O Diário do Grande ABC não toma jeito mesmo: depois de esquecer Celso Daniel na exótica, para não dizer pixotesca, lista de 460 motivos para amar Santo André, decidiu iniciar o que chama de série de reportagens sobre o caos no sistema viário da Província do Grande ABC. E, acredite se quiser: da lista de razões não consta um dos pontos centrais da barafunda da mobilidade urbana -- os mercadores imobiliários que privatizaram as administrações públicas (ou foram capturados pelos administradores públicos parceiros de negócios), deitam e rolam na ocupação e uso do solo e ainda têm a cara de pau de exigirem investimentos públicos para atenuar a gravidade da situação.
Não é novidade alguma mas sempre causa irritação o fato de o Diário do Grande ABC proteger os interesses dos grandes proprietários de terras urbanas, até porque ao longo dos anos os dirigentes daquele jornal tiveram certa preferência de investimentos em cimento e concreto.
Por isso, esperar que nas próximas reportagens -- se podem ser chamadas de reportagens o que se insinuou na edição de hoje -- se colocarão dedos nas feridas dos excessos imobiliários é passar um atestado de ingenuidade. No máximo, no máximo, se farão alguns parágrafos sobre o assunto, com os cuidados extremos de não ferir interesses cristalizados e, mais que isso, assanhadíssimos por novas benesses do setor público.
Fosse o Diário do Grande ABC inovador e carregadíssimo de inquietação social, como insinua mais uma vez o mal elaborado “Editorial” da edição de hoje, o enfoque principal da anunciada série de reportagens sobre as desventuras no trânsito seria uma ação investigativa e esclarecedora que retiraria o seguinte ponto de interrogação de cabeças nada bovinas: como os mercadores imobiliários tomaram conta dos gestores públicos, num conluio mais que conhecido porque lubrifica as engrenagens de campanhas eleitorais e de enriquecimentos mais que suspeitos?
Escândalos em profusão
O escândalo não apurado do Semasa está aí para provar. Mas há uma infinidade de casos que, se levantados, comprovariam que o caldo de cultura de obscuridades da Província do Grande ABC de hoje fermenta a Brasília de escândalos amanhã. O Marco Zero, da MBigucci, comprovadamente delituoso na origem, porque o terreno foi arrebatado numa vergonhosa operação combinada, segue incólume em matéria de punição.
Não é por coincidência que o Diário do Grande ABC inicia a série de matérias lamentando o excesso de veículos no Bairro Jardim, em Santo André, ponto geográfico da sede daquela publicação. Ao longo dos tempos, sempre que se mete a descrever desventuras viárias na região, o Diário do Bairro Jardim começa por ali.
E já que começa por ali, e como o jornal abriu a perspectiva de participação dos leitores (sou assinante do veículo, assim como da Folha, do Estadão, da Exame, da Época, de Carta Capital) que tal um capítulo especial sobre os efeitos danosos provocados, entre outros condomínios habitacionais, pelo Residencial Ventura, construído em terreno contaminado onde se instalou durante sete décadas a indústria química Atlântis? O caso denunciado aqui jamais mereceu uma linha sequer de reportagem do Diário porque o empreendimento foi lançado pelo amigo daquela casa, Sérgio De Nadai?
Seria demais sugerir que se entreviste Sérgio De Nadai para contar como atuou nos bastidores públicos para suprimir todas as arestas legais (ou passar por cima de todas as arestas legais) para levar adiante aquele empreendimento de quase 400 apartamentos, enquanto tanto o prefeito Aidan Ravin como o prefeito Carlos Grana não viabilizaram a liberação do terreno em que a Rhodia se instalou durante anos, ponto em que se pretende construir o Poupatempo de Serviços? E olhem que o terreno da Atlântis carregava passivo ambiental muito mais agressivo.
Residencial Ventura
Sei que sei que o Residencial Ventura acrescentou centenas de veículos ao trânsito do Bairro Jardim que, por sua vez, ao longo dos últimos anos, passou por overdose de empreendimentos imobiliários. Mora ali parte da nata da classe média de Santo André, uma maioria que pouco participa de um processo praticamente inexistente que chamaria de responsabilidade social.
Os mais bem posicionados economicamente de Santo André não estão nem aí com o cheiro da brilhantina do que ocorre no Paço Municipal, centro catalizador e difusor de tudo que é bom e de tudo que é pernicioso na vida dos contribuintes.
Entretanto, grupelhos bem aparelhados dessa classe média mais tradicional tomaram o Paço Municipal de assalto faz tempo. Deitam e rolam nos escaninhos do poder e têm como alvo principal a rentabilidade de cada metro quadrado de terreno disponível, entre outros filões do ambiente burocrático.
Se o Diário do Grande ABC passar pelo trânsito da Província do Grande ABC sem investir algumas edições nas raízes da bagunça generalizada, que é a liberdade para corromper dos mercadores imobiliários, assinará um atestado de covardia, quando não de interesses inconfessos.
A julgar pela primeira matéria, publicada na edição desta sexta-feira, nada virá nas próximas, porque não se fez sequer leve menção a esse que é o núcleo de improdutividades derivadas de perdas dentro de veículos à espera de faróis que demoraram a reagir entre outras razões porque existe uma lógica da física que assegura que dois corpos sólidos não ocupam o mesmo espaço. E tampouco se tem notícia que ruas e avenidas são de borracha, que esticam e encolhem de acordo com o fluxo de veículos.
É claro que as desventuras no trânsito não estão exclusivamente nas extravagâncias mercantilistas de ocupação imobiliária irresponsável nos pontos geográficos mais valorizados da região. Faltam investimentos públicos no sistema viário, com obras e inteligência semafórica, como afirma o jornal em alinhamento claro com especialistas no ramo. Entretanto, e a Capital vizinha é prova disso, podem botar o quanto for de dinheiro em tudo isso, em transporte público, em metrô, em tudo, que o resultado será apenas maquiado, e por pouco tempo: sem um plano de ocupação espacial que acabe com a ganância imobiliária estaremos apenas empurrando a crise de acessibilidade com a barriga da dissimulação.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!