O secretário de Cultura e de várias outras pastas da Administração petista de Santo André, advogado Raimundo Salles, poderia ao menos ter me telefonado. Afinal, temos relacionamento cordial, mesmo com as diferenças e ambições que nos separam. Não custava Raimundo Salles dizer mesmo à distância que estava adotando, em regime de urgência ou algo parecido, o conceito nuclear da proposta que formulei há uma década para dinamizar o Turismo, a Economia e a Cultura de Santo André e da Província do Grande ABC. Uma proposta que, replicada neste CapitalSocial em 23 de maio último sob o titulo “Salles vive paradoxo: é maior que secretaria, mas pode ficar menor”, foi imediatamente capturada.
É verdade que o secretário petista (secretário petista soa estranho a quem fez tanta oposição aos vermelhinhos, mas essa é a realidade dos fatos) não segue o roteiro traçado integralmente por este jornalista, até porque o que expõe de forma rudimentar na edição de hoje do Diário do Grande ABC é apenas um dos pontos viscerais do que produzi.
Talvez o secretário Raimundo Salles esteja preocupado com a possibilidade de dividir os holofotes com este jornalista, o que supostamente aplacaria o pretendido brilho individual. Bobagem. Já não tenho idade e jamais tive pretensões políticas para destravar o senso de equilíbrio que levaria a vaidade a sufocar o juízo e a coerência doutrinária. Minha função é social e por isso mesmo fico muito feliz em ver adotada, mesmo que de forma parcial e apressada, uma sugestão estruturalmente concatenada para jogar luz aonde as trevas e a preguiça públicas dominam.
Muito menos correria qualquer risco o secretário Raimundo Salles se declarasse que a proposta que está nas páginas do Diário do Grande ABC foi inspirada no arrazoado deste jornalista, apresentado, repito, há uma década, e reapresentado mês passado. Não cobrarei direito autoral algum. A função que exerço é de interesse público. Tudo que aqui escrevo não tem fundamentação jurídica que se encaixe como propriedade intelectual formal que leve à judicialização compensatória por uso de terceiros. Mesmo em forma de gambiarras.
O que me chateia no caso é que Raimundo Salles passou aos leitores do Diário do Grande ABC a ideia de que é o inspirador do projeto de descentralização das atividades culturais em Santo André. Não custaria nada dizer – mesmo que o Diário do Grande ABC vetasse o crédito, porque o Diário do Grande ABC não suporta as críticas deste jornalista, preferindo sempre e sempre flertar com os medíocres – que aqueles 24 mil caracteres da proposta assinada há uma década lhe moveram neurônios em direção a algo tão elementar que às vezes me sinto apenas um soldado do óbvio: a disseminação de atividades turistas e culturais deve partir da periferia em direção ao centro como movimento retroalimentador de transformações.
A prova da gambiarra
O caderno de Cultura&Lazer do Diário do Grande ABC de hoje, um caderno que já foi muito mais de cultura do que de lazer, publica a seguinte manchete: “Gestão de compartilhamento”, para expor o programa anunciado pelo secretário Raimundo Salles. Extraio alguns trechos do material que caracteriza uma clonagem empobrecida, mas nem por isso desimportante, sobre a correlação das propostas que formulei no passado e o projeto de Raimundo Salles:
Está decretado desde ontem. Santo André terá Pontos de Cultura Municipais. O projeto, pedido da Secretaria de Cultura, Esporte, Lazer e Turismo da cidade ao prefeito Carlos Grana (PT), obteve aval do chefe do Executivo e passará, nos próximos dias, a cadastrar interessados em participar. (...). Diferentemente do modelo aplicado em esfera federal – no qual a entidade cadastrada recebe semestralmente verba para a realização de suas atividades – os Pontos de Cultura de Santo André terão outras diretrizes de funcionamento: “No processo federal é dado o recurso para as entidades administrarem e prestarem contas. Nesse modelo, em comum acordo com esses pontos, promoveremos atividades nesses locais”, diz o secretário de Cultura Raimundo Salles. “Trata-se de colocar em relevo e apoiar financeiramente as formas de produção cultural que são tratadas por algumas pessoas como coisas de segunda ordem. Esse é um instrumento de fomento principalmente para as áreas de periferia, uma iniciativa de valorização das produções culturais na fonte”, completa Salles. Para o secretário, o projeto traz o conceito de gestão compartilhada, diminuiu a burocracia e aproxima, em rede, sociedade civil e poder público. “O objetivo é estabelecer novos parâmetros de gestão e de democracia. Nós não vamos impor a programação, vamos chamar os grupos para dizerem o que querem ou não nos seus espaços”.
