Economia

A Itália está muito mais
distante do que parece

MALU MARCOCCIA, ANDRÉ MARCEL DE LIMA E RAFAEL GUELTA - 09/10/2000

Os vagões da locomotiva que levou a Itália do pós-guerra a um porto econômico seguro, ninguém desconhece, foram as pequenas empresas. Para mover as composições, entretanto, foi preciso mais do que a estrutura ágil dos pequenos negócios. Os italianos souberam desenvolver uma aguçada percepção de modernidade -- e de sobrevivência -- ancorados de fato na integração.


 


São poucos os setores econômicos da Itália que não basearam jornadas virtuosas no poder mobilizador da união de esforços. É assim na forma de distritos industriais, de clusters, de associativismo ou de consórcios exportadores.


 


Enquanto no Brasil dezenas de empresas disputam o mesmo segmento e travam encardida concorrência entre si, os italianos ocupam posição de símbolos mundiais do melhor móvel, de reis do design, de grifes de calçados e de referência em máquinas para beneficiamento de madeira -- rivalizando nesse item com os prestigiados alemães -- porque souberam agregar todas as etapas da cadeia: do plantador de algodão, por exemplo, ao estilista de moda, passando pela confecção e pelo produtor de marketing do produto acabado.


 


"Na área de móveis se disseminam os contrats, como são chamadas as encomendas por empreitadas, do tipo chave na mão. Decoradores se especializam em projetos consorciados, por exemplo para ambientar um clube esportivo inteiro, hospital, hotel ou até um transatlântico, e mobilizam toda a cadeia nisso: do marceneiro ao arquiteto e projetista, do produtor de madeira ao lojista" -- conta Ignazio Cusmano, diretor do Instituto Professionale Di Stato Per LIndustria e LArtigianato, escola pública de formação de mão-de-obra e desenvolvimento de pesquisas voltadas ao setor. Não é à toa que a pequena e média empresa assinam 30% das exportações da Itália, ou uma montanha próxima de US$ 72 bilhões, enquanto os negócios minúsculos no Brasil não embarcam 2% do total brasileiro de US$ 50 bilhões.


 


Um pouco do que faz a Lombardia, a maior região italiana, ao norte do país, foi mostrado no mês passado no ABC Paulista em seminário bilateral, a fim de estimular o desenvolvimento de estruturas semelhantes. Foi uma goleada: as ações de sinergia na Itália entre Poder Público, entidades de classe e empresas privadas mostram que o Brasil está no jardim da infância do pragmatismo representativo.


 


As vocações de cada localidade italiana são tratadas efetivamente como estratégicas e estimuladas por meio de sociedades de capital misto (as SpA) nas quais capitais públicos dividem financiamentos com sócios privados. Esses sócios representam desde produtores e comerciantes da atividade até câmaras de comércio, profissionais liberais sem vínculos com o setor e bancos investidores, geralmente instituições de fomento que trabalham com crédito cooperativo, sem fins lucrativos.”


 


Temos os comitês de distritos que se reúnem a cada três meses para avaliar projetos de inovação e encaminhar os que são viáveis e interessantes às agências de financiamento. Nos comitês participam todos os agentes envolvidos com o desenvolvimento da localidade" -- relata Ignazio Cusmano.


 


Nação predominante católica, nem o padre da paróquia escapa de participar e abençoar todos os projetos. As escolas são a grande viga-mestra da economia italiana. Formam e qualificam mão-de-obra para o mercado e desenvolvem pesquisas sob encomenda para as empresas. "Esse é o segredo número um ainda hoje" -- propaga Ignazio Cusmano, lembrando que as escolas de desenho de móveis explodiram na Itália desde que, séculos atrás, a rainha da Áustria resolveu instalar sua vila real em Monza. "Camponeses, marceneiros e decoradores descobriram que precisavam se comunicar numa mesma linguagem e fizeram proliferar os centros de ensino. Jovens trabalhavam de dia e iam à escola à noite. Hoje não temos desemprego e falta mão-de-obra na Grande Milão, onde a população envelhece e diminui. De 10 moradores, quatro já são de fora" -- afirma o diretor.


 


Somente em Milão, Capital da Lombardia, há cinco universidades. Na província (Grande Milão), formada por 188 pequenos municípios com 3,7 milhões de habitantes, são sete universidades, que oferecem mais de 100 cursos de graduação. Ali se desenvolvem cerca de 25% das pesquisas científicas italianas, feitas por diferentes departamentos universitários, espaços renomados como Instituto de Física Nuclear e Conselho Nacional de Pesquisas, além de laboratórios e centros de pesquisas que funcionam dentro das empresas. No Instituto Professionale Di Stato uma das inovações recentes é a madeira com cor, imersa na tonalidade desejada, o que dispensa a pintura do móvel acabado.


