Economia

Ilusões que não
resistem a fatos

ANDRE MARCEL DE LIMA - 05/08/2005

Quem não se lembra da brilhante propaganda assinada pela W/Brasil na qual um dos maiores genocidas da história da humanidade, Adolf Hitler, era preliminarmente apresentado como homem de valor inestimável, responsável por feitos que contemplavam da melhoria de indicadores econômicos ao resgate da auto-estima nacional? Pois o alerta popularizado pela propaganda — “É possível transmitir mentiras usando algumas verdades” — emerge automaticamente para quem se aprofunda na Pesquisa de Investimentos no Estado de São Paulo (PIESP) realizada pela Fundação Seade (Fundação Estadual Sistema de Análise de Dados) e publicada na oitava edição do boletim Observatório Econômico, editado pela Secretaria de Desenvolvimento e Ação Regional de Santo André.


 


À primeira vista, os dados colocam o Grande ABC em situação privilegiada. O levantamento aponta que a região contabilizou US$ 13,8 bilhões em anúncios de investimentos privados entre 1996 e 2004, valor correspondente a 25% do total divulgado para a Região Metropolitana de São Paulo e 8% para o Estado. E mais. Dos US$ 13,8 bilhões, US$ 12 bilhões, ou 87% do total — correspondem a investimentos industriais. O caráter supostamente retumbante dos números é tratado com mescla de ufanismo desbragado e insensatez socioeconômica no texto assinado por Miguel Matteo, chefe da Divisão de Estudos Econômicos da Fundação Seade, e pela analista Margarida Kalemkarian. “O resultado contraria um possível processo de desindustrialização que teria afetado o Grande ABC” — escrevem.


 


Por que os dados são apenas supostamente retumbantes? Em primeiro lugar, há enorme diferença entre investimentos anunciados e investimentos efetivamente convertidos. A pesquisa contabilizou, entre outras virtualidades, os US$ 60 milhões alardeados para o Centro Empresarial São Caetano. Projeto grandioso de reconversão de antiga cerâmica em pólo de empresas de alta tecnologia, divulgado há quatro anos, está longe de sair do papel. Mas as distorções de origem representam o pecado menor do levantamento.


 


Mais graves são as tentativas de prostituir números para vender a idéia de que o Grande ABC seria espécie de prodígio de atratividade industrial e teria atravessado incólume os anos de chumbo de internacionalização econômica, guerra fiscal e pulverização da produção automobilística.


 


O Grande ABC sofreu, sim, duro processo de desindustrialização, conforme comprovado em abordagens históricas de LivreMercado. Somente nos oito anos do governo Fernando Henrique, entre 1995 e 2002, a região perdeu 39% do Valor Adicionado, como é tecnicamente conhecida a medida de produção industrial que determina o repasse do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) pelo governo estadual.


 


Para compreender como a região se desindustrializou no período em que contabilizou volume substancial de investimentos industriais é preciso ir além das frases de efeito e de generalizações fantasiosas. É necessário destrinchar a natureza dos investimentos, tratar a economia regional de forma mais abrangente e menos elitista, além de contextualizar a região no panorama sombrio da globalização sem salvaguardas.


 


A tradução ao pé da letra dos US$ 12 bilhões em investimentos industriais apontados pela Fundação Seade não é a chegada de novas empresas ou a ampliação de plantas já instaladas. Parcela esmagadora dos recursos foi utilizada na atualização tecnológica de montadoras e grandes empresas químicas e petroquímicas, obrigadas a correr atrás da competitividade perdida em décadas de mercado protegido. Estruturas enferrujadas nos tempos de substituição de importações tiveram de ser reinventadas com adoção maciça de novos equipamentos e processos produtivos.


 


Nesse esforço sem precedentes na história do Grande ABC, o placar dos investimentos industriais subiu naturalmente à estratosfera. Portanto, são investimentos obrigatórios após longo período de jejum tecnológico, impulsionados pelo imperativo da sobrevivência num mundo sem fronteiras, e não espontâneos em novas fábricas ou linhas de produção, atraídos por vantagens competitivas locacionais.


 


Além de obrigatórios, os anúncios de investimentos estão concentrados em poucas e grandes empresas dos ramos automotivo e petroquímico. Significa, por raciocínio lógico, que parcela esmagadora de micros, pequenas e médias indústrias ficou à margem da modernização. Essa constatação ajuda a compreender como 39% do Valor Adicionado foram para o ralo.


 


Milhares de empresas mais modestas que não tiveram recursos financeiros para acompanhar o passo da globalização foram jogadas ao acostamento do mercado ou sumiram do mapa produtivo. As sobreviventes continuam lutando bravamente para não serem atropeladas, como as empresas de ferramentaria, plásticos e autopeças que compõem os APLs (Arranjos Produtivos Locais) orquestrados pela Agência de Desenvolvimento Econômico.