Fragmentos do original
Agora, transfiro aos leitores alguns parágrafos do trabalho que preparei em 2003 e que, repito, foi reproduzido há menos de um mês nesta revista digital:
Financiamento garantido, descentralização de diagnósticos, concentração de decisões, enraizamento popular – eis alguns dos aspectos vitais para a construção de um ambiente de negócios de turismo no Grande ABC que rompa os conservadores paradigmas que cercam a atividade (...). A descentralização de Santo André em macrobairros para a estruturação do marketing voltado a atividades de comércio e de serviços permitiria também que agentes culturais dos respectivos macroespaços passassem a constar numa primeira instância de ações relacionadas à valorização desses locais e, em seguida, revezando-se por todo o Município. Esses agentes contariam, entre outras áreas, com equipamentos públicos e privados. Especialistas no assunto poderiam desfilar dezenas de propostas que conciliariam interesses econômicos e culturais dos macrobairros. Esse entranhamento possibilitaria enriquecer as relações interpessoais e dinamizar os próprios negócios. Afinal, não se podem enquadrar atividades culturais fora do conceito de empreendedorismo. O distanciamento tradicional entre agentes empresariais e agentes culturais no plano de macrocidades apenas reproduz realidade igualmente encrustada nos macrobairros. Ao juntar num mesmo espaço, inicialmente dos macrobairros, atividades aparentemente díspares mas plenamente complementares, o Conselho de Negócios de Turismo possibilitaria a sedimentação de um longo mas vitorioso processo de acasalamento social, com claros reflexos de cidadania. (...). Enfim, o que se projeta é alçar uma Santo André aparentemente cinzenta, como de resto todos os municípios da região, num mosaico multicolorido de diversidade produtiva, comercial e de serviços. Isso seria conjugado com as manifestações culturais típicas de cada pedaço geográfico que, por sua vez, decorre do perfil da ocupação demográfica ao longo dos tempos. Na medida em que os agentes culturais, econômicos e sociais de cada macrobairro se conhecerem de fato por meio da instância integrada ao Conselho de Negócios de Turismo, mais se multiplicarão as possibilidades de os investimentos ganharem forma de racionalidade. Enfim, o que se pretende é que, a partir dos macrobairros, Santo André se conheça melhor internamente para, aí sim, saltar definitivamente para a conquista de consumidores de produtos, serviços e cultura externos.
Artigo chinfrim
Na mesma edição de hoje do Diário do Grande ABC, o secretário Raimundo Salles assina um artigo sob o título “Democratização do acesso à Cultura em Santo André”, que igualmente trata do assunto abordado na reportagem do caderno de Cultura&Lazer. Possivelmente o secretário discorreu com acelerada pressa ou falta de cuidado, porque o texto primário e confuso não tem parentesco com o que se exige de arcabouço intelectual de um representante da área cultural de Santo André. Mas isso não tem tanta importância para o cerne da abordagem de CapitalSocial.
O que este jornalista reitera é a apropriação que seria indébita não fosse naturalmente pública, de uma atividade intelectual que ganhou forma e conteúdo em poucas horas, quando me debrucei sobre o assunto no contexto já explicado em texto anterior, mas que é resultado de décadas de observação atenta da cena regional em múltiplas facetas. Tempos em que Raimundo Salles não estava submetido a amarras e cabrestos políticos e econômicos. Fosse diferente, o secretário petista (possivelmente ele desaprove essa combinação supostamente extravagante de identificação) não teria contido o impulso de ligar a este jornalista para agradecer por mais uma boa ideia.
Mas, insisto, isso pouco interessa, é apenas uma provocação do jornalista para lembrar ao secretário e aos leitores que existe paternidade no agora chamado Ponto de Cultura de Santo André, batismo de marketing que não passaria pelo meu crivo caso Raimundo Salles repetisse gestos do passado e também me ligasse para solicitar uma sugestão de impacto denominativo ao programa público. Tenho mil ideias sobre isso, mas deixa pra lá.
Se Raimundo Salles pretender reatar os diálogos do passado, que já foram mais frequentes e sempre produtivos, basta ligar para este jornalista. Com o compromisso de que não vou lhe devassar a alma para descobrir a razão de omitir o nome do autor do projeto que acaba de lançar. Seria totalmente dispensável. Sei bem por experiência de terceiros o que é ter de manter o burro amarrado exatamente onde exigem aqueles que pautam os passos de quem pretende flexibilizar comportamento em nome de ambições.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!