O Grande ABC começou a deixar a zona de rebaixamento econômico há quase três anos, quando a desvalorização cambial subiu a rampa do Palácio do Planalto com o presidente da República e impulsionou a indústria automobilística na rota das exportações. Mas a continuidade da recuperação está em xeque porque o comércio internacional perde fôlego na ladeira íngreme da apreciação do real. É possível que o Grande ABC não cresça, ou desacelere o ritmo em 2006, por conta de inevitável redução no ritmo de embarques de veículos ao Exterior. Após exportar volumes crescentes desde 2003, as montadoras tiveram de pisar no freio. E essa manobra certamente afetará a região que tem 70% da economia direta ou indiretamente ligada ao setor automotivo.
A pulsação da economia regional é aferida pela geração de Valor Adicionado, indicador de transformação industrial que determina em 76% o repasse de ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) pelo governo do Estado. Nos oito anos da era Fernando Henrique (1995-2002) a região sofreu desindustrialização que culminou com perda acumulada de 39% do VA. Nos dois primeiros anos do governo Lula o Grande ABC recuperou 13,25 pontos percentuais, o que reduziu para 25,75% o saldo negativo dos últimos 10 anos. E o prejuízo deve ter sido compactado ainda mais neste ano em que as montadoras bateram mais um recorde de produção e vendas. É só aguardar os números da Secretaria Estadual da Fazenda para comemorar o terceiro resultado positivo depois de oito anos de derrotas.
Mas a mudança do cenário em 2006 enseja dúvidas quanto à sustentabilidade da retomada. A Volks prevê embarcar 229 mil unidades no ano que vem, ante 264 mil deste ano. As vendas externas da GM devem cair de 200 mil unidades até o final deste ano para 160 mil em 2006. E a Ford já reduziu em 30% as exportações do Ka e da picape Courier para o México, produzidos em São Bernardo. A dieta forçada também atinge fábricas de caminhões, embora em menor grau, e resulta da impossibilidade de reajustar preços para compensar custos gerados pela apreciação cambial.
Otimistas, alguns capitães da indústria automotiva nutrem esperança de que o mercado interno possa ganhar robustez em ano eleitoral a ponto de compensar a flacidez no front externo. Argumentam que a substituição das exportações por torrente adicional de consumidores brasileiros poderá fazer com que a produção em 2006 atinja o nível deste ano, estimada em 2.450 mil unidades. Mas a possibilidade que cairia como luva ao Grande ABC é remota. Por mais que a taxa de juro seja domesticada e alimente o aquecimento da demanda, ainda permanecerá demasiadamente elevada, sem possibilidade de escancarar as portas do acesso ao crédito. Além disso, não existe vara de condão que eleve substancialmente a renda per capita de modo a turbinar o consumo de veículos.
O balanço da indústria automobilística nos três anos em que o Grande ABC recuperou Valor Adicionado deixa claro que o crescimento da produção está atrelado muito mais às exportações do que às vendas no mercado interno. De 1.827 milhão de unidades produzidas em 2003, 536 mil foram exportadas. Des 2.220 milhão montadas em 2004, 650 mil foram vendidas fora do País. E da produção de 2.450 milhão de veículos estimada para este ano, 840 mil devem tomar rumos internacionais. Como o volume total de exportações deve cair para patamar entre 500 mil e 700 mil unidades em 2006, é improvável que as montadoras estabeleçam o quarto recorde consecutivo de produção, assim como é pouco provável que o Grande ABC mantenha o ritmo de incremento industrial. A não ser que o desejado — mas pouco provável — milagre da multiplicação de consumidores reverta a lógica dos últimos anos.
Câmbio capital
A pedra no sapato das exportações que tem compensado o baixo crescimento do mercado interno é a taxa de câmbio, que já rompeu a barreira dos R$ 2,20 por dólar e atingiu o nível mais baixo desde abril de 2001. Câmbio é variável importantíssima especialmente para países que ainda não atingiram o nível de competitividade de nações ricas. Quanto mais desvalorizada a moeda, mais baixos se tornam os custos internos e maior a capacidade de inserção nos mercados internacionais.
No Brasil em especial, a desvalorização excessiva da moeda é ainda mais vital. O País tem legislação trabalhista onerosa e anacrônica, taxa de juro proibitiva ao crédito, gargalos rodoviários e aeroportuários e carga tributária de quase 40% do PIB (Produto Interno Bruto) sem as devidas contrapartidas sociais. Automóveis leves embutem 30,4% de tributos no Brasil, muito mais que os 16,7% na Itália, 16,4% na França, 14,9% no Reino Unido, 13,8% na Espanha e Alemanha, 9,1% no Japão e 6,1% nos Estados Unidos, de acordo com dados da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).
