Economia

Cuidado! Querem
mudar a realidade

DANIEL LIMA - 05/12/1998

Cuidado com o que vem por aí! O festival de dissimulação que sempre cerca pesquisas socioeconômicas, principalmente quando está em jogo a reputação de governantes e aliados, pode ganhar mais um capítulo este mês, quando a Fundação Seade (Sistema Estadual de Análises de Dados), braço estatístico do governo do Estado, anunciar os resultados de histórico levantamento estadual, com detalhamento numérico do Grande ABC.


 


O risco que se corre não é apenas de dissimulação, mas também de manipulação interpretativa por parte de agentes políticos interessadíssimos em tentar provar o impossível: que a região e o Estado não sofreram profundos derramamentos econômicos nas duas últimas décadas. O grave é que, se a recém-criada Agência de Desenvolvimento Regional trabalhar sobre bases equivocadas, vai para o ralo qualquer tentativa de reerguer o Grande ABC.


 


Dissimulação e manipulação são faces da mesma moeda de conchavismos políticos. É possível que novas arremetidas para tentar dourar a pílula do Grande ABC sejam perpetradas com a prestidigitação da pesquisa. Por incrível que possa parecer, não estão fora de cogitação algumas aberrações analíticas. Alguns atores públicos são capazes de repetir cantilenas desmoralizadas mas sempre redivivas, como a de que não passaria de engano o esvaziamento econômico do Grande ABC e, acreditem, que o mesmo sindicalismo revolucionário do final dos anos 70, que em muito contribuiu para a redemocratização do País, não tem peso significativo na debandada industrial da região, depois de exagerar na dose de reivindicações e greves.


 


Esse evidente desvio síndico-trabalhista, reconhecido nos últimos tempos pela sensatez de lideranças sindicais, soma-se ao custo da mão-de-obra, à infra-estrutura viária desgastante e antiprodutiva, ao elevado valor do metro quadrado de terreno e também às restrições ambientais, entre outros fatores, como instrumento de notória hostilidade ao empresariado no Grande ABC ao longo das duas últimas décadas.


 


Nenhuma outra publicação brasileira tem-se debruçado sobre o histórico de fragilização econômica do Grande ABC como esta revista, pioneira em detectar e em denunciar as fissuras no império industrial mais poderoso do País, bem como suas  repercussões e desdobramentos socioeconômicos. O que o leitor vai acompanhar em seguida é uma espécie de resumo de boa parte do material já publicado e que ganha nova roupagem interpretativa, sem fugir da essência de realismo.


 


Este trabalho é espécie de salvaguarda contra eventuais dissimulações, manipulações e conchavos que podem desaguar depois do anúncio dos dados da Fundação Seade. Enfim, é um dique contra possível enxurrada de aventurismos interpretativos que procurariam negar o inegável: tanto o Grande ABC quanto o Estado de São Paulo já não são as potências de 20 anos atrás.


 


Primeiro nocaute


 


A redistribuição das quotas-parte do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) é uma das ferramentas que medem o grau de desenvolvimento econômico de uma região, de um Estado e mesmo de um País. Aqui o Grande ABC sofre o primeiro nocaute. Um duro nocaute. Sem direito à mordida Miketysiana. Apesar de ter vivido nos últimos anos espécie de boom de arrecadação de impostos em quase todos os Municípios por causa dos efeitos consumistas do Plano Real, da explosão do setor de veículos e da lubrificação dos dispositivos da fiscalização estadual e federal que apertam o cerco nos grandes centros econômicos, o Grande ABC continua a contabilizar perdas. Uma comparação ponta a ponta do repasse de arrecadação da quota-parte do ICMS entre os anos de 1982 e 1997 revela que a região perdeu 10% de receita.


 


Esse número, que já merece reflexão, é agravado pela indispensável acoplagem da taxa de crescimento cumulativo da população no período, conforme Censo do IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que registra 27%. Ou seja: o Grande ABC de 1997, conforme o índice de participação de ICMS definido pela Secretaria da Fazenda do Estado, recebia por habitante exatamente 37% menos que em 1982. 


 


Considerando-se que o ICMS é a principal fonte de recursos municipais, com participação média superior a 60% do orçamento, não é difícil entender o quanto esse duplo fosso de mais população e menos participação relativa na arrecadação sugere de inquietação social. Embora preocupante, o resultado da comparação ponta a ponta ainda não espelha de forma absolutamente consistente a realidade de perdas do Grande ABC.


