A velha relação de cortesia e amizade entre o gerente de banco da esquina e sua pequena clientela ficou há muito tempo para trás, mas é o mais próximo disso que o Grande ABC pretende chegar com a sugestão do economista Paul Singer de a região montar sua própria instituição financeira de fomento. O primeiro encontro para tomar o pulso de agentes sociais e econômicos em relação à idéia de Paul Singer, colocada a LivreMercado há dois meses, surpreendeu pela diversidade de propostas, embora o foco tenha sido um só: o Grande ABC precisa correr atrás de seu quinhão nesse mercado e ter um banco, um gerente, uma linha de crédito, um BNDES regional ou qualquer outra forma de interface exclusiva que conheça a fundo os problemas locais e faça a facilitação de créditos para que a economia dos sete municípios volte a ter brilho.
Um bom começo pode estar em exemplo dentro da própria região. O Bird (Banco Mundial) e o BIS (Banco para Pagamentos Internacionais, espécie de Banco Central dos bancos centrais) financiam dois projetos-piloto junto à Agência de Desenvolvimento Econômico, braço econômico da Câmara Regional. Um refere-se a ações de planejamento estratégico envolvendo censo econômico e outro é do Habitat, órgão das Nações Unidas. Programas locais são algo inédito nessas corporações, que só trabalham com grandes projetos nacionais" -- cita o economista e especialista em regionalidade Jeroen Klink, que iluminou vários caminhos na noite de debates promovida pelo Uni-A (Centro Universitário de Santo André).
O próprio BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) é alternativa que não deve ser descartada, sugere Klink. O banco federal também participa de experiência inovadora na função de uma das fontes de recursos do Banco do Povo de Santo André, instituição que reúne Prefeitura, Sebrae, Associação Comercial e Industrial e sindicatos trabalhistas. "Não se sabe se o BNDES é modelo ideal para a região. Só o fato de estar envolvido no microcrédito do Banco do Povo, no entanto, já é um diferencial em relação à sua tradição de grandes empréstimos e mostra que pode atuar em outras carteiras" -- afirma Jeroen Klink, assessor de Relações Internacionais da Prefeitura de Santo André.
Para que não esbarre em canetas de secretários e ministros, houve consenso de que o banco regional tenha estrutura física e de comando no Grande ABC. "Gostaria de uma estrutura local, e não meramente uma linha adicional do BNDES, para não termos os mesmos trâmites burocráticos" -- defende o presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em Santo André, Antonio Carlos Cedenho, que prefere deixar para segundo momento a organização jurídica da instituição e priorizar sua criação.
Cedenho apóia o sugerido perfil de agente fomentador intermediário entre Banco do Povo, de créditos minúsculos à informalidade, e macroprojetos lastreados pelo BNDES. "Sabemos que grandes projetos são movidos a articulações políticas e isso depende de representantes fortes que o Grande ABC não tem" -- pontuou.
O professor de Economia Brasileira do Uni-A, Luis Carlos Berbel, entende que o BNDES é menos burocrático e mais mal direcionado. Ironiza inclusive que há dinheiro para impulsionar a economia ao citar os quase US$ 600 milhões liberados pelo governo apenas para que o empresário Benjamin Stainbruch descruze sua participação acionária nas recém-privatizadas Vale do Rio Doce e Cia. Siderúrgica Nacional. "O que falta é vontade política para direcionar bem um projeto nacional de desenvolvimento, impulsionado sobretudo na pequena e média empresa" -- apontou.
Prefeituras deficitárias
Homem de boca de caixa, o secretário de Finanças da Prefeitura de São Bernardo, Dario Fini, preocupa-se com a origem dos recursos. A princípio, discorda que as sete prefeituras tenham o papel de âncora na geração de financiamentos. Argumenta em cima da fragilidade dos orçamentos municipais, a maioria deficitária. "Simbolicamente podemos participar, mas não no nível de 10% que São Bernardo põe no Banco do Povo do Município" -- ilustrou, referindo-se à carga majoritária na instituição que cabe ao Estado de São Paulo.