 


A constatação de que o grosso dos investimentos se concentrou nas montadoras e em poucas indústrias químicas e petroquímicas é clara ao analisar os números da própria Fundação Seade. Segundo o levantamento, a Volkswagen respondeu, sozinha, por US$ 2,23 bilhões do total anunciado de US$ 12 bilhões para o setor industrial. Em seguida vêm DaimlerChrysler (US$ 1,2 bilhão), GM (US$ 1,1 bilhão), e Ford (US$ 650 milhões). Se aos recursos desembolsados pelas quatro montadoras forem acrescentados US$ 177 milhões referentes à japonesa Bridgestone Firestone e os US$ 100 milhões da italiana Pirelli, a elite automotiva atinge US$ 5,45 bilhões — quase metade do total de US$ 12 bilhões.


 


Se aos valores da elite automotiva forem acrescidos US$ 959,12 milhões anunciados pela Petroquímica União, US$ 270 milhões da Polietilenos União, US$ 205,9 milhões da Solvay, US$ 595 milhões da Polibrasil e US$ 450 milhões da Refinaria de Capuava, chega-se a US$ 8 bilhões. Apenas 11 empresas são responsáveis por quase 70% do total anunciado pela indústria.


 


Há mais exemplos baseados em números da própria Fundação Seade de que o universo produtivo regional vive verdadeiro apartheid entre gigantes em reciclagem tecnológica e a maioria de pequeno porte fadada à vulnerabilidade. O US$ 1,1 bilhão da GM em São Caetano representa quase a totalidade do US$ 1,35 bilhão apurado para toda a cidade, incluindo os US$ 60 milhões virtuais do sonhado centro empresarial. Sem concentração de montadoras ou empresas petroquímicas de grande porte, Diadema, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra responderam, juntas, por menos de 1% do total anunciado para a região. Diadema isoladamente registrou US$ 117 milhões, bem menos que os US$ 177 milhões relativos à Bridgestone Firestone em Santo André.


 


Outro trecho publicado no Observatório Econômico permite detectar a lógica de segregação tecnológica por ângulo diferente: nada menos que 72% dos investimentos ultrapassam US$ 100 milhões, e 94% a US$ 10 milhões. Quanto à origem do capital, a Alemanha figura em primeiro lugar com US$ 4,65 bilhões, dos quais US$ 4,42 bilhões para o setor automotivo. Nem é preciso oferecer um doce para quem acertar o porquê.


 


Automotivo frágil


 


Em outro ponto do artigo assinado pelos técnicos da Fundação Seade é possível observar que o Grande ABC perdeu a corrida por investimentos estaduais no setor automotivo mesmo tendo absorvido avalanche de recursos em modernização tecnológica e reposição de produtos obsoletos. O parágrafo foi produzido para conferir idéia de suposta inviolabilidade regional aos reveses impostos pela guerra fiscal e pela globalização, mas a realidade clama por reconhecimento nas entrelinhas. Está escrito assim: “O ramo automotivo, ao qual foram destinados US$ 7,06 bilhões, ou 51,3% dos investimentos da região, determina a pujança da cadeia automotiva automobilística. Esse valor corresponde a 37,6% do total alcançado pelo segmento em todo o Estado de São Paulo, apesar dos altos investimentos da Honda e da Toyota na região de Campinas”.


 


À luz da retidão informativa, deveria estar escrito assim: “O berço brasileiro da indústria automobilística ficou com apenas 37,6% dos investimentos automotivos registrados no Estado entre 1996 e 2004. E esses investimentos foram traduzidos basicamente em atualização e reposição de veículos obsoletos nas plantas existentes, já que nenhuma das novas marcas que alteraram o mapa da produção automotiva brasileira durante os anos 90 veio se instalar no Grande ABC. Pelo contrário. Companhias sediadas há décadas na região também tomaram o rumo da descentralização. Parte considerável dos 62,4% investidos pela indústria automotiva no Estado foi convertida na criação de fábricas em regiões que oferecem custos locacionais e trabalhistas mais baixos, casos de Indaiatuba e Sumaré, escolhidas respectivamente por Toyota e Honda”. Seria exigir capacidade interpretativa demais para técnicos que insistem em olhar algumas poucas árvores frondosas, e não o conjunto da floresta devastada?


 


Se for este o caso, convém acompanhar com atenção abordagens inéditas de LivreMercado sobre a indústria mais competitiva do planeta. Assim, saberão que os R$ 650 milhões anunciados pela GM em São Caetano compõem típico exemplo de investimento de reposição. Afinal, os recursos se destinam à substituição do antigo e comercialmente combalido Vectra por produto que proporcione renovação do fôlego de vendas e, assim, contribua para manter o nível de empregos já ameaçado por PDVs (Programas de Demissões Voluntárias) deflagrados em função da perda da competitividade internacional. No extremo oposto do investimento de reposição estão os recursos que geram produtos, empregos e impostos adicionais, como os US$ 240 milhões que a mesma montadora projeta para ampliação da linha de produção do Celta na gaúcha de Gravataí.


 


Ao acompanhar a linha editorial de LivreMercado, os técnicos da Fundação Seade saberão também que, com a centralização dos investimentos na região de Campinas e da GM na planta de São José dos Campos, o Grande ABC perdeu o primeiro lugar no pódio da produção automotiva para o restante do Estado. O Interior paulista respondeu por 25,54% dos 2,2 milhões de veículos produzidos no Brasil em 2004, enquanto o Grande ABC ficou com 23,86%. São quase dois pontos percentuais a menos que no ano anterior, já que em 2003 o Grande ABC respondeu por 25,7% dos automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus brasileiros.


