens oferecidas e que se traduziram em novas fábricas não poderão ser simplesmente varridas do mapa por decreto. As regras do jogo, mesmo que de um jogo em que se contam mais gols contra do que a favor, não podem ser desrespeitadas.
Redução paulista
Os efeitos da guerra fiscal reduziram a participação do PIB industrial do Estado de São Paulo, mas mesmo assim lidera o ranking nacional com 38,5%, segundo dados da Confederação Nacional da Indústria relativos a 1995. O secretário Montoro Filho prefere minimizar as perdas. Lembra que a partir do marco zero da Praça da Sé, num raio de 100 quilômetros, instalaram-se os novos pólos industriais do Estado. Ele considera positivo para a melhoria da qualidade de vida na Capital e seu entorno metropolitano o que chama de desconcentração concentrada.
O problema – e o secretário estadual reconhece isso — é o cinturão de pobreza que cerca a Grande São Paulo. “Por isso a alteração na legislação do ICMS, que substitui a cobrança do tributo na origem de produção pelo destino do consumo, certamente mudará essa relação. E os municípios mais populosos poderão dispor de mais recursos” — afirma. Montoro Filho faz questão de sublinhar que não se lançou a produzir simulações aritméticas para assegurar um novo perfil de distribuição do ICMS. Mas a simples reversão da ponderável de definição de valores a ser repassados, trocando o aspecto produtivo pelo demográfico, enseja interpretação nesse sentido.
Os efeitos da reforma tributária sobre a economia de São Paulo interessam não só porque poderiam reordenar políticas públicas do governo paulista como também eliminariam o açodamento interestadual. A guerra fiscal entre municípios do mesmo Estado não incomodou jamais o governo estadual nas mais diferentes gestões porque não atingiu seus cofres.
O custo das transferências intraestaduais das indústrias tornou-se passivo dos municípios abatidos pela pregação de descentralização incentivada pela própria política de investimentos do Estado. Mas a guerra fiscal interestadual é uma pedra no sapato do governador Mário Covas. A fábrica que a Ford constrói na Bahia marca um dos entreveros de Covas com o governo federal e caciques estaduais.
Sedução pura
A utilização de alíquotas do ICMS é o ferramental estratégico de sedução. Quando usada internamente no Estado de São Paulo pelos municípios envolvidos na estratégia de atração de empresas em nada afeta os cofres do governo estadual, porque os recursos são originários das parcelas municipais. Mas em âmbito nacional, como São Paulo perde sistematicamente a guerra fiscal porque já tem parque produtivo consolidado, não é difícil entender por que o governador Mário Covas aceitou o acordo que coloca fim às operações interestaduais, mesmo com avaliado prejuízo de R$ 4,3 bilhões.
Com a mudança na cobrança do ICMS, os incentivos deixariam de existir porque todas as empresas teriam de recolher o ICMS no Estado para o qual vendem seus produtos. Daí a necessidade do período de 15 anos de transposição de um modelo antigo para um novo. Embora defenda a aprovação de nova regulamentação para o ICMS, o secretário Franco Montoro Filho reconhece as razões de o governador Mário Covas estrilar.
A lógica da nova legislação é prejudicial a São Paulo em três pontos, segundo analistas especializados em tributação. O primeiro é a composição do fundo que será utilizado para tornar viável o princípio de destino do ICMS. O segundo ponto é o prazo de 15 anos previsto para que as empresas continuem usufruindo dos benefícios fiscais que receberam dos Estados que patrocinaram investimentos inseridos no critério de guerra fiscal.
O terceiro ponto é o fim da alíquota seletiva do ICMS.
A projeção de especialistas é de que apenas sete anos depois que a reforma tributária for aprovada o Estado consumidor ficará com toda a receita de ICMS cobrado da mercadoria originária de outro Estado. O quadro hoje é diferente porque o Estado produtor fica com parte da receita do ICMS das mercadorias que exporta aos outros Estados. Isto é: o sistema atual mescla o princípio da origem e do destino.
O problema é que o Estado produtor é que continuará arrecadando o ICMS, porque a tributação se dá na saída da mercadoria. Para resolver o problema da transferência da receita para o Estado consumidor, os representantes da Comissão Tripartite — constituída por membros do governo federal, da Câmara Federal e dos governos estaduais — idealizaram um fundo de compensação que seria administrado pelos Estados para partilhar o ICMS das operações interestaduais entre os Estados importadores líquidos.