Para Dario Fini, tanto quanto o banco regional, o Grande ABC necessita empunhar a bandeira da reforma tributária para não perder investimentos com a evasão industrial. "Se a guerra fiscal não acabar, as empresas não vão parar de ir embora. A questão não é só ter acesso fácil a crédito" -- interpreta Fini, que sugere como próximo passo convidar os principais bancos públicos de fomento -- BNDES, Caixa Econômica e Banco do Brasil -- para conhecer o que fazem exatamente pelo Grande ABC. "Queremos linhas baratas, porque dinheiro caro qualquer banco tem" -- espeta Dario Fini.
Há anos o Grande ABC tem perdido a linha de frente dos investimentos, enquanto o Interior e outros Estados engasgam-se com afluxo de capital. Aos conflituosos anos 80, de embates entre capital e trabalho e saturação da infra-estrutura que levaram dezenas de empresas a fazer as malas, seguiu-se a longa e tenebrosa década de 90, em que as garras da globalização juntaram-se à estabilidade do Real e as duas tiraram na prova-dos-nove quem não sabia competir.
Só recentemente o Grande ABC voltou a figurar nas planilhas de investimentos de seu motor número um, a indústria automotiva, e tem visto aquecer a turbina número dois, a indústria química-petroquímica, após a seletiva privatização e o reagrupamento de forças que dão as cartas nessa área. O ponto central é que novas tecnologias enxugam cada vez mais empregos e otimizam cada vez mais os investimentos, com o aumento da produtividade. Some-se a isso o deslocamento da produção imposta pelas forças globais, que vão atrás de localidades com custos baratos.
A arrecadação regional tombou como jamais se viu antes e as políticas públicas nunca enfatizaram as vocações econômicas locais. O setor privado, de seu lado, continuou refém da política de juros altos.
É dentro dessa teia de conspirações que o Grande ABC volta a debater formas de relançar a economia. A proposta do economista Paul Singer e a iniciativa de LivreMercado de colocar o assunto na pauta regional são inéditas.
Um tipo de fundo de financiamento, que em nada lembra banco regional, chegou a ser cogitado em 1997 pelo grupo de recursos financeiros da então nascente Câmara do Grande ABC. Figurou entre as 100 ações regionais do primeiro batalhão, mas perdeu na corrida das 30 prioridades finalistas. Nos estudos de apoio, o FGTS e o FAT (fundos montados em nome dos trabalhadores) foram apontados como grandes fontes de arrecadação originárias dos altos salários pagos na região, mas que retornam a conta-gotas no custeio de empreendimentos locais. A seção regional do Dieese (Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconômicas) levantou que só em FGTS, em 1996, o Grande ABC teria gerado US$ 490 milhões. Se não tivesse perdido, a partir de 1989, os mais de 100 mil empregos apenas no setor industrial, o FGTS teria sido de US$ 609 milhões em 1996. Nesse mesmo ano, o Grande ABC teve financiados com recursos federais apenas 159 imóveis, ao custo de prosaicos R$ 3,1 milhões.
Em relação ao FAT, composto pela arrecadação do PIS/Pasep, a bolada chegou a R$ 217,2 milhões nos sete municípios da região em 1995, conforme o Dieese. O FAT responde por 40% do orçamento do BNDES e tem retornado ao Grande ABC em econômicas parcelas de financiamento de cursos de requalificação profissional de desempregados. O grupo da Câmara Regional chegou a propor em 1997 que 33% do FGTS gerado na região fossem aplicados na construção civil local.
"Precisamos recuperar a atuação de órgão de fomento que deu origem ao BNDES, em 1952. Na década de 90 o banco não apenas se distanciou do Grande ABC como de sua própria linha de ação. Enfatizou privatizações, financiou a abertura comercial sem critérios e lastreou fusões e aquisições de empresas numa década em que as organizações nacionais mais precisaram de apoio de agências públicas" -- protesta o economista Jefferson da Conceição, do Dieese regional. Jefferson trabalhou nos estudos para a Câmara Regional e tem bem claras as funções de um futuro intermediador financeiro no Grande ABC: apoiar a reconversão econômica, fomentar cooperativas, exportações e novas áreas de negócios como centros de reciclagem, além de custear empreendimentos de infra-estrutura. Sua proposta é de que se abra uma agência-piloto do próprio BNDES para atender prioridades definidas pela Câmara Regional: "Não adianta ser um agente do BNDES como os bancos comerciais, que só têm visão de rentabilidade, não de desenvolvimento" -- considera.
