Sociedade

Santo André, ex-Capital de tudo,
hoje Capital da Sem-Vergonhice

DANIEL LIMA - 05/10/2012

Meu amigo Donizeti Raddi, jornalista que honra a profissão e é muito melhor do que a maioria que está por aí ocupando espaços de forma medíocre nas redações igualmente medíocres, tem razão ao me lembrar de que Santo André não é apenas mais, como escrevi ontem, Capital Econômica e Capital Cultural da Província do Grande ABC. Também não é há muito tempo Capital Esportiva. A conversa fluiu de tal maneira ao telefone que não resisti: disse ao amigo, amigo de verdade, desses que cultivo há mais de quatro décadas, a primeira das quais trabalhando juntos na Editoria de Esportes do Diário do Grande ABC, disse a ele, repetindo, que tudo foi substituído pela verdade irretocável de que Santo André virou a Capital Regional da Sem-Vergonhice. É o suprassumo do provincianismo da Província do Grande ABC.

 

Há, evidentemente, uma forte relação entre o que se perdeu e o que adveio. Deixar para um passado de glórias que não volta mais três títulos importantes – Cultural, Esportivo e Econômico – não seria um arranjo que se divorciaria do que foi elevado à condição de barbárie social – no caso o título de sem-vergonhice – porque aquelas três coisas estão fermentadas à coisa consequente.

 

Santo André é uma cidade ressentida, isolada, humilhada, apedrejada, silente, complacente, indecente, permissiva, covarde. Palavras de quem recebeu em 2000 o título de “Cidadão Andreense”, uma das maiores bobagens que já cometi ao aceitar, porque jornalista de verdade não deveria jamais ceder à tentação. Só desculpo a mim mesmo porque o fiz em nome de uma corporação da qual era pequeno acionista e não pretendia dar razão àqueles que pretendiam me execrar se não cumprisse aquela agenda de cordialidade. Pior que receber um título como aquele é aceitar um segundo sem ter, pelo menos, um argumento sequer como explicação.

 

Verniz desaparecido

 

A Santo André que vai às urnas neste domingo para escolher quem vai ser o próximo prefeito, se próximo prefeito houver porque há indicações de que Aidan Ravin poderá permanecer no cargo, a Santo André das urnas é uma Santo André desencantadora. Perdeu a autoestima em três vertentes de visibilidade pública e de enraizamento social indiscutível. O provincianismo perdeu o verniz que a tornava aparentemente moderna. A máscara caiu.

 

A antiga Capital Esportiva virou o que todos podem observar, tanto no futebol profissional como nas modalidades em que nos meus tempos de editor de Esportes do Diário do Grande ABC (cargo no qual tive o prazer de trabalhar com Donizeti Raddi entre outros profissionais éticos e compromissados com a relevância social da atividade) lutávamos para colocar em espaços razoavelmente nobres da primeira página.

 

Sim, era uma luta intensa cavoucar um espaço qualquer para uma chamada de primeira página que contemplasse o fato mais importante do setor esportivo regional a cada edição. Havia na direção executiva de redação do jornal gente que estava preocupada mesmo com as chamadas do Jornal Nacional, gente sem maiores compromissos com a região, gente que vinha da Capital e gozava as delícias de nosso Complexo de Gata Borralheira. Gente que era tratada a pão de ló, enquanto os nativos que se danassem. A direção do Diário do Grande ABC já naqueles tempos considerava os profissionais da casa apenas coadjuvantes, mas a realidade das ruas era outra. A hierarquia corporativa era cega, surda e muda. O jornal era pujante porque os profissionais que assinavam os textos viviam de fato a região.

 

Briga pela vitrine

 

Naqueles tempos em que o Diário do Grande ABC tinha uma inserção social comprovada, até porque a tecnologia da informação não passava de sonhos e experimentos de alguns cientistas malucos, naqueles tempos o Diário fazia a diferença. Uma chamada na vitrine da primeira página de um jogo do Santo André, do mesmo Santo André que virou Saged e flerta com a Quarta Divisão do Campeonato Brasileiro, fazia a diferença popular no Estádio Bruno Daniel. Tínhamos tanta experiência que até projetávamos o total de torcedores no estádio, nas arquibancadas cobertas demolidas recentemente pelo prefeito Aidan Ravin, a quem sobrou a herança maldita do despautério de desleixo com um bem público.

 

Inúmeras coberturas de Jogos Abertos do Interior e de competições nacionais e estaduais em várias modalidades passaram por aquela equipe de jornalistas que fazia do dia a dia sacerdócio, sem compensações de banco de horas, sem horas extras, sem nada de adicional salarial para entregar-se à tarefa da informação.

 

Aquela Santo André esportiva foi se aniquilando aos poucos, principalmente a partir do esquartejamento da estrutura mantida pela Pirelli, base dos investimentos e da manutenção de equipes em várias modalidades.

 

O empobrecimento econômico de Santo André, a cada ano solapada pela perda de repasses de ICMS e de debandada de indústrias de pequeno e médio porte, principalmente em direção ao Interior do Estado, numa guerra fiscal ensandecida, encerrou o trabalho destrutivo. Aidan Ravin é o complemento de uma tragédia anunciada. Sobre ele não se pode jogar todo o ônus histórico. Fosse menos medíocre, entretanto, Santo André não estaria ao rés do chão como agora.

 

Portanto, há um imbricamento lógico entre o esvaziamento econômico e o aniquilamento esportivo que levaram Santo André a ficar desfalcada de dois títulos que ostentava numa região com ares de Província, é verdade, porque isso vem da alma, mas que não contava com todos os cromossomos de Província, como nos anos mais recentes, porque além da alma, estamos impregnados pela pequenez geral e irrestrita de atitudes, quando não de conformismo acovardado.

 

Simbolismos do fracasso

 

A perda do título de Capital Cultural também foi um processo lento e gradual. Desapareceram da face de Santo André e da região como um todo aquelas levas de combatentes que contribuíam para o repensar da sociedade. Onde estão os agentes culturais da região; os escritores, principalmente? Santo André era a força motriz de movimentos culturais que se extinguiram. Os escombros do Cine Teatro Carlos Gomes são a versão cultural da derrubada do setor de numeradas do Estádio Bruno Daniel, da mesma forma que a Avenida Industrial de terrenos baldios, de prostituição a céu aberto, sintetiza a viuvez do setor de transformação do produto, gerador de riqueza e de mobilidade social.

 

Ouço de Donizeti Raddi, um andarilho diário na manutenção de uma saúde de ferro, de saúde de professor de Educação Física, que não exagero um pouquinho sequer quando entrego a Santo André o cetro de Capital da Sem-Vergonhice Regional. E quem ousará desmentir ou minimizar a expressão? Apenas e tão somente os mal informados e os prevaricadores de plantão que pretendem manter seus redutos intocáveis.

 

Santo André perdeu a vergonha faz tempo. Deita-se e rola-se impunemente. Os conchavos falam mais alto. Antigos detratores de agremiações partidárias entregam-se de corpo e alma numa suruba de oportunistas. A delinquência denunciada no Semasa é a praxe que a Acisa (Associação Comercial e Industrial) não tem autoridade moral para combater porque mantém no Conselho Superior, instância maior da organização, um quadrilheiro das marmitas escolares condenado pela Justiça.

 

Outras organizações aprofundam e perpetuam contravenções. Como a maioria está no mesmo barco à deriva, porque a cidade está economicamente desgovernada há muitos anos, acaba se juntando para proteger-se. Utilizam-se, para tanto, de todos os expedientes. É claro que não poderia faltar a demonização de quem ousa enfrentá-los ou denunciá-los. A maioria que repudia tudo isso segue em silêncio, a concordar com os poucos que se levantam contra as barbáries corporativas, públicas e institucionais, mas sem força para reagir porque sabe que a artilharia é pesada.

 

Questão de integridade

 

Para completar, e a bem da verdade: a amizade de irmão com Donizeti Raddi é facilmente explicada, e, em contraponto, explica também as rusgas que mantenho com meia dúzia de delinquentes regionais: Donizeti Raddi é ético, é competente, é transparente. Ou seja, tem caráter. Não foi à toa que, em 1982, quando assumi um cargo que na prática equivalia ao de chefe-de-Redação do Diário do Grande ABC, ele ascendeu à Editoria de Esportes.

 

Uma senhora Editoria de Esportes que, diferentemente do que se vê hoje, não transformava um time qualquer, no caso o Saged, em suposto líder da Série A do Campeonato Brasileiro, embora esteja caindo pelas tabelas da Série C. Autonomia e responsabilidade jornalísticas não dependem exclusivamente do dono do veículo de comunicação como alguns sugerem esquadrinhar um modelo hierárquico subserviente. Naqueles tempos essas condições inalienáveis ao bom jornalismo estavam impregnadas naquele grupo de jornalistas que tive a honra de comandar durante mais de uma década, uma década e meia, quase.

 

Donizeti Raddi é profissional meticuloso, detalhista, reflexivo, do qual Redação alguma deveria abrir mão. Até porque, como se sabe, são insumos raros hoje no dia a dia fastfoodiano das redações.



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