A sétima edição do boletim Observatório Econômico coloca atores regionais e um visitante em campos opostos em matéria de percepção sobre o Grande ABC. Enquanto o diretor-superintendente da Petroquímica União, Wilson Matsumoto, e o secretário de Desenvolvimento e Ação Regional de Santo André, Jeroen Klink, adotam abordagens responsavelmente ponderadas e cautelosas, o chefe da divisão de Estudos Econômicos da Fundação Seade, Miguel Matteo, apresenta artigo repleto de meias verdades e interpretações equivocadas sobre a dinâmica regional. Com todo respeito merecido pelo representante da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, o texto é um desserviço porque colide com a densa parede de conhecimentos erigida por LivreMercado.
Com a sensatez que lhe é peculiar, Jeroen Klink reconhece o bom momento a bordo das montadoras recordistas de produção, exportações e vendas internas, mas não deixa de apontar a extrema dependência dos ciclos macroeconômicos como perigoso calcanhar-de-aquiles na corrida para o tão sonhado desenvolvimento sustentado.
“Em 2004 tivemos a retomada da economia do País com acréscimo de 5,2% no PIB (Produto Interno Bruto), criação de 17 mil empregos industriais na região e a arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) 4,9% superior no Grande ABC, contra média de 4,65% no Estado e 0,6% do País. Mas não devemos tirar os pés da realidade. Convivemos com grave deficiência sistêmica representada pelo atrelamento aos altos e baixos da macroeconomia. A região precisa desenvolver estratégias próprias para escapar do ciclo brasileiro marcado pelo stop-and-go (andar e parar). Temos o desafio de fazer com que a economia regional se torne endógena, isto é, desenvolva relativa autonomia e fique menos vulnerável a movimentos externos incontroláveis” — ressaltou Jeroen Klink, durante o lançamento da sétima edição do Observatório em meados do mês passado.
Jeroen Klink não detalhou, mas uma das maneiras de combater a arriscada dependência dos choques econômicos é desenvolver matriz alternativa à indústria mais competitiva do mundo, que responde por 70% do PIB regional. A necessidade de encontrar cestos adicionais para os ovos da arrecadação e dos empregos da cadeia automotiva foi exaustivamente discutida em fóruns regionais durante o longo período de baixa na produção e nas vendas do setor. Mas a discussão voltou à penumbra com a retomada da produção de veículos no ano passado.
Entretanto, é imprescindível manter a guarda preparada porque há sinais preocupantes de que pode entrar areia na engrenagem automotiva brasileira. Principalmente por conta do avanço exportador da China e outros países emergentes. O diretor-superintendente da PQU, Wilson Matsumoto, adota postura igualmente cautelosa e complementar à de Jeroen Klink ao sugerir que as instituições regionais encontrem estratégia para internalizar empresas e empregos na esteira da ampliação do Pólo Petroquímico de Capuava.
Expansão lucrativa
O principal executivo da central de matérias-primas lembra que a expansão da capacidade instalada de 500 mil para 700 mil toneladas de eteno por ano proporcionará não mais que 40 empregos na PQU e empresas de segunda geração. Tudo porque os processos do topo da cadeia químico-petroquímica são largamente automatizados. A possibilidade de criação de postos de trabalho em larga escala está nas chamadas empresas de terceira-geração, pequenas e médias transformadoras de resinas em produtos plásticos espalhadas por toda a região, principalmente em Diadema.
Matsumoto sugere que a Agência de Desenvolvimento se debruce sobre a criação de políticas específicas para atrair transformadoras plásticas, de modo que o adicional de matéria-prima projetado pela PQU seja processado em território regional. “Temos de adensar a cadeia de transformação de plástico com a atração de novas empresas” — conclamou o executivo durante o lançamento do boletim. No texto produzido para o Observatório, Matsumoto calcula potencial de geração de 14 mil empregos na ponta da indústria de transformação. Ou, uma Volkswagen de São Bernardo em novos postos de trabalho.
Para que esse sonho audacioso se realize, a região terá de vencer competidores que já estão com espadas desbainhadas na batalha por novos investimentos. “A Copene, na Bahia, e Copesul, no Rio Grande do Sul, atraíram muitas empresas e podem servir de inspiração para o Grande ABC” — sugeriu o executivo da PQU.