O diretor de Cursos do Uni-A, Jaime Guedes, programou para novembro a segunda rodada de debates para avançar no tema. A expectativa é ir fechando o foco sobre fontes de recursos e campos de atuação do pretendido organismo. Jaime Guedes se alinha aos críticos da baixa contrapartida de recursos públicos em relação ao que o Grande ABC produz: "Temos 2,3 milhões de habitantes, geramos 10% do PIB do Estado e nossos três Bancos do Povo não somam R$ 5 milhões" -- aponta. O executivo reforça suas propostas para que o agente de fomento tenha no centro do alvo empreendimentos que gerem emprego e renda, de tecnologia de ponta, voltados ao meio ambiente e à exclusão social.
O presidente do Fórum da Cidadania do Grande ABC, Fábio Vital, defende que o organismo tenha caráter sobretudo social. "Temos de nos direcionar para o desenvolvimento sustentado, não tanto para novos negócios sem controle ambiental. É importante discutir esse foco, porque banco por banco temos um monte no mercado" -- expõe Vital.
Transparência
Outro pré-requisito que ganha consenso é de que a gestão seja apartidária e mutissetorial, para sobreviver às trocas de cadeiras de prefeitos a cada quatro anos e aos humores de um colegiado restrito. "É preciso transparência total. A sociedade deve monitorar os recursos, como ocorre na Europa, onde as pessoas foram envolvidas nos projetos e os fiscalizam" -- relata o especialista em regionalidade, Jeroen Klink.
Sua visão é de que o Grande ABC deve priorizar o tema por dois motivos básicos. Um é que as cidades-região, como chama as localidades com força econômica e alvos do capital global, chamaram para si novas responsabilidades como geração de emprego e renda e políticas públicas para estimular pólos tecnológicos, recuperação econômica e reorganização produtiva, entre outros. Outra razão é que essas cidades, no Brasil, estão penalizadas com a centralidade tributária em Brasília, o que as impede de fazer um mínimo de planejamento estratégico para os novos desafios.
"A vantagem de um banco ou fundo estrutural de desenvolvimento local é justamente ter essa previsibilidade de fontes de financiamento, além da participação coletiva, com envolvimento de diversos atores interessados" -- interpreta, exemplificando com modelos europeus como os fundos de coesão social, focados sobretudo no desenvolvimento social, o Banco Europeu, que trabalha a fundo perdido nos moldes do Bird e BID, e os fundos estruturais da Comissão Econômica Européia para reconversão de áreas atrasadas, renovação produtiva e pólos vocacionais. São lastreados em dinheiro público e privado.
Fortalecer vocações é a viga-mestra que o advogado Mauro Russo mais preza em uma instituição financeira. Russo comandou o Departamento Jurídico do antigo Banco São Caetano, que ficou ativo por mais de 30 anos, até ser incorporado nos anos 80 pelo Banco Comercial do Paraná, por sua vez absorvido pelo Bamerindus, recém-adquirido pelo HSBC. "Tínhamos um posto de serviços muito atuante dentro da General Motors e trabalhávamos em total parceria com as Casas Bahia" -- lembra, citando o foco em empreendimentos locais.
O Banco São Caetano foi fundado pelas famílias Lorenzini, Marchesan e Silva como instituição comercial e chegou a somar 17 agências, inclusive uma em Jundiaí, outra em Itapecerica da Serra e uma na Capital. Tinha típico perfil de banco da vizinhança. Trabalhava com correntistas miúdos e graúdos, foi forte captador de cadernetas de poupança e, por isso, também vigoroso financiador de casas pelo BNH. "Nossa clientela era tão fiel que até hoje mantém conta no HSBC. Havia grande sinergia entre gerente e cliente, a conversa animada, a troca de experiências. Hoje é tudo totalmente impessoal. As grandes redes incentivam cada vez mais o homebanking para que a gente converse o máximo possível com máquinas, não com seres humanos" -- protesta Mauro Russo. Um banco local beneficiaria, a seu ver, sobretudo pequenas empresas da comunidade.
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