Economia

Perigo vem
do outro lado

ANDRE MARCEL DE LIMA - 20/04/2005

O clima festivo não combina com abordagem pé-no-chão, mas é recomendável manter os olhos bem abertos porque nuvens carregadas já foram detectadas no horizonte: o Grande ABC não deve se iludir com a performance alentadora da indústria automobilística em 2004. Neste início de ano já há sinais preocupantes de que a biruta pode mudar radicalmente.


 


Em vez de se restringir a comemorar o relativo incremento das linhas de montagem com atitude típica de quem vive o presente sem se preocupar com provisões para o futuro, a região deve insistir na tecla do desenvolvimento de matrizes alternativas que equilibrem o peso automotivo na balança econômica regional. Afinal, nenhum administrador público em sã consciência deve colocar parcela esmagadora dos ovos tributários e ocupacionais no cesto frágil do segmento mundializado e em franco processo de canibalização além-fronteiras. Principalmente ao se levar em conta que custos adicionais colocam o berço da indústria automotiva responsável por 25% dos veículos produzidos no Brasil como alvo preferencial de predadores internacionais. É imprescindível se manter alerta e antecipar alternativas para não ser pego no contrapé, por mais que os festejos recentes sejam um convite à acomodação.


 


As evidências de que a farra automotiva responsável pela criação de 17 mil postos industriais no Grande ABC em 2004 pode chegar ao fim não ecoa das janelas de hospício nem de fanático religioso disposto a convencer a humanidade de que o fim está próximo. Longe disso. As palavras de cautela permeiam o discurso de Rogelio Golfarb, presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) -- entidade que reúne montadoras de veículos e fabricantes de máquinas agrícolas. Juros mais altos, projeção de crescimento menor do PIB (Produto Interno Bruto) para este ano, aumento de matérias-primas cotadas internacionalmente e enfraquecimento do vigor exportador em consequência da apreciação do real são fatores preocupantes no curto prazo.  


 


Ameaça asiática


 


Mas a maior ameaça para o setor responsável por 70% do PIB do Grande ABC vem do outro lado do mundo, mais especificamente da Ásia. A China desponta como grande ponto de interrogação à sustentabilidade da indústria automobilística brasileira. "Até agora, só recebemos o impacto da China compradora, mas ainda vamos ter o impacto da China exportadora. Aquele país já exporta com qualidade e preços baixos produtos como brinquedos, vestuários e eletroeletrônicos. Como a demanda automotiva chinesa ainda não está satisfeita, o foco está voltado para o mercado interno. Mas a China tem projeto para ampliar a capacidade de produção para seis milhões de veículos até 2010. Quando começarem a exportar, vão nos pegar despreparados" -- destacou Golfarb em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo.


 


O risco China foi sublinhado anteriormente por Letícia Costa, presidente da consultoria Booz, Allen & Hamilton. Em reportagem publicada por LivreMercado em setembro de 2003, a especialista alertava sobre as prováveis consequências da hipertrofia do parque automotivo chinês. A consultora previu que a ociosidade das fábricas naquele país atingirão níveis estratosféricos nos próximos cinco anos e que, para compensar o vácuo do mercado doméstico, os chineses partirão com tudo para os mercados externos.


 


A desastrosa perspectiva de invasão de carros chineses nas ruas brasileiras é apenas parte do drama desenhado por Letícia Costa e Rogelio Golfarb. Mesmo que não digladiem diretamente no território nacional, exportações chinesas restringirão espaços das vendas externas brasileiras que têm funcionado como providencial válvula de escape para compensar a anorexia do mercado interno. Da produção recorde de 2,2 milhões de veículos no ano passado, 600 mil foram embarcados para o Exterior.


 


A China assusta porque se tornou ancoradouro de investimentos globais. Com crescimento anual do PIB de 8% nos últimos 10 anos, tornou-se espécie de queridinha das montadoras seduzidas pela mão-de-obra barata e pela moeda desvalorizada. "Há um limite de investimentos e a China está drenando os recursos automotivos no mundo" -- destaca Golfarb, que calcula em US$ 20 bilhões os investimentos do setor em curso naquele país, enquanto no Brasil a projeção é de apenas US$ 2 bilhões para este ano.


 


Apenas uma liderança


 


Mas os perigos globais vão além. A China é apenas a líder do pelotão de países emergentes dispostos a ganhar musculatura nessa batalha. O México receberá US$ 8 bilhões em investimentos e o Leste Europeu se expande no ritmo da integração na Comunidade Européia. "Países sem nenhuma tradição no setor como Hungria, República Tcheca e Polônia já produzem juntos 1,7 milhão de veículos, pouco acima do que o mercado brasileiro consome" -- comenta Golfarb, referindo-se a ex-aliadas do bloco soviético.