Em favor do Grande ABC há o fato de a macrorregião sudeste consumir 70% dos insumos plásticos nacionais. A criação de condomínios industriais específicos para transformadoras plásticas seria ação providencial. Ao ocupar o mesmo espaço especialmente concebido, empresas de terceira geração poderiam conciliar vantagens sinérgicas de contratação de serviços comuns que já representam economia para a PQU e empresas de segunda geração reunidas no Grupo de Sinergia.
Além, disso, a proximidade física aceleraria trocas de experiência que engatilham o mecanismo da inovação, conforme martelado pelo norte-americano Michael Porter em estudos sobre os clusters produtivos — aglomerações sinérgicas de empresas ou simplesmente APLs (Arranjos Produtivos Locais). A peça-chave de um pólo difusor de tecnologia já foi encontrada: a Fundação Santo André se prepara para receber o Ciap (Centro de Informação e Apoio à Tecnologia do Plástico), projetado para atender toda a região.
Bola fora
Na contramão do realismo dos protagonistas regionais, o artigo escrito pelo executivo da Fundação Seade tenta maquiar o duro passado de perdas que transformou o Grande ABC na maior vítima socioeconômica nacional da globalização. Assim como João Batista Pamplona, manipulador de dados estatísticos que esteve por estas plagas até ser defenestrado, Miguel Matteo dá a entender que a desindustrialização provada e comprovada não existiu. E que o saldo negativo da globalização se resumiria à eufemisticamente chamada reestruturação industrial, cujos prejuízos estariam limitados ao desemprego.
São tantas as incoerências e inverdades que vale a pena desnudar alguns trechos. Logo no início do artigo, Matteo escreve: “Desde 1999, com a desvalorização do real, inicia-se período de forte turbulência para a economia nacional, que posteriormente passou pelo racionamento de energia elétrica, pelas instabilidades e incertezas pré-eleitorais de 2002 e pelo aperto fiscal de 2003. Isso fez com que o PIB per capita de São Paulo se mantivesse constante entre 1998 e 2000, para diminuir em 2002 — ano em que o Estado apresentou a mais baixa participação no PIB brasileiro dos últimos 10 anos (32,5%)”.
“A região do Grande ABC, que possui cadeias produtivas fortemente interdependentes, ancoradas no mercado interno, não poderia ficar imune à esse processo recessivo. A participação da indústria de transformação de São Paulo, que em 1996 era de 51% do total nacional, despencou para 46% em 2002. A região do Grande ABC, que em 1996 era responsável por quase 14% do Valor Adicionado estadual, respondia em 2001 por pouco mais de 12%”.
Como é nítido, embora expressado com sutileza, o executivo da Fundação Seade tenta atrelar a queda do VA regional exclusivamente ao processo recessivo que abateu o País como um todo, como se os 39% de VA evaporados durante os oito anos do governo FHC não fossem resultado do aniquilamento da cadeia automotiva entregue às feras internacionais, da debandada industrial rumo ao Interior e a outros Estados e da pulverização de investimentos das montadoras sob a tutela do regime automotivo.
Fatores múltiplos
Seria ingênuo desvincular o ritmo da atividade industrial no Grande ABC da performance do País, mas o fato é que a região também foi atingida por furacão de fatores estruturais que o executivo da Seade surpreendentemente ignora em nome da mera circunstancialidade.
Mais um trecho do artigo: “Se por um lado os reconhecidos problemas decorrentes da ocupação do espaço nas regiões metropolitanas desestimulam a instalação de novas indústrias, sobretudo as de grande porte e as intensivas em mão-de-obra, e inibem a expansão daquelas já instaladas, por outro lado a localização geográfica possibilita fácil acesso entre a capital e os municípios do Grande ABC, por meio dos corredores metropolitanos”.
A primeira metade do parágrafo é realista, porque reconhece alguns dos entraves que emperram a competitividade da região metropolitana. Mas a segunda parte equivale a um atentado à lógica, porque o trânsito caótico nas vias enfartadas entre o Grande ABC e a Capital fornece a maior comprovação da relatividade existente entre proximidade física e acessibilidade logística. O nó górdio da acessibilidade na região metropolitana é uma das principais razões pelas quais o crescimento industrial dos últimos anos foi centralizado em Campinas, Sorocaba e São José dos Campos, áreas que Matteo e outros técnicos e acadêmicos preferem chamar de metrópole expandida. Empresas descobriram que é mais vantajoso atingir o maior pólo de consumo do Brasil a partir de cidades interioranas, mas cruzando boas rodovias, do que estar ao lado da Capital e perder horas no tráfego paralisado.