 


Os percentuais da região foram calculados recentemente com ineditismo por LivreMercado com base em informações de montadoras e sindicatos, além de dados compilados pela Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).


 


A redução da produção automotiva no Grande ABC explica a emblemática queda de São Paulo no front da economia sobre rodas. Pela primeira vez na história, a indústria paulista produziu menos da metade dos veículos brasileiros — 49,4% do total em 2004, contra 52,8% em 2003, 55,2% em 2002 e 74,8% em 1990, antes da globalização e da pulverização geográfica das linhas de montagem. A migração da produção automotiva é faceta complexa da desindustrialização que os técnicos da Fundação Seade precisam reconhecer, em vez de tentar escamotear.


 


Ao se instalarem no Interior paulista ou em Estados como Rio de Janeiro, Bahia, Paraná e Rio Grande do Sul, principais destinos alternativos, as fábricas deslocaram muito mais que a montagem do produto final. Movimentaram também a teia de fornecedores de conjuntos de autopeças num efeito dominó que ajuda a compreender a evaporação de 39% do Valor Adicionado.


 


Os motivos que levaram antigas e novas montadoras a buscar refúgio longe do reduto original são variados. Pesaram tanto fatores exógenos como isenções fiscais e benefícios creditícios via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) quanto deficiências exclusivamente regionais, como o enfartamento logístico, a baixa qualidade de vida na região metropolitana paulista e o inchaço dos custos trabalhistas nos tempos de mercado fechado.


 


Não foi apenas ao tratar de investimentos industriais que os técnicos da Fundação Seade tentaram forjar realidade adocicada. Ao discorrer sobre investimentos no setor terciário durante a apresentação do Observatório Econômico, na Prefeitura de Santo André, Miguel Matteo ressaltou que o Grande ABC — e a cidade anfitriã em especial — se consolidam cada vez mais como pólos de prestação de serviços à indústria, a exemplo do que ocorre na capital paulista. Para justificar, citou o fato de Santo André ter registrado a maior parcela de investimentos no terciário, com 23,6% do total anunciado para a região. “E são serviços voltados a atividades industriais, não às famílias” — enfatizou.


 


O detalhamento dos principais investimentos mostra que a afirmação não está lastreada em fatos. Sob o título “Santo André: destaque para serviços”, o artigo do Observatório informa: “As atividades imobiliárias foram responsáveis por 63% do total dos serviços. Foram anunciados para Santo André seis dos sete maiores empreendimentos da região, em sua maioria shopping centers (inclusive automotivos), no valor total de US$ 500,89 milhões”.


 


Como é claro, os técnicos da Fundação Seade misturam o conceito de terciário de alto valor agregado com a chegada de grandes centros de compras. O terciário sonhado pelo então prefeito Celso Daniel seria marcado por prestação de serviços especializados no universo industrial, os chamados serviços empresariais. Está muito longe de se tornar realidade em intensidade suficiente para inverter a mão das perdas econômicas, embora espaço físico não falte principalmente ao longo do chamado Eixo Tamanduateí, idealizado pelo Poder Público originalmente para acolher o segmento. Serviços empresariais de alto valor agregado não têm nada a ver com shopping centers, que ampliaram as opções de compra na mesma medida em que concentraram o consumo do público mais aquinhoado. Entretanto, não representam alternativa ao soerguimento industrial.


 


Mas nem tudo é tentativa de mascaramento da realidade na oitava edição do Observatório Econômico, produzido pela Secretaria de Desenvolvimento e Ação Regional com suporte técnico do Centro Universitário Fundação Santo André. Um artigo mostra que a arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) caiu quase 8% em Santo André no primeiro quadrimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado, apesar de ter registrado crescimento de 4,87% no Estado de São Paulo — cálculos que utilizam o IGP-DI como deflator.


 


As reduções mais significativas se deram em itens como fabricação de borracha (queda de R$ 2,9 milhões), comércio atacadista (R$ 18,9 milhões) e revendedores de veículos (R$ 16,7 milhões). O artigo aponta ainda que subsetores industriais como químico e o de plásticos geraram aumentos expressivos de ICMS, mas não a ponto de compensar perdas em outros segmentos.


 


Outro levantamento mostra que o terciário respondeu por 12.060 dos 19.556 empregos formais gerados no Grande ABC no primeiro quadrimestre do ano, ou 61,6% do total. Em Santo André a participação dos serviços foi ainda maior: 76,5%, ou 3.530 das 4.610 vagas com carteira assinada, enquanto no Estado o peso do terciário foi de apenas 37%, ou 103.979 do saldo de 278.946 empregos formais. O que é possível depreender desses percentuais e que não consta do Observatório? Que a indústria do Grande ABC convive com estoque adicional de mão-de-obra e por isso responde a fases de aquecimento sem necessidade de recorrer a contratações. Principalmente montadoras que ainda mantém quadros relativamente blindados por obra e graça de acordos sindicais.                                                       


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