 


Na indústria química, outra força econômica local, um dos destaques é o Clube de Tecnologia, montado há três anos como alternativa ao financiamento via bancos. É espécie de fundo de capital de risco, ao qual pesquisadores que têm idéias -- mas não dinheiro -- apresentam seus projetos. Desde 1997 houve 16 reuniões, que atraíram mais de 800 participantes de empresas interessadas em investir em novidades. Dos 84 dossiês apresentados, 24 foram aprovados e estão consumindo cerca de US$ 45 milhões, segundo  Paolo Manes, gerente do Departamento Econômico do Circ SpA (Centro Per LInnovazione e La Ricerca), um braço da poderosa Federchimica.


 


O Circ dedica-se à pesquisa e transferência de tecnologias e é formado pelas Câmaras de Comércio de Milão e Turim e pelas associações da indústria química e da Lombardia. O Circ se debruça hoje em outros dois pontos que considera centrais para as 1,4 mil indústrias que representa, além do Clube de Tecnologia: os clusters do setor e o Programa Química 2000, financiado pelo Ministério da Indústria, que custeia inovações setoriais,  o fortalecimento de negócios e dá assistência à certificação ecológica ISO 14000.


 


Não é por acaso, como se vê, que a Itália tem PIB (Produto Interno Bruto)  duas vezes maior que o Brasil com praticamente um terço da população local: os 58 milhões de italianos geraram riquezas no valor de 980 bilhões de Euros -- ou pouco menos de US$ 980 bilhões -- contra US$ 400 bilhões pelo conjunto de 160 milhões de brasileiros. Significa que o citadino (cidadão) italiano produz, em média, seis vezes mais do que o brasileiro. E em território diminuto se comparado ao País tropical de dimensões continentais. 


 


É cristalino verificar que o que separa italianos desenvolvidos de brasileiros em eterno desenvolvimento é a cultura da organização e da valorização da integração de atores econômicos. Isso  faz com que interesses individuais sejam subordinados à mais eficiente mobilidade coletiva.


 


Na década de 70, a cidade de Milão e de municípios da província sofreram forte fechamento de empresas e evasão industrial com a globalização que já se anunciava. Somente Milão perdeu 400 mil habitantes, embora continue sendo o Município mais populoso da localidade, com 1,3 milhão de moradores. Toda a Lombardia, com 545 municípios e nove milhões de habitantes, é considerada hoje a área de maior desenvolvimento industrial da Itália, inclusive com Bolsa de Valores própria. Os distritos industriais foram divididos em 21 encabeçados pelos setores metal-mecânico (22,8% da força de trabalho), têxtil (8,5%), máquinas (4,8%) e vestuário (4,3%). São 200 mil empresas, 92% operando com menos de 10 trabalhadores. O PIB da província corresponde a 20% do total da Itália.


 


Mão forte à exportação


 


O Cemb (Consorzio Export Monza & Brianza), apresentado durante o Projeto ABC/Milano pelo diretor Patrizio Fiombo, é outro símbolo da mentalidade aglutinadora responsável pela transformação em potência econômica do país considerado patrimônio histórico da humanidade. Criado em junho de 1980 pela associação industrial das cidades de Monza e Brianza, que tem 850 associados, o Cemb é típica lição de associativismo. Sediado em Monza, o consórcio assiste 160 pequenas indústrias de 12 setores mercadológicos nas diversas fases do processo de internacionalização, promovendo a imagem corporativa e os produtos por todo o mundo através de participação em feiras, missões econômicas e outras iniciativas promocionais.


 


 "As feiras são ferramentas imprescindíveis de prospecção de novos mercados" -- considera Patrizio Fiombo. Já as missões econômicas representam oportunidades para pesquisar  mercados estrangeiros, buscar agentes financiadores, importadores e distribuidores, descobrir novos fornecedores de matérias-primas, absorver ou repassar tecnologia e, naturalmente, vender produtos e estabelecer associações ocasionais para explorar nichos de mercado ou novas oportunidades, como são chamadas as joint-ventures.