O governo federal reconhece os estragos provocados pela valorização da moeda. Tanto que ofereceu linha de crédito especificamente voltada a exportações por meio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). “É uma forma de melhorar a competitividade e proporcionar condições para que invistam no Brasil” — argumentou o presidente Guido Mantega, referindo-se ao pacote de US$ 853 milhões concedidos à Volkswagen, Ford, General Motors e Fiat. “A ajuda é bem-vinda, mas insuficiente para reparar as perdas do setor” — argumenta Rogelio Golfarb, executivo da Ford e presidente da Anfavea.
Sem oba-oba
Os perigos da dependência do real radicalmente fraco foram alertados em duas reportagens de LivreMercado neste ano. A primeira “Somos reféns do real fraco”, publicada em janeiro deste ano, trafegava na contramão do oba-oba generalizado ancorado nos recordes de produção e vendas. “Exportações salvaram a lavoura em 2004, mas é temerário apostar todas as fichas no câmbio favorável. Se a cotação do real subir demais a ponto de ameaçar as vendas externas e os recursos internacionais minguarem, a região pode andar para trás” — dizia o texto.
Em junho deste ano, LivreMercado voltou ao tema com o título “Câmbio ameaça festa automotiva”. Alguns trechos da matéria: “Quanto mais a moeda brasileira se valoriza, mais inflados se tornam os custos internos e piores as condições de competitividade internacional, principalmente no embate com emergentes como China, Coréia e Leste Europeu. Para a região cujo PIB está intrinsecamente ligado às montadoras, a perda do vigor exportador gera dificuldades em cadeia ao comprometer níveis de produção, empregos e impostos. É improvável que o real retorne aos patamares surreais da era Fernando Henrique, quando chegou a valer mais que o dólar no primeiro mandato, mas a trajetória consistente de valorização já coloca o Brasil e o Grande ABC na zona cinzenta de preocupação. Embarques correntes são resultado de contratos firmados no passado, com o dólar cotado a R$ 2,80 a R$ 3,00. Se a volatilidade converter as exportações em mau negócio, a tendência é de que as montadoras percam clientes na tentativa de reajustar preços, ou simplesmente pisem no freio, apesar da necessidade de gerar escala de produção para compensar a inelasticidade do mercado doméstico” — relatava a matéria.
Inaceitável
Análises como essas são incompatíveis com versões adocicadas sobre a performance das exportações como a que o boletim Observatório Econômico publicou na edição de outubro último. Autores do boletim parecem não ter acompanhado o turbilhão de notícias sobre rompimentos de contratos das montadoras por conta da apreciação da moeda. Passaram ao largo das dificuldades e transmitiram a impressão de que a valorização do real era mero detalhe, incapaz de atrapalhar o ímpeto exportador do Brasil e do Grande ABC repleto de multinacionais supostamente protegidas pelo comércio intercompany (entre tentáculos internacionais de uma mesma companhia).
A constatação de que a saúde econômica do Grande ABC continua dependendo exclusivamente de variáveis como câmbio e juros conduz a um fato tão cristalino como lamentável: a região permanece alienada do próprio destino porque se encontra completamente à mercê de instrumentos macroeconômicos sobre os quais não tem o menor controle. A recuperação de parte do Valor Adicionado não se deu por mobilização inédita e exemplar dos atores socioeconômicos no âmbito do capital social, mas pela sorte de contar com moeda extremamente desvalorizada em cenário de alta demanda internacional. Da mesma forma como testemunhou impassível a desindustrialização que drenou 39% das riquezas industriais, o Grande ABC como instituição não teve a menor influência na melhoria do cenário nos últimos 36 meses.
A condição de mero joguete das deliberações de Brasília só começou a ser questionada mais recentemente, especificamente há três meses, quando William Dib chamou para si desafio inédito de fortalecer a cadeia automotiva historicamente negligenciada pelo conjunto dos atores locais. Em vez de assistir de braços cruzados a fuga de investimentos para outras regiões do Estado e do País, o prefeito de São Bernardo e presidente do Consórcio Intermunicipal resolveu interferir no rumo dos acontecimentos com disposição para ouvir atentamente as necessidade da iniciativa privada. Foi assim que concedeu desconto de IPTU (Imposto Predial, Territorial e Urbano) e fez ponte de negociação com o governo do Estado para garantir projeto de carro compacto da Ford na fábrica de São Bernardo. O modelo que deve ter produção iniciada em 2008 será prioritariamente voltado ao mercado interno. Portanto, não sofrerá com intempéries cambiais.