 


Em recente passagem por São Caetano, durante o anúncio de produção do novo Vectra, o presidente mundial da General Motors, Rick Wagoner, expressou preocupação semelhante ao inserir o Brasil e o Grande ABC na bitola da competitividade sem fronteiras. Wagoner lembrou que, para conquistar contratos de exportação, não basta à filial brasileira ser melhor que os europeus ocidentais. "O Brasil tem de ser mais competitivo do que China, Coréia e Índia" -- disse, ao constatar, de forma eufemística, que o Brasil não é líder em competitividade.


 


Por que China e outros países emergentes ampliam tentáculos enquanto o Brasil contabiliza majoritariamente investimentos de relativa atualização tecnológica? A resposta está nas perspectivas oferecidas aos investidores. A China é recordista mundial de incremento do PIB, o México usufrui de proximidade estratégica com os Estados Unidos -- locomotiva do mundo -- e os países do Leste Europeu acenam com taxas constantes de crescimento econômico.


 


Na contramão, o Brasil é campeão mundial de taxa de juro real e lidera também em relação à carga de impostos incidentes sobre o zero-quilômetro. De acordo com a Anfavea, a participação dos tributos no preço ao consumidor oscila de 25,7% nos automóveis de mil cilindradas a 34,2% nos modelos acima de duas mil cilindradas a gasolina. Ainda segundo a Anfavea, a média nacional de 29% de tributos é muito superior aos 16,6% da Itália, 16,4% da França, 14,9% do Reino Unido, 13,8% da Espanha e Alemanha, 9,1% do Japão e 6,1% dos Estados Unidos.


 


Se o juro estratosférico deprime o mercado interno num País em que 70% das vendas do setor dependem de financiamento, a dose cavalar de impostos tem efeito igualmente restritivo na medida em que encarece o produto sem gerar benefícios para os consumidores. Não à toa, a proposta de política setorial que a Anfavea entregou ao governo federal contempla esses dois nós górdios.


 


"A renda do consumidor é incompatível com os impostos. Precisamos trabalhar uma revisão da carga tributária, não só no tamanho, mas na distribuição. É necessário rebalancear os impostos que recaem na compra do veículo e aqueles cobrados ao longo da vida útil" -- reivindica Golfarb.


 


Custos elevados


 


Se o Brasil colidir com a China e outras nações emergentes, como prevêem Golfarb, Letícia Costa e Rick Wagoner, não é difícil entender por que o Grande ABC sofrerá os maiores estragos. Os salários dos metalúrgicos locais são comprovadamente mais elevados do que os de qualquer região brasileira de industrialização mais recente. Os vencimentos insuflados nos tempos de mercado fechado e cativo representam quase o dobro da média nacional, de acordo com levantamento realizado pelo Dieese (Departamento Inter-Sindical de Estudos Sócio-Econômicos) ligado à CUT (Central Única dos Trabalhadores). Essa distorção faz com que os investimentos migrem do Grande ABC para o Paraná, Rio Grande do Sul e Bahia. Assim como montadoras e fornecedores batem asas da Europa Ocidental rumo à Europa Oriental, onde os salários são mais baixos.


 


Além disso, entraves logísticos ao imprescindível just-in-time contribuem para minar a competitividade regional. Rogelio Golfarb elogia os esforços do presidente do Consórcio Intermunicipal e prefeito de São Bernardo, William Dib, pela materialização do trecho Sul do Rodoanel. Também afirmou de forma categórica -- durante almoço mensal da Anfavea em São Paulo -- que as montadoras do Grande ABC não serão alvos de investimentos voltados a aumento de capacidade produtiva. Significa que apenas investimentos de reposição como o recentemente anunciado pela General Motors na produção do novo Vectra terão vez no território que, para o bem e para o mal, carrega características de Detroit brasileira. O Vectra antigo amargava vendas declinantes de apenas 300 ou 400 unidades por mês, de modo que a GM não teve alternativa senão reanimar o modelo com intervenções estéticas e de engenharia concebidas no centro de desenvolvimento de São Caetano.


 


O pano de fundo da batalha internacional é a frustração da indústria automobilística em relação ao Brasil. Seduzidas por pacotes suculentos de incentivos tributários e creditícios, as montadoras investiram US$ 26,6 bilhões em novas plantas entre 1994 e 2002. Mas o boom da capacidade nunca foi justificado pelas vendas. No ano passado a situação melhorou um pouco com a produção recorde de 2,2 milhões de unidades. Ainda assim, a ociosidade permaneceu acima de 30% porque a capacidade instalada é de 3,2 milhões. "Algumas empresas colheram melhores resultados financeiros com o aumento da produção, mas para o setor como um todo 2004 ainda foi vermelho" -- afirma Golfarb.


 


Por isso, o robustecimento do mercado interno deprimido pela conjunção de renda baixa e juro alto desponta como bandeira da Anfavea na proposta de política setorial encaminhada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Golfarb não cansa de repetir que o Brasil precisa ter mercado doméstico forte para assegurar escala produtiva independentemente de intempéries internacionais que se tornarão severas diante do avanço de nações emergentes.


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