Três acontecimentos aparentemente isolados e que tiveram desenlace em julho mostram a nova cara do Grande ABC que nem todos ainda se deram conta. O que haveria de comum entre o sustentado apoio popular ao Santo André no Campeonato da Segunda Divisão de Profissionais, o suicídio do presidente da Câmara Municipal de São Bernardo e o encontro que culminou com a formulação das propostas prioritárias da Câmara Regional? Esse conjunto pode ser resumido numa única palavra de conteúdo tão elástico quanto regenerador: cidadania.
A torcida que voltou a despertar interesse pelas cores do Santo André tem relação estreita com os agentes sociais, políticos e econômicos que motivaram a formação da Câmara Regional e suas iniciativas, bem como eleitores e contribuintes que cobram cada vez mais lisura dos homens públicos, entre os quais, infelizmente, poucos têm a dignidade moral e ética do vereador Kiyoshi Tanaka, que se enforcou depois de tantas pressões de seus pares.
A nova realidade imposta pelo Plano Real, em que a classe média perdeu as benesses do mercado financeiro que lhe repunha o poder de consumo e os menos abastados passaram a usufruir com certo alívio da estabilidade da moeda, acabou com o show de relaxamento.
Agora, quem não suar a camisa não come o pão. Adeus férias prolongadas. Adeus deserção regional rumo a Capital. Até porque, depois de série de investimentos no comércio e em serviços, a região reduziu bastante o fluxo de consumidores além fronteiras, oferecendo aqui opções mais atraentes em forma de shoppings, supermercados e franquias de primeira linha, mexendo com os brios, os bolsos e a imaginação dos empreendedores locais que não tinham vocação para virar estatística.
Resultado: mais inter-relacionamentos pessoais se adensaram por aqui. Aí se deram explosões comunitárias. Quantas choperias e lanchonetes de frequentadores assíduos contabiliza hoje a região? Um monte. Dá até a impressão de que ninguém trabalha no dia seguinte. E discotecas? E bordéis? Tudo isso gera relações diversas, múltiplas. Fermenta identidade que andava desgastada e desgarrada. Os clubes esportivos nunca tiveram tanta frequência como nos últimos anos. Revitalizaram-se as festas de época.
A drástica redução do emprego industrial, de enclausuramento e de engajamento político-trabalhista que permeou a vida nas empresas durante muitos anos, acabou substituída pelo emprego em serviços e comércio, em terceirização, em abertura de negócios formais e informais e também em desemprego. O operário e o executivo enjaulados de antigamente viraram o trabalhador, o empreendedor ou o desempregado andarilho de agora.
Eles vivem mais intensamente a região. Fugiram da prisão do chão de fábrica. Começaram a virar cidadãos, descartando a síndrome de simples número de macacão ou de insensível engravatado de gabinete. Como cidadão, exige mais na política, participa mais no social, integra-se mais no esporte, consome mais serviços e produtos.
A mensagem das arquibancadas lotadas nos jogos de um Santo André que se manteve na disputa do Acesso até a última rodada, do concorrido adeus ao vereador Tanaka e do lotado auditório da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo, é inequivocamente a mesma: os dirigentes esportivos, os legisladores e as administrações públicas da região, entre outros segmentos da sociedade, devem estar sintonizados aos novos tempos.
Quem entender que, por força de inércia, o Grande ABC sempre guardará relação de consanguinidade comportamental com outras regiões deste País é porque desconhece a própria história regional de vanguardismo.
Ou não é vanguardismo alvissareiro um time da Segunda Divisão levar caudais de torcedores em crescente profusão, apesar da sufocante concorrência televisiva dos grandes espetáculos sempre privilegiados pela mídia?
Ou não é vanguardismo trágico um político reconhecidamente honrado meter uma corrente no pescoço algumas horas depois de sofrer saraivada de balas de oportunismo deslavado de um grupo de parlamentares ávidos por sinecuras?
Ou não é vanguardismo democrático mais de 300 voluntários de perfis ideológicos distintos debruçarem-se sobre os grandes dramas econômicos da região e tecerem um documento que no mínimo lança luzes feéricas sobre a necessidade de debater mais intensamente os caminhos que devem ser trilhados por aqueles que se decidirem a honrar seus postos de comando?
Pois é esse novo Grande ABC que ressurgiu dos gritos nas arquibancadas do Estádio Bruno Daniel, dos lamentos no Cemitério de Vila Euclides e do entusiasmo na Metodista. Azar daqueles que resolverem dar de ombros a esses sinais de transformações, catalogando-os como simples e desconexos fatos.
O narrador Luciano do Valle, da TV Bandeirantes, sentiu na pele e nos ouvidos o Bruno Daniel inteiro reclamar por imparcialidade, ao optar descaradamente pelas vantagens do Matonense. O enterro de Tanaka foi um grito silencioso por moralidade. O documento da Câmara do Grande ABC é mais do que aparente calhamaço de boas intenções; é uma silhueta do compromisso da comunidade que o forjou.
Essa trilogia de cidadania anuncia que, em vez da pirotecnia e da brevidade de um arrastão, tem-se no Grande ABC a suavidade duradoura de uma brisa que anuncia novos tempos.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!