É claro que a maratona pela revalorização automotiva apenas começou. Seria ótimo se outros prefeitos se sensibilizassem de que não é necessário sediar montadoras para colher frutos da economia sobre-rodas e, assim, se unissem em força-tarefa. Afinal, o aglomerado de sete cidades forma praticamente território único do ponto de vista socioeconômico. Os salários pagos pela Volks de São Bernardo azeitam as engrenagens do terciário em Santo André, Mauá, Ribeirão Pires, São Caetano e Diadema, na medida em que os funcionários têm domicílios em todas as cidades da região. Direta ou indiretamente, os 2,5 milhões de habitantes são tripulantes do transatlântico automotivo historicamente entregue aos sacolejos da macroeconomia e de decisões tomadas na esfera federal.
GM Brasil sai ilesa?
Até que ponto turbulências na matriz de um gigante transnacional podem afetar subsidiárias espalhadas pelo mundo? Da resposta à questão reconhecidamente complexa depende o futuro da General Motors do Brasil e consequentemente de São Caetano, que tem na montadora verdadeira galinha dos ovos de ouro ao lado da sede das Casas Bahia.
Nos Estados Unidos, a GM atravessa um dos piores momentos da história. Pressionada por insuportáveis custos trabalhistas e previdenciários, redução da fatia de mercado no embate com montadoras asiáticas e inchaço típico das organizações que crescem demais e escapam ao controle, a General Motors Corporation traçou plano de recuperação que inclui fechamento de 12 fábricas e demissão de 30 mil funcionários até 2008 -- cinco mil a mais que o número divulgado anteriormente. E a operação brasileira? Passará ao largo dos percalços no maior mercado mundial de veículos ou sofrerá os efeitos da trepidação no berço da maior companhia privada do planeta?
Oficialmente, a GM do Brasil transmite a impressão de que está tudo sob controle. “Os problemas nos Estados Unidos não têm qualquer relação com as atividades no Brasil” -- repete o presidente Ray Young. De fato, o plano detalhado pelo executivo-chefe Rick Wagoner não faz qualquer citação a operações fora da América do Norte. Prevê especificamente a desativação de linhas de montagem de veículos na Geórgia, Oklahoma, Tenesse e Oshawa, no Canadá, encerramento de produção de motores em Michigan e Ontário, também no Canadá, entre outras intervenções.
Mas o descolamento completo das realidades da GM nos Estados Unidos e no Brasil é sonho que só se concretizará no dia em que a subsidiária conquistar condição de auto-suficiência financeira. Enquanto depender do repasse de recursos da matriz, a autonomia fica inexoravelmente comprometida. A última vez em que a operação brasileira viu lucro foi em 1997, como lembrou recentemente o diretor de Assuntos Institucionais, Luiz Moan.
Tradução: no curto prazo, a GM do Brasil pode se considerar livre dos estilhaços, mas a probabilidade de contaminação é maior quanto mais perdurarem os prejuízos nos Estados Unidos e no Brasil. A paciência dos acionistas tende ao esgotamento na proporção direta em que os resultados do núcleo principal se mostrarem insuficientes para cobrir tentáculos deficitários.
Mais rentabilidade
Mesmo sem reconhecer o perigo da contaminação na forma de enxugamento de produtos ou demissões, a subsidiária brasileira demonstra disposição para concentrar o foco no que realmente importa: rentabilidade. Depois de entrar em verdadeira guerra pela conquista da liderança de vendas no mercado doméstico em 2004, por meio de concessão ostensiva de descontos, a montadora parece não se importar em ver a Fiat se aproximar cada vez mais do primeiro lugar no pódio deste ano. Em vez da supremacia comercial, passou a perseguir rentabilidade. Os maiores símbolos dessa guinada são o novo Vectra e o kit de personalização que confere traços de off-road ao Celta. O novo Vectra custa R$ 60 mil, mais que o dobro de um automóvel popular. E o kit de personalização composto de quebra-matos, estribos laterais, rack de teto e adesivos adiciona R$ 3 mil ao custo do veículo básico produzido na gaúcha Gravata.
Na tentativa de colorir o balanço de azul, a GM ainda terá de compensar exportações em queda com ampliação de vendas no mercado interno — tarefa nada simples diante da baixa elasticidade da demanda prejudicada pela competitividade atroz. Por conta da valorização do real, as vendas ao Exterior devem cair de 200 mil veículos neste ano para 160 mil em 2006. A favor da empreitada indigesta conta com trunfo nada desprezível: quase toda a linha de produtos está equipada com motores bicombustíveis que aceitam mistura de gasolina e álcool em qualquer proporção e já representam mais da metade das vendas no País.
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