A existência de corredores metropolitanos — como defende o artigo — em contexto de espera desesperada pelo trecho Sul do Rodoanel soa como piada de mau gosto.
Mais um trecho. “A proximidade com o Porto de Santos cria condições para uma dinâmica econômica voltada ao mercado externo. Além disso, as novas técnicas de produção, particularmente o just-in-time, exigem a proximidade física entre fornecedores e clientes, impedindo que as indústrias que fazem parte da cadeia produtiva automobilística, principal atividade do Grande ABC, afastem-se da região. A diminuição do VA da região está muito mais ligada, portanto, a fatores macroeconômicos conjunturais do que a uma perda da dinâmica industrial regional”.
Sobre a proximidade do Porto de Santos não há o que contestar. Trata-se, de fato, de uma das poucas vantagens comparativas do Grande ABC em relação a outras regiões, e que deveria ser melhor explorada pelos municípios, principalmente São Bernardo e Diadema. Mas a afirmação de que a proximidade física exigida pelo just-in-time serviria de barreira à retirada de fornecedores é de estultice impressionante. Recomenda-se leitura de entrevista concedida por Paulo Buttori na edição de outubro de 2004, na qual o presidente do Sindipeças alerta sobre a necessidade de salvar o Grande ABC de custos de mão-de-obra e pressão sindical que minam a competitividade de pequenas empresas cobradas no mesmo tom das montadoras. São questões que se somam aos custos locacionais, à guerra fiscal e ao déficit de qualidade de vida para explicar a transferência da ZF de São Caetano para Sorocaba, da KS Pistões de Santo André para Nova Odessa, da produção de anéis da Cofap de Mauá para a mineira Itajubá, da Nakaione de Ribeirão Pires para Salto, entre inúmeros exemplos que os sindicalistas que vivem o dia-a-dia da região podem explicar em detalhes. Sem falar das pequenas autopeças varridas pela globalização. As evidências da desindustrialização são tantas que se o executivo insistir na tese de que o VA caiu só por causa da economia nacional, vai fazer jus ao Troféu Pinóquio 2005.
Na sequência Miguel Matteo escreve: “Ainda assim a região não perdeu sua importância como pólo automotivo, uma vez que era responsável em 2001 por 46,4% do VA estadual da atividade de fabricação e montagem de veículos automotores, reboques, e carrocerias (era 46,9% em 1996)”.
O Grande ABC perdeu, e muito, participação na produção de veículos. Na arena restrita do Estado de São Paulo o berço automotivo nacional viu escapar por entre os dedos a hegemonia para o restante do Estado, notadamente o Interior. E não apenas porque a Toyota se instalou em Indaiatuba e a Honda em Sumaré, na região de Campinas. A septuagenária planta da General Motors de São Caetano produziu 164 mil dos 563 mil veículos da marca no ano passado, ou 29%, enquanto a unidade de São José dos Campos montou 263 mil, ou 46%. Quase 100 mil unidades a mais.
Se o campo de análise for ampliado para todo o País, o tombo do Grande ABC é muito maior. Parcela esmagadora dos investimentos em novas plantas automotivas, que totalizaram US$ 26,6 bilhões entre 1994 e 2002, foi destinada a outros Estados. Além das chamadas new-comers, a Volkswagen instalou fábrica na paranaense São José dos Pinhais, onde o compacto Fox é montado, além dos modelos de luxo Golf e Audi; a Ford criou complexo industrial na baiana Camaçarí, que produz o Novo Fiesta e o utilitário esportivo EcoSport; e a GM implantou fábrica do compacto Celta na gaúcha Gravataí, cuja produção atingiu 147 mil, ou 25% do total da marca no ano passado.
A descentralização de montadoras e autopeças em busca de regiões mais econômicas é assunto pisado e repisado, mas cujos efeitos o diretor da Seade parece desconhecer. E estes são apenas alguns trechos do artigo que mereceriam reparos. Ou melhor, reconstruções.
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