Quem passa pela Rodovia Índio Tibiriçá, na divisa de Ribeirão Pires com Suzano, não tem idéia de que o enorme galpão ocupado por cerca de 30 famílias abrigou um dia a fábrica de motores Búfalo. Incrustado em um enorme terreno em área logística estratégica, o prédio não é nem sombra da fundição que preparava as carcaças dos motores que seriam montados na unidade de São Bernardo. Por trás da construção passa a estrada de ferro, por onde a MRS transporta toneladas de produtos. Entre a rodovia e a estrada de ferro, a Búfalo se ergue como monumento da desindustrialização do Grande ABC.
Quando decretou falência, nos anos 1980, a Búfalo deixou sem trabalho 70 trabalhadores em Ribeirão Pires. O número era ainda maior na planta do Rudge Ramos, próximo da Trol, mas os registros dos sindicatos dos metalúrgicos, tanto o de Santo André, que cobre Ribeirão Pires, quanto o do ABC, que atua em São Bernardo, são falhos.
Para o jornalista e pesquisador da memória Ademir Medici, não existe preocupação de se preservar a história da indústria do Grande ABC. Já há idéia de criar o Museu do Trabalho, a partir de pedido encaminhado à Prefeitura de Santo André pelo Gipem (Grupo Independente de Pesquisadores da Memória do Grande ABC). “Foi indicado como sede um casarão na avenida da Paz, em Utinga, mas é um bem particular e teria de ser desapropriado” — diz.
Ademir Medici lembra de projeto da Petrobras, que vai duplicar os oleodutos de Utinga até São Caetano. “Como a empresa vai investir nisso, poderia ajudar no projeto do museu” — considera.
Da fábrica que produzia aquele que era considerado o melhor motor da época não sobrou nada. As famílias que ocupam o prédio desconhecem a maior parte da história da empresa que funcionou ali. Só sabem que faliu e receiam ser retiradas do local. Temem a polícia, que por vezes dá batida no terreno, à procura de consumidores e traficantes de drogas.
No início de agosto, uma megaoperação das Polícias Civil e Militar não conseguiu pôr fim ao que ficou conhecido como shopping center do crime de Ribeirão Pires. Mas de lá para cá tudo está mais calmo, segundo os moradores, que armaram grupos para pôr para fora da área tanto traficantes quanto consumidores de drogas.
Há famílias que estão no prédio há 10 anos. Quase todos, segundo relato de Erivaldo José Barbosa, morador da fábrica com a mulher e três filhos de dois, três e cinco anos, são pernambucanos. Ele próprio está há 11 anos em Ribeirão Pires e há seis na fábrica. Inicialmente trabalhava como caseiro em uma chácara, mas perdeu o emprego. Está afastado por problema de coluna. Sua mulher também está desempregada. As crianças ficam o dia inteiro em creche municipal, mas não têm atendimento de saúde eficaz. A menor sofre com problemas respiratórios.
Erivaldo Barbosa mostra a fábrica, as colunas de concreto ainda intactas; explica como as famílias se dividem pelo espaço e mostra o seu: com TV, aparelho de som, móveis adaptados e muita umidade. Há água encanada, mas a rede de esgoto é precária. Ele faz pose, orgulhoso, ao lado da pequena televisão e do aparelho de som. E relata seu maior temor: “Que tirem a gente daqui”.
A visita à antiga fábrica é acompanhada pelo ex-sindicalista João Copatto, o Guzula, hoje integrante da Associação dos Metalúrgicos Aposentados. Morador de Ribeirão Pires, onde tem uma chácara, Copatto fazia parte da direção do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André quando a Motores Búfalo foi fechada no início dos anos 80. Ele lembra que todo tipo de motor era fabricado ali, dos pequenos para bombas d’água a enormes turbinas para hidrelétricas. Onde o ferro era fundido, hoje restam ervas daninhas. Guzula avisa Erivaldo: “Cuidado com essa, que é venenosa, se suas crianças comerem, elas morrem”. Um filme passa diante dos olhos do ex-sindicalista. Ele vê a Búfalo em funcionamento. “Por ali eram erguidas barras enormes de ferro” — lembra. “Aqui no portão era vendida marmitex”. O portão, com largos rombos no alumínio trançado, é mais um retrato do que foi um dia a Búfalo.
