Leio uma nota na edição digital do ABCD Maior que Mamãe Clory vai ser sepultada nesta terça-feira. Seu corpo está sendo velado na Câmara Legislativa de São Bernardo. Mamãe Clory morreu aos 94 anos. Uma vida de solidariedade completa. Mamãe Clory foi uma das personagens da Reportagem de Capa que programamos e a jornalista Vanilda de Oliveira construiu com sensibilidade na edição de março de 2001 da revista LivreMercado, a qual dirigi por duas décadas. Nascia ali a expressão "Nossas Madres Terezas", que cunhei num desses rompantes de sinapses estimuladas pela corrida diária.
Foi um choque para os leitores daquela publicação, supostamente voltada apenas para economia e negócios, elevar à condição de Reportagem de Capa aquela uma dezena de mulheres que atuavam anonimamente nas periferias da Província do Grande ABC. Mais ainda porque "Nossas Madres Terezas" explicitava uma intimidade aparentemente abusiva em relação àquela extraordinária albanesa naturalizada indiana.
Madres Terezas minimizavam e minimizam as chagas sociais com desmedidas intervenções, carinho e paixão. Algo que socialites fingem que patrocinam apenas para enganar o distinto público. E sempre contam com a falsa e bajulativa luminosidade das colunas sociais sob encomenda.
Criamos Nossas Madres Terezas naquela Reportagem de Capa histórica. Mais que isso: esse mesmo jornalista teve a iniciativa de, em setembro daquele mesmo 2001, criar a categoria "Nossas Madres Terezas" dentro do Prêmio Desempenho Empresarial.
Noite de choques
Foi um choque para os mil convidados que lotaram o Tênis Clube de Santo André aquela noite de homenagem às Madres Terezas. Ao som de "Gracias a La Vida", de Mercedes Soza, aquelas mulheres com alma de missionárias subiram ao palco. Foi uma das maiores emoções de minha vida.
Emoção também porque rompia um tratado elitista de que só os poderosos deveriam fazer jus a alguma premiação. Aliás, o Prêmio Desempenho já cometera esse abuso, porque foi concebido principalmente para contemplar pequenos e médios negócios, instituições e agentes sociais sem que qualquer homenagem, ao contrário de tantos outros eventos, custasse contrapartidas financeiras.
Emoção também por ver tanta tensão. O Tênis Clube, templo da classe conservadora de Santo André, ardia em emotividade. O ambiente mudou completamente com a apresentação de Nossas Madres Terezas e as imagens que os telões ofereciam aos convidados do dia a dia de atendimento em grande escala ignorado pelos poderes públicos. A desigualdade e a exclusão sociais estavam ali, em carne e osso, e também nas imagens. Não havia como duvidar da realidade que a classe média geralmente esquece.
Não sei se outras Madres Terezas daquele primeiro grupo (novas Madres foram descobertas e chegamos a quase uma centena delas até a última edição do Prêmio Desempenho coordenada por mim) também já se foram, porque a mídia com obrigação diária de levar informação aos leitores preocupa-se muito mais com celebridades.
Só sei que ao ler o ABCD Maior sobre a morte de Mamãe Clory senti uma dor no peito, uma tristeza de verdade. Morria ali uma parte de um projeto editorial revolucionário. Talvez morrer não seja o termo correto. Sofria ali, o projeto editorial, uma baixa considerável. O que dizer então do impacto social daquele adeus para a comunidade beneficiada pela liderança de Mamãe Clory?
Antítese dos espertalhões
Como o ciclo da vida é inexorável, fica a certeza de que Mamãe Clory jamais morrerá de fato, porque as lições que deixou são de uma grandiosidade que, entre outras consequências, mostra o quanto temos de espertalhões na praça a propagar iniciativas assistenciais que não passam de truques para lustrar o ego e a imagem, quando não a esconder malabarismos negociais e institucionais.
Quando naquelas edições do Prêmio Desempenho dizia aos representantes da Imprensa que deveriam tratar de propagar os trabalhos de Nossas Madres Terezas, de divulgar os exemplos que emanavam de seus microterritórios de dedicação humana, poucos me ouviam. Era mais cômodo entrevistar medalhões de sempre que geralmente pouco produzem, embora tenham condições de muito produzirem.
Uma pena que a maioria jamais vai entender o legado de Mamãe Clory, aqueles olhos miúdos, aqueles cabelos brancos, aquele corpinho a movimentar-se lentamente entre os convidados do Prêmio Desempenho, aquela ternura no semblante de quem tinha a convicção de que viera a este mundo para servir, servir e servir como diligente discípula daquela mitificadora indiana homenageada com a transposição de uma identidade pessoal que virou marca que dispensa adjetivações.
Como valeu ter vivido as emoções de, a cada edição de LivreMercado, apresentar o perfil de uma nova integrante dessa verdadeira seleção de solidariedade. Uma satisfação tão compensadora quanto desmascarar os espertalhões de sempre, repassadores de migalhas de receitas muitas vezes de fontes mais que suspeitas.
A bem da verdade e dos fatos, entre as poucas exceções daqueles empreendedores que se solidarizaram com Nossas Madres Terezas e que foi a campo para dotar as entidades de lastro material e organizacional, destaco Antonio José Monte, presidente da Coop. A generosidade de Monte chegava aos limites da obsessão. A Coop amarrou-se tanto às Madres Terezas não só descobertas por LivreMercado que passou a integrá-las no plano estratégico social ao qual destina recursos financeiros previstos no orçamento anual.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!