 


Neste ano o consórcio  promoveu missões em recantos diversos do planeta, como Dinamarca, Suíça, Estônia, Lituânia, Letônia, África do Sul, Egito, Canadá e Austrália. Até o final do ano as indústrias de Monza e Brianza serão representadas no Líbano, Síria, Jordânia, Vietnã e Tailândia, além de Singapura, Malásia, Filipinas, Chile e Colômbia.


 


Nem só grandes questões são contempladas no escopo de atribuições do Consorzio Monza & Brianza. Muitas atividades do cotidiano das pequenas e médias organizações são facilitadas por meio de esforço associativo. Exemplo é a parceria estabelecida com a companhia de táxi Santambrogio para servir executivos em constantes deslocamentos para os aeroportos de Linate, Malpensa, Orio al Serio e Milano, todos na região da Lombardia. O serviço é estendido aos clientes internacionais das empresas associadas. Trata-se de ação de marketing corporativo que apenas quem já se sentiu desamparado ao chegar ao aeroporto de um país desconhecido conhece o valor.


 


Firmando contratos


 


O consórcio também firmou contrato com duas das maiores organizações de entregas rápidas do mundo -- a United Parcel Service (UPS) e a SDA Express Courier -- para colocar serviço de envio de documentos e pacotes à disposição das 160 indústrias associadas em condições especiais. Outros serviços de base oferecidos pelo Cemb  são tradução de documentos, contratos e manuais, e disponibilidade de intérpretes para feiras e tratativas comerciais. Nesse caso, o consórcio tem como parceira a Servizi Estero, uma das poucas do setor de tradução e interpretação certificadas em ISO 9002.


 


O espectro de atribuições consorciadas também abrange qualificação profissional, viabilidade de crédito para exportação e levantamento de informações comerciais reservadas. Formação e atualização dos recursos humanos são atividades consideradas de primeira necessidade pelos conselheiros do Consorzio Monza & Brianza, devido à necessidade de adaptar-se com agilidade às inovações organizacionais por conta da globalização.


 


Os principais cursos à disposição das indústrias são marketing e vendas, marketing na Internet, automação comercial, processo de qualidade da empresa e dos produtos, administração, finanças e controle, além de línguas como inglês, francês e alemão. Os parceiros na área de formação e atualização são Servizi Estero, na área de línguas, e a Morgan & Ashley, sediada em Milão.


 


No setor de crédito para exportação o consórcio estabeleceu parceria com a Euler Siac, especializada em empréstimos, gestão de recursos e assistência. O serviço de informações comerciais reservadas é requisitado sempre que as indústrias italianas estão de olho em potencial parceiro estrangeiro. "É importante conhecer a empresa a fundo antes de firmar contrato de distribuição ou assinar cheque de ordem de compra. Recolhemos o maior número possível de informações financeiras e societárias" -- considera Patrizio Fiombo. Os dados chegam às associadas por meio de multinacional líder no setor, a Dun & Bradstreet Kosmos.


 


Design versus manufatura


 


Imbatíveis no design mundial e também experts em várias tecnologias industriais de ponta, os italianos que participaram do Projeto ABC/Milano mostraram aos moveleiros brasileiros quais papéis o futuro reserva a países do Primeiro e Terceiro Mundo na economia globalizada. Com forte presença no mercado mobiliário norte-americano, propuseram a industriais do ABC Paulista parceria em manufatura de móveis para exportação que expressa as diferenças sem menor sutileza.


 


Aparentemente o plano é simples, até porque contempla características e qualidades dos dois protagonistas. Os italianos comprometem-se a transferir design e tecnologias de ponta. Como autores intelectuais, reservam-se o papel de negociadores estratégicos dos produtos Brasil/Itália para mercados como o dos Estados Unidos, que exigem qualificação e alto valor agregado. Aos brasileiros, que não têm tradição em design e carecem de tecnologias, sobram as tarefas de manufaturar e garantir matéria-prima.


 


A parceria é conveniente para a indústria moveleira italiana, que vive às voltas com dificuldades para importar matéria-prima de qualidade -- em grande parte originária do Brasil --  e quer poupar-se de salários cada vez mais altos. Para os moveleiros, é oportunidade singular de abrir espaço em mercados disputadíssimos e exigentes. Além disso, acende a esperança de que a indústria brasileira de móveis um dia venha a ter personalidade própria no mundo globalizado.


 


Paolo Sacchi, diretor de Marketing para Globalização da Promos, divisão especial da Câmara de Comércio de Milão para atividades internacionais, é um dos executivos italianos autores da proposta. Para ele, os móveis brasileiros ainda estão longe do padrão de qualidade exigido por mercados como os Estados Unidos. "O primeiro passo, caso a parceria se concretize, será a vinda de especialistas italianos para introduzir novos sistemas produtivos nas indústrias" -- afirma. Sacchi defende a tese de que design é qualidade que só se transfere se houver simultaneamente revolução na cultura do receptor.


 


Etapas a queimar


 


O executivo da Promos participou do Projeto ABC/Milano como palestrante e coordenador de rodadas de negócios. As palestras sinalizaram que o Brasil terá ainda de queimar muitas etapas para atingir o grau de produtividade e competitividade internacional de Milão. Em termos de atitude econômica e realizações para se adequar ao mundo globalizado, há pouca identidade. Comércio e serviços, que estão em fase de crescimento no ABC Paulista, respondem por 70% da economia de Milão. Às indústrias cabe participação de 28%, com os restantes 2% a cargo da agricultura, extremamente automatizada.


 


"Nosso principal trunfo para ter vez no mundo globalizado são clusters constituídos por pequenas e médias empresas, nos quais se dissemina a prática da coopetição (termo recente que designa competição cooperativa)" -- afirma Paolo Sacchi.


 


O que faz diferença nos clusters italianos é o esforço de empresas e entidades empresariais em disponibilizar tecnologias para todos em igual intensidade. "Cada cluster tem institutos específicos. O de móveis ministra cursos que formam profissionais altamente qualificados em manufatura de produtos. É também nos institutos que as empresas desenvolvem novas tecnologias e repartem conhecimentos. Quanto mais o cluster opera com o mesmo grau coletivo de capacitação tecnológica, maior é o desempenho individual de cada corporação. Acabou o tempo do segredo industrial. Quem quer sobreviver na nova economia, precisa saber competir cooperativamente" -- explica o diretor de Marketing da Promos.


 


Hermes Soncini, presidente do Sindicato da Indústria de Móveis do ABC Paulista, reconhece que a região despertou tarde para a competitividade e o que o retrato do setor não é animador: só 15% das estimadas 450 empresas locais  têm equipamentos no mesmo degrau dos europeus, 60% estão apenas semiautomatizadas e o restante é essencialmente artesanal. "No período de alta inflação no Brasil, quando os moveleiros priorizaram o varejo em lugar da produção, um ponto em shopping chegou a custar US$ 300 mil e a montagem de uma loja outros US$ 150 mil. Se esse investimento fosse para a fábrica, sem dúvida estaríamos mais avançados" -- expõe.


 


Hermes Soncini acredita que o esforço de revitalização ao qual se debruça há três anos colocará o setor de volta à tradição econômica do passado. Menciona os treinamentos e as introduções de novos processos feitos em parceria com o Sebrae, as alianças com USP e Uniban em torno de desenvolvimento de design e o consórcio exportador em formação por 10 empresas, impulsionadas pelo programa Móvel em Ação da USP.


 


Sesto San Giovanni,  distante 11 quilômetros de Milão, expôs exemplo de reindustrialização que pode servir de parâmetro às localidades paulistas prejudicadas com a evasão de fábricas. Vinte anos atrás Sesto era grande pólo de indústria siderúrgica, que respondia por mais de oito mil postos de trabalho. A globalização e a reengenharia que automatizou e enxugou empresas golpearam a cidade a ponto de o desemprego, dois anos atrás, bater em 10%, número alarmante para padrões italianos.


 


A reação da cidade italiana começou com a criação da Agência de Desenvolvimento Econômico, que estimula a criação de distritos industriais constituídos por pequenas e médias empresas de conteúdo tecnológico.


 


Dois distritos em fase de clusterização já estão consolidados em Sesto nas áreas de informática e telecomunicações, informa Massino Piemonte, assessor do prefeito. Para se instalar nessas áreas, pequenas e médias empresas receberam ajuda financeira e logística da Agência. Terrenos com completa infra-estrutura instalada foram vendidos a US$ 100 o metro quadrado, preço baixíssimo para os italianos. As empresas receberam ainda empréstimo a fundo perdido equivalente a 15% do valor total do investimento para aquisição de maquinário.


 


A Agência de Desenvolvimento Econômico de Sesto San Giovanni é uma sociedade anônima que tem entidades civis e públicas como acionistas. A Prefeitura da cidade é acionista majoritária. Parte dos recursos que repassa aos empresários é proveniente de financiamentos da União Européia.


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