Segundo Copatto, a proprietária da empresa deixou os negócios aos cuidados de terceiros. “Cada dia era um que negociava, aí a situação ficou difícil, e a firma acabou falindo” — recorda. Faliu e deixou os funcionários sem receber direitos. “O sindicato pegou a sucata que foi abandonada na fábrica, vendeu para uma fundição e dividiu o dinheiro entre os funcionários. Essa foi a indenização” — ironiza.
Da cana à GE
Natural da região de Piracicaba, Copatto trabalhou no corte de cana antes de vir para o Grande ABC. Foi empregado na ZF, em São Caetano, que se transferiu para Sorocaba. Foi funcionário da GE, em Santo André, depois Black & Decker, que fechou a unidade no Município. É um retrato da transformação econômica pela qual passaram as sete cidades nos últimos 20 anos. Uma mudança que não perdoou ninguém. “Muitos trabalhadores ficaram órfãos. Uma coisa é treinar alguém para trabalhar em um supermercado. Outra é ter o funcionário já preparado para atuar na indústria que depois tem de se virar quando perde essa colocação” — lamenta.
Em menos de um minuto, o ex-sindicalista lembra de várias indústrias de Ribeirão Pires que foram fechadas. A Tecmafrig, que produzia máquinas de fazer pão, competia com a Braibanti. Ambas faliram. A Alumínio Carmo, que fazia panelas, faliu. “Os empregados saem de mãos vazias, mas o mesmo nem sempre ocorre com os empresários” — afirma. O filme continua passando diante de Guzula. Sem um final exatamente feliz.
Ao lado do terreno da Motores Búfalo, separada por área tomada pelo mato, quatro casas se enfileiram, e uma das quais, amarela, se destaca. Ali mora Givaldo Profeta Alves, mais conhecido como 100 Gramas, o único trabalhador da Búfalo que ainda mora perto da antiga empresa. Os mais de 10 anos de contato com a resina usada na fabricação das carcaças dos motores deixaram sequelas: 100 Gramas pena com grave problema de saúde, causado pela exposição à química, que faz a pele de todo o corpo descascar.
O ex-funcionário afirma que deu o sangue pela Búfalo, que trabalhava dia e noite para que a empresa atingisse 24 toneladas por semana de produção. Hoje sobrevive do aluguel de três casinhas que eram ocupadas por ex-trabalhadores da metalúrgica. Não tem aposentadoria, porque lhe afirmaram que não tem direito, apesar de 25 anos de contribuição. Diz que gasta muito com remédios, e seu problema de pele atesta. O filho vende produtos de limpeza na entrada da colônia de casinhas. 100 Gramas mal pode andar. Guzula garante que acionará o Departamento Jurídico do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André para que a aposentadoria saia. Velhos conhecidos, se despedem com um caloroso aperto de mão. 100 Gramas, com lágrimas nos olhos.
Impacto
Se a desindustrialização do Grande ABC pode ser mensurada nos últimos 20 anos, o impacto desse fenômeno na vida das pessoas que trabalhavam nas fábricas não tem como ser medido, e seus reflexos serão sentidos ainda por décadas. Não é de uma hora para outra que os 856 empregos industriais perdidos por mês na região durante os anos Fernando Henrique Cardoso serão revertidos em novos postos.
Estudo publicado por LivreMercado de julho mostra, com base em dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) do Ministério do Trabalho, que em 41 meses do governo Luiz Inácio Lula da Silva foram recuperados mais de 30 mil dos 82 mil empregos industriais perdidos na era FHC. Uma reversão de tendência que, se serve como alento diante da falta de perspectiva para o setor industrial, não será suficiente para apagar as marcas deixadas pela fuga das empresas da região.
Assim como 100 Gramas e Guzula, o Grande ABC está cheio de personagens cujas vidas falam da trajetória econômica da região até com mais propriedade do que a frieza dos números. Por trás desses números, há vidas, há filmes passando diante dos olhos de sindicalistas, há injustiças cometidas contra quem deu sangue e suor para ajudar a construir uma empresa. A história da indústria do Grande ABC vai além das estatísticas. E comove.
“Tem certos dias em que eu penso em minha gente/ E sinto assim todo o meu peito se apertar”. (Gente Humilde, Chico Buarque de Hollanda)
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