A irritação de Mário Covas acentuou-se quando foi derrotado na proposta de constituição do fundo apenas pelas receitas das exportações líquidas — a diferença entre o que o Estado exporta e o que importa. Prevaleceu o chamado fundão, isto é, todas as receitas provenientes da arrecadação do ICMS. A decisão do Ministério da Fazenda causou surpresa. O chamado fundinho proposto por Covas parecia ter destino diferente para quem acompanhou as negociações de bastidores.
Quanto ao desagrado de São Paulo pela eliminação da alíquota seletiva do ICMS, a explicação é simples. A proposta paulista estabelecia alíquota padrão igual ou superior a 15%; uma ampliada de 18%; uma reduzida de 12%; uma especial de 4%; e uma última seletiva de 25,5%. O governo federal acabou com a alíquota seletiva e não especificou os percentuais das demais.
Enquanto a reforma tributária foi interrompida antes das eleições de outubro e tem a reabertura de negociações programada para o começo de 2001, o governo federal continuará fazendo ajustes nos chamados tópicos infraconstitucionais, que dispensam interferência política.
Pragmático, o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, disse logo depois da derrota do projeto do governo na Câmara dos Deputados, em agosto último: “O governo não perde nada com a paralisação da reforma, pois a reforma vem sendo feita”. E haja pragmatismo nas decisões. Em janeiro de 1995, quando Maciel assumiu a Secretaria da Receita Federal, a arrecadação de impostos e tributos somava R$ 62 bilhões anuais. Quatro anos mais tarde a arrecadação saltou para R$ 155 bilhões. “Não foi o leão que ficou mais voraz” — diz Maciel. “Melhorou a eficiência arrecadatória pelo sistema de fiscalização e pelas mudanças da legislação”.
Estudo crítico
A interpretação arrecadatória de Everardo Maciel conflita com estudo da Secretaria Fiscal do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) que mostra que, desde o início do Plano Real, a carga tributária sobre a venda de mercadorias estabilizou-se num patamar entre 25% e 30%, enquanto a participação do ICMS e do IPI nesse total — os dois de Valor Adicionado — caiu de 63% para 58%. No mesmo período, PIS, Pasep, Cofins e IPMF/CPMF — todos cumulativos — aumentaram a participação de 37% para 42%.
Isso quer dizer que a composição dos preços dos produtos brasileiros está mudando para pior. Os impostos cumulativos — que são cobrados sobre o valor total a cada vez que a venda acontece, ou seja, em cascata — vêm crescendo em participação no total de tributos embutidos nas vendas. Enquanto isso, os produtos de Valor Adicionado — que incidem apenas sobre as diferenças de preços — vêm caindo. Conclusão do estudo do BNDES: paga-se hoje mais impostos que têm efeitos nocivos à competitividade.
O trabalho do BNDES conclui que além de diminuir a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional, o aumento da participação dos impostos cumulativos nas vendas também anda no sentido contrário do princípio da descentralização da receita tributária, porque nenhum é compartilhado com os Estados e municípios.
Exemplo que evidencia essa distorção é que a arrecadação tributária brasileira entre maio de 1999 e abril de 2000 cresceu 24% em relação aos mesmos meses dos anos de 1994 e 1995. A receita da União no período saltou 29%, enquanto a dos Estados subiu 12%. Não há números sobre a participação dos municípios nesse volume de acréscimo da carga tributária.
Primos pobres na hierarquia da administração pública do País, aos municípios sobra volume cada vez maior de obrigações que a União paquidérmica não consegue atender. A solução, que se está tornando sistemática e que deverá massificar-se com os temores que a Lei de Responsabilidade Fiscal evoca, é de aumento da carga tributária sob os cuidados dos municípios. IPTU, ISS, água, saneamento e tantos outros serviços municipais são prioridade de reajuste de valores de muitos gestores públicos de grandes municípios que cansaram de esperar pela reestruturação do ICMS.
Resta aguardar que a previsão do secretário Montoro Filho sobre a reforma do ICMS e consequente reforço aos cofres dos grandes municípios não entre no terreno da torcida. Quando se torce, tudo pode acontecer. Inclusive o desapontamento.
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