 


Se a comparação for encadeada ano após ano no período, os números serão ainda piores. O total da participação regional no repasse do ICMS é declinante ano a ano em quase todo o período. Em apenas cinco dos 16 anos pesquisados o índice regional supera o do período imediatamente anterior, sem considerar nesse breve intervalo o aumento da população. O índice de repasse guarda estreita relação com a capacidade arrecadadora do imposto, que, por sua vez, está ancorada no nível de atividade econômica de cada localidade.


 


No ano passado, segundo dados publicados pelo Diário Oficial do Estado de São Paulo, o Grande ABC recebeu de repasse de ICMS total de R$ 616.895.553,00. Considerando-se que a participação da região no índice estadual de redistribuição desse imposto atingiu 11,0313% em 1996 e que a população alcançou 2,250 milhões de habitantes, a perda ponta a ponta em relação a 1982 atingiu a 37%, isto é, os 12% de declínio no índice de repasse do ICMS somado aos 25% de taxa cumulativa de aumento da população.


 


Uma simples conta dá a dimensão da perda financeira da região: basta multiplicar o total de repasse pelos 37% de perdas por habitante e se chega a R$ 227 milhões. Trocando em miúdos: se a região tivesse mantido no ano passado o índice global de participação de 1982 na redistribuição do ICMS, o volume total não seria de R$ 616.895.553,00, mas sim desse valor acrescido de 37%, o que corresponderia a R$ 845.146.900,00. A diferença de R$ 227 milhões significa em valores absolutos quase o orçamento da Prefeitura de Santo André para este ano. Isto é: perdeu-se uma Santo André inteira de arrecadação no período.


 


A esperança de que a situação melhoraria em 1998, pois a redistribuição do ICMS leva em conta os resultados do ano anterior, acabou frustrada. O índice de participação do Grande ABC caiu de 11,2099% alcançado no ano passado para 10,1680%. A diferença representa 9,29% de declínio. Com isso, aumentou o abismo da comparação ponta a ponta, tendo 1982 como princípio. Aos 17,7% de perdas monetárias no bolo de repasse do ICMS se soma o aumento da população no período. Arredondando as perdas, chega-se a 43% por habitante em menos de duas décadas.


 


Santo André é o Município mais atingido pela debilidade tributária. Ao cair de 3,1540% registrado em 1982 para 1,7370%, acusou queda de 55%. São Bernardo sofreu baque menos intenso: caiu de 4,9163% para 4,27905%, ou seja, 13%. São Caetano caiu 32%, de 1,544% para 1,1680%. Mauá manteve-se estável com participação de 1,2670% em 1982 e de 1,2640% em 1997. Diadema e Ribeirão Pires apresentaram discreto crescimento: Diadema de 1,2125% para 1,4200% (mais 15%) e Ribeirão Pires de 0,2047% para 0,2600% (mais 8%). Rio Grande da Serra mantém participação residual de 0,038%.


 


O Valor Adicionado no Estado de São Paulo referente ao ano-base de 1996, divulgado no Diário Oficial do Estado e utilizado para estabelecer o Índice de Participação de 1997, atingiu quase R$ 165 bilhões. O Grande ABC contribuiu com pouco mais de R$ 18 bilhões, ou seja, 11% do total estadual, ou perto de 4,5% do total nacional. O consultor Ary Silveira, diretor da ASPR Assercon, estima em R$ 1,8 bilhão o total da queda em valores monetários.


 


Apenas Diadema melhorou de posicionamento no ranking estadual do ICMS, passando do 13º para o 10º lugar. São Bernardo e Santo André permaneceram nos respectivos postos e os demais apresentaram queda: São Caetano era 11º e caiu para 16º, Mauá era 10º e baixou para o 13º e Ribeirão Pires era 52º e desceu para o 53º lugar.


 


A incidência do Valor Adicionado na formulação do ICMS é preponderante. Seu peso é de 76% na definição do índice. O que é Valor Adicionado? É a diferença de valor entre a saída e a entrada das mercadorias, serviços de transporte e de comunicação. O peso da indústria é decisivo porque gera mais riquezas, agrega mais valor à economia. Um péssimo negócio para o Grande ABC, que sente o crescimento do setor terciário -- comércio e serviços -- no bolo de arrecadação não só porque descobriu nova vocação, mas principalmente por causa das evasões e quebras industriais.


 


A força da indústria automotiva no Valor Adicionado está mais uma vez confirmada, o que desmistifica qualquer tentativa de minimizar a relevância da participação das montadoras e das autopeças nos debates que envolvem as questões regionais. São Bernardo conseguiu sustentar posição no ranking graças ao setor automotivo, assim como Diadema deu um salto, já que concentra em seu parque fabril grande número de autopeças diretamente relacionadas ao abastecimento das montadoras.


 


Prova de que a indústria automotiva infla os números de arrecadação está no Vale do Paraíba: Taubaté passou do 25º para o 20º lugar no ranking estadual. A evolução tem sido constante, já que em 1995 seu Índice de Participação atingia 0,5031% no Estado de São Paulo, no ano seguinte passou para 0,6246% e agora está em 0,7999%. Um salto de 59% no período.


 


São Bernardo e Diadema representam, juntas, 60% do PIB do Valor Adicionado do Grande ABC. Quase metade (45%) é de responsabilidade de São Bernardo. Diadema contribui com 15,33%, um pouco menos que os 15,47% de Santo André. Mauá está na frente de São Caetano com 11,23% contra 10,50%. Ribeirão Pires participa com 2,29% e Rio Grande da Serra com míseros 0,29%.


 


Mesmo com perdas históricas, cinco dos sete Municípios do Grande ABC estão entre os 16 melhores do ranking estadual do Índice de Participação do ICMS. São Bernardo está em segundo lugar, Santo André em sexto, Diadema em 10º, Mauá em 13º e São Caetano em 16º. Ribeirão Pires aparece em 53º lugar e Rio Grande da Serra não integra a lista dos 100 maiores. A lista é liderada pela Capital, com 26,9199%. Guarulhos está em terceiro com 4,0444%, Campinas em quarto com 3,0274, São José dos Campos em quinto com 2,8203%, Paulínia em sétimo com 1,7131%, Barueri em oitavo com 1,4939% e Cubatão em nono com 1,4454%.


 


Dados sistêmicos


 


Uma das mais recentes estocadas oficiais para escamotear as perdas do Estado de São Paulo e do Grande ABC teve como autor o diretor adjunto de Produção de Dados da Fundação Seade, Luiz Henrique Proença Soares. Ele considerou mistificação o esvaziamento econômico da região ao esgrimir sem destreza o índice de produção industrial do Grande ABC no Estado de São Paulo. Esse indicador alcançou 15,8% em 1995, contra 15% em 1985. Ele concluiu pela estabilidade industrial, subestimando todos os demais dados e realidades práticas ao tomar as duas pontas de estudo divulgado dias antes pela Secretaria da Fazenda do Estado.


 


Luiz Henrique Proença optou por base de comparação que por si só condena a argumentação. Em 1985 o Brasil vivia tempos de recessão e de inflação elevada, que inclusive deu origem ao Plano Cruzado. A produção automotiva nacional, pela qual a região responde por cerca de 50%, atingia 966,7 mil veículos. Em 1995, sob os auspícios da estabilidade do Plano Real, o Brasil nadava de braçadas em ondas de euforia. A indústria automobilística batia recordes de produção e vendas. Chegava a 1,629 milhão de veículos. Nada menos que 68% de acréscimo em relação a 1985. Tradução evidente: mais impostos arrecadados.


 


Mesmo considerando verdadeira a premissa do diretor do Seade, as perdas estariam clarificadas porque a economia regional, sempre atrelada a subidas e descidas de acordo com períodos de fertilidade ou de esterilidade automotiva, não evoluíra relativamente a outras regiões. O que ocorrerá então quando a maré mudar, como está mudando?


 


Ao se referir à estabilidade da produção industrial do Grande ABC comparativamente ao Estado de São Paulo, o pesquisador do Seade também desconsiderou o País como referência tão indispensável quanto sistêmica. No período em que se prende o estudo, o Estado de São Paulo perdeu 9,2% de participação no PIB nacional, conforme anunciou alguns dias antes o IBGE. Em valores atuais, para se ter dimensão do rombo, São Paulo contabilizará este ano, se considerada a queda até 1995, perdas de mais de R$ 70 bilhões. Bilhões mesmo.


 


O técnico do Seade não levou em conta, em sua avaliação, o fato de o Estado de São Paulo fazer parte do Brasil e de o Grande ABC integrar o Estado de São Paulo. Uma estabilidade participativa da produção industrial num Estado que emagreceu 9,2% em participação nacional tem o significado acaciano de perdas. Muitas perdas. Ainda mais quando estudos da Secretaria da Fazenda do Estado concluíram que a Região Metropolitana de São Paulo baixou participação relativa no Valor Adicionado do Estado de 64,3% para 51,79% no mesmo período evocado pelo técnico do Seade. Quem tinha 64,3% e fica com 51,79% perde 24%. Para onde foram os recursos financeiros e os investimentos senão para o próprio Interior do Estado e principalmente para outros Estados?


 


Entre 1985 e 1995, a região de Campinas, pólo de tecnologia e de diversidade industrial que o Grande ABC inveja, passou de 15,16% para 21,47% em termos de participação relativa no Estado. Isso dá exatamente 41,6% de avanço. A região de Sorocaba deu salto parecido, passando de 4% de produção industrial para 5,29% do total do Estado -- mais 32,2%.


 


O Grande ABC conseguiu manter-se estável exclusivamente no Estado nesse período diante da debácle dos demais Municípios da Grande São Paulo porque a indústria automotiva praticamente duplicou a produção no período. Protegidas por alíquotas de importação elevadas, as montadoras apertaram o cinto das pequenas e médias autopeças para o enfrentamento da concorrência internacional. Resultado: muitas pequenas e médias autopeças desapareceram ou enxugaram o quadro de funcionários, seguindo exemplo das próprias montadoras. Tanto que -- o número é do próprio técnico do Seade -- dos 602 mil empregos formais na região em 1989, restaram 505.664 ao final de 1995.


 


Também pesaram a própria terceirização industrial, que gera mais transações comerciais e impostos no setor industrial, e as verdadeiras blitze arrecadatórias do governo estadual, concentradas em regiões mais densamente ocupadas por agentes econômicos, o que racionaliza e potencializa os resultados. Como se sabe, o Grande ABC é o alvo preferencial da fiscalização estadual, além da federal.


 


Segundo nocaute


 


O consumo de energia elétrica, outro indicador do pulsar socioeconômico, representa o segundo nocaute do Grande ABC. Um comparativo que leve em conta o período de quatro anos, quase todo sob as transformações do Plano Real, confirma que a região continua sofrendo perdas na principal atividade de desenvolvimento econômico. Entre 1994 e 1997, o Grande ABC apresentou queda de 3,6% no consumo de energia elétrica industrial, contra crescimento das concessionárias estaduais do Interior -- 5,5% da Bandeirantes, 21% da CPFL e 15% da Elektro, privatizada recentemente. Nesse período, o PIB nacional cresceu à média de 4% ao ano.


 


O resultado é duplamente preocupante quando se considera que o próprio Estado de São Paulo está perdendo participação relativa no bolo produtivo nacional por força da desconcentração econômica gerada pela guerra fiscal. A situação do Grande ABC só é menos grave que a do restante da Região Metropolitana de São Paulo, atendida pela Empresa Metropolitana de Energia, que registrou perdas de 6,9% no mesmo período. É evidente que novamente pesou nessa diferença favorável à região o fato de as montadoras de veículos da RMSP, todas concentradas no Grande ABC, terem duplicado a produção no mesmo período.


 


O rebaixamento da participação do consumo de energia elétrica industrial no Estado, confrontado com outras atividades, confirma a perda de competitividade da indústria paulista. Em 1994 as indústrias consumiam 54% da energia disponível e no final de 1997 tiveram esse naco reduzido para 44% -- menos 22%.  O êxodo industrial de São Paulo, principalmente em direção a Minas Gerais e Paraná, está provocando a contrapartida do crescimento relativo do índice de participação do consumo de energia elétrica no setor comercial e de serviços, que atingiu 16% no Estado.


 


As mudanças por que passam as matrizes econômicas do Grande ABC não estão consolidadas apenas na queda da produção industrial. O estudo aponta crescimento de 40% no consumo de energia elétrica no comércio e nos serviços da região nos últimos quatro anos. Embora elevado, o índice é inferior ao avanço em todo o Estado, que atingiu 46,6%, com a média de 42,2% na Região Metropolitana e de 53% no Interior.


 


Também o consumo residencial aumentou nos últimos quatro anos avaliados pelo estudo. Passou a ocupar 28,3% de toda a energia elétrica do mercado paulista, com crescimento de 37,2% no período. Igualmente acima do Grande ABC, que atingiu 25%.


 


O consumo global de energia elétrica sempre se apresentou como interessante truque de conhecidos ufanistas regionais que se lançaram à inglória luta de tapear a platéia quanto à irreversível queda industrial. A fórmula adotada era simples, porque se baseava no consumo total do insumo, sem segmentá-lo por atividade econômica e sem levar em conta o crescimento demográfico. As quedas de consumo industrial de energia elétrica eram mais que compensadas pela demanda de emergentes atividades terciárias e residenciais. Principalmente com o advento da explosão de uso de aparelhos eletroeletrônicos, democraticamente ao alcance de todos com a estabilidade monetária do Plano Real e as facilidades de financiamentos, embora a custos muitas vezes extorsivos.


 


A imaginação de quem pretendia iludir os incautos quanto à metamorfose econômica do Grande ABC também se deslocava para o aparentemente sólido argumento do quadro numérico de unidades industriais em atividade. Quem se debruçar sobre esse mais recente estudo observará que o Grande ABC contava com 5.985 indústrias em 1994, contra 6.327 em dezembro do ano passado. O aumento de 6% é enganoso, porque esconde fenômeno destes tempos de globalização -- a terceirização muitas vezes autofágica, outras vezes salvadora. Pequenas e microempresas aparecem no cenário produtivo para abastecer cadeias de médias e grandes. Antigos funcionários viraram empreendedores.


 


O rebaixamento dos níveis de consumo de energia industrial, a queda de participação relativa no ICMS e as estatísticas de desemprego são indicativos mais que suficientes para implodir eventuais novas manobras diversionistas dos fazedores de ilusão.


 


Mas nem mesmo o processo de terceirização enraizado na administração das empresas de médio e  de grande porte conseguiu evitar o decréscimo do número de indústrias nesta década. Também com base nos indicadores da Secretaria de Energia do Estado de São Paulo, o Grande ABC contava em 1990 com 6.516 indústrias. Comparadas com as 6.327 de dezembro de 1997, a queda atinge a 10%. Perceberam como uma restrição temporal de dados altera os resultados? Entre 1994 e 1997 o resultado é completamente diferente do que se tem entre 1990 e 1997. O que é inegavelmente uma perda histórica pode se transformar em ganho se o período de avaliação for convenientemente manipulado. É assim que muitos costumam fazer.


 


Já o setor terciário viveu fase de explosão, decorrente principalmente da saída encontrada por operários e executivos que perderam emprego industrial. Em 1990 havia 38.252 estabelecimentos de serviços e comércio na região, contra 55.305 no final do ano passado -- ou seja, crescimento de 45%. Mais de 17 mil novos negócios em comércio e serviços se consolidaram na região no período, dos quais 5.816 desde o Plano Real. Desde 1990, 177 novos negócios tornam-se realidade na região a cada 30 dias.


 


Não entram nessa operação matemática os negócios que degringolaram, porque desaparecem da lista de consumidores de energia elétrica. Nem se pode afirmar que essa enxurrada de novos CGCs signifique desenvolvimento econômico.


 


A baixíssima capacidade de geração de riqueza dos setores comercial e de serviços e o canibalismo decorrente desse afluxo desmesurado de novos negócios, sem políticas públicas e associativas específicas de viabilidade econômica, converteram boa parte dos empreendedores em operadores de negócios de subsistência. Uma espécie de nordestinização empresarial, neologismo cuja raiz é a semelhança urbano-econômica de considerável parcela do território do Grande ABC com capitais do Norte-Nordeste em que prevalecem estabelecimentos de pequeno porte.


 


São Caetano simboliza de forma mais radical o rebaixamento de consumo de energia industrial no Grande ABC. Desde 1990 o Município perdeu metade do consumo, superando largamente Santo André, cuja queda atinge 11,4% no mesmo período. Os dois Municípios acusaram quebra do consumo absoluto, enquanto São Bernardo, Mauá e Rio Grande da Serra mantiveram o desempenho. Diadema aumentou em 25% e Ribeirão Pires em exíguo 1,7%. Esses números aparentemente positivos esboroam diante da constatação do crescimento acumulado de 23% do PIB do País no mesmo período. Desta forma, as perdas econômicas reais embutidas na redução do consumo de energia elétrica industrial vão muito além dos 3,6%, já que há relação estreita entre o nível de atividade econômica industrial e o uso desse insumo.


 


Terceiro nocaute


 


A intermitente dieta do emprego industrial no Grande ABC ganha a forma de terceiro nocaute conectado à sustentação de análises que detectam o esvaziamento econômico, somando-se aos indicadores do ICMS e do consumo de energia elétrica. Os três principais setores econômicos da região -- automotivo, químico/petroquímico e moveleiro -- foram inapelavelmente batidos no contingente de trabalhadores ao longo dos últimos anos. Mais precisamente desde que o governo federal promoveu abertura econômica desregrada. Se já não bastassem a guerra fiscal e a política de interiorização dos investimentos produtivos incrementada pelos governos estaduais que se sucederam, a força do Grande ABC foi estiolada também pela abertura econômica indiscriminada que lhe aplicou duros golpes.


 


Os trabalhadores ligados ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC dão bem idéia da sangria desatada. Entre 1990 e 1997, segundo números divulgados pelo próprio presidente da entidade, Luiz  Marinho, sumiram pelos ralos das transformações no setor nada menos que 83 mil postos de trabalho em São Bernardo e Diadema. Eram 203 mil trabalhadores, contra 120 mil de oito anos depois. O pior dos quadros é que nem mesmo os altos ganhos de produtividade das empresas, principalmente as montadoras de veículos, decorrentes de reengenharias de administração e produção, tornaram as empresas locais competitivas inclusive em território nacional, tantas são as pontas de um novelo de custos tipicamente da região.


 


Outros 15 mil empregos foram destruídos nos últimos seis anos na base territorial do Sindicato dos Químicos, que envolve os sete Municípios do Grande ABC. De 45 mil funcionários, segundo estatísticas do Sindicato, sobram 30 mil. No Pólo Petroquímico de Capuava, coração do setor que envolve a Petroquímica União, central de matérias-primas, e as empresas de segunda geração, o total de trabalhadores quase foi decepado pela metade -- de 4,5 mil para 2,8 mil. As empresas não desapareceram nem trocaram de Município, porque seria impensável diante do acúmulo e das especificidades de investimentos históricos, mas se lançaram também à frenética busca de produtividade em nome da globalização dos negócios.


 


Já na cadeia da terceira geração, formada principalmente por pequenas empresas do setor de plásticos, que em grande escala abastece as montadoras, a deterioração da situação econômico-financeira só foi contrabalançada pelo torniquete de demissões e medidas de reorganização administrativa e estrutural.


 


Quanto à indústria moveleira, quase toda centrada em São Bernardo e que viu o tempo passar pela janela enquanto crescia a concorrência nacional e outros pólos estabeleciam estratégias de fortalecimento, reduziu a menos da metade o quadro de trabalhadores. Chegou a contabilizar quase oito mil funcionários há 15 anos, contra cerca de 3,5 mil este ano. Empresas faliram, transferiram produção para localidades tributariamente mais interessantes, reorganizaram-se estruturalmente, enfim, promoveram coquetel de mudanças para se safar do pior.


 


No período de fevereiro a agosto deste ano, conforme estatística divulgada pelo Imes (Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano), o número da PEA (População Economicamente Ativa) desempregada no Grande ABC cresceu 25%. Como a pesquisa se limita a apenas três dos Municípios da região -- Santo André, São Caetano e São Bernardo -- e não atinge moradores de favelas, acredita-se que o índice não reflita o quadro de exclusão social que atinge mais os Municípios periféricos.


 


Outro agravante do quadro é que esses números perderam atualidade diante dos desdobramentos do pós-crise na Rússia, que levou o governo brasileiro a uma série de medidas de cunho extremamente recessivo a bordo de elevadíssimas taxas de juros. Nos primeiros anos do boom dos setores comercial e de serviços, foi possível absorver grandes levas de desempregados da indústria. Mas não demorou para essa válvula de escape menos nobre, porque os empregos do setor terciário não significam salários comparáveis aos do setor produtivo, perder o ritmo até se fechar completamente.


 


A precarização das relações econômicas também é realidade regional de pós-abertura comercial. Pesquisa realizada pelo Imes e anunciada em fevereiro constatou que diminuiu em 20% o número de trabalhadores da região com carteira assinada na livre-iniciativa, comparativamente a agosto do ano passado. Em contrapartida, o número de autônomos com registro em atividade, isto é, formalizados como empreendedores individuais, subiu de 9,4% de agosto de 1996 para 15,9% da População Economicamente Ativa de 1997. Nova pesquisa deverá acentuar ainda mais a precarização.


 


Quarto nocaute


 


Outro estudo que solidifica a realidade de perdas regionais e ganha forma de quarto nocaute se refere ao Índice de Potencial de Consumo Nacional, desenvolvido pela Alpha Assessoria e Pesquisa, uma das mais tradicionais empresas do setor no País e que serve de suporte para lançamento de novos produtos e serviços. Depois de conhecer três ciclos diferentes desde 1982, quando se iniciaram os estudos, o Grande ABC voltou a respirar e a apresentar rendimento positivo no ano passado. O crescimento apontado por esse que é um indicador de vitalidade econômica alcançou 4% nos dois últimos anos -- 1996 e 1997. A comparação envolve os dados coletados e esmiuçados pela Alpha em 1997 e os relativos ao período de 1993 a 1995.


 


Os estudos incorporaram novos medidores socioeconômicos divulgados pelo IBGE, que tornam as análises menos suscetíveis a desvios. Em vez de tradicionais 10 quesitos, agora são 15. Além de itens como geladeiras, televisores, telefones, energia elétrica, água, esgoto, coleta de lixo, número de banheiros, grau de instrução do chefe de família e renda mensal em cada um dos domicílios pesquisados pelo IBGE, acrescentam-se automóvel particular, freezer, máquina de lavar, aspirador de pó e rádio. Além desses dados do IBGE, o trabalho da Alpha está baseado na população e nas vendas a varejo de cada Município.


 


A reação do Grande ABC no Índice Nacional de Potencial de Consumo está relacionada sobretudo ao desenvolvimento do setor comercial e de serviços, compensando em parte as perdas industriais. A retomada pode não ser retumbante, mas já significa alívio para quem observava a derrocada regional nesse indicador importante. Afinal, no período de 1989 a 1993 a região registrou as mais dramáticas perdas de sua história: atingiu 31%, ao deixar o patamar nacional de 2,31% para 1,75%. Anteriormente a esse período, o Grande ABC experimentara sucesso nos dados da Alpha, já que em 1982 registrava índice de 2,07% e saltou para 2,37% na pesquisa divulgada em 1986.


 


A esses dois períodos contrastantes somou-se o terceiro, envolvendo os anos de 1993 a 1995, quando foi divulgada a penúltima pesquisa. Houve estabilidade explícita, já que o índice de 1,75% na pesquisa de 1993 é praticamente o mesmo de 1995 -- 1,77%. Uma comparação ponta a ponta registra que de 1982 a 1997 o Grande ABC perdeu 12% do potencial de consumo nacional. Num período comparativo mais curto, de 1986 a 1997, a queda será mais acentuada, atingindo 28%. Haverá leve redução de perda se o período for entre 1989 e 1997 -- aí chegará a 25%. Esse índice, que cobre justamente o período de grandes mudanças socioeconômicas no País, poderia estratificar as dimensões do rombo regional.


 


A nova sistemática da pesquisa da Alpha contribuiu para melhorar a posição da Capital, detentora do maior Índice de Potencial de Consumo do País. São Paulo atingiu 9,994% de participação em 1997, contra 9,448% registrados na pesquisa até 1995. Entretanto, um confronto ponta a ponta, entre 1982 e 1997, confirma que o fenômeno de esvaziamento econômico não assola apenas o Grande ABC. São Paulo detinha, em 1982, 13,620% do potencial de consumo nacional, ou seja, 36% mais que em 1997.


 


Um recuo mais avançado no tempo agravaria a hemorragia socioeconômica do Grande ABC e da Capital, incluídos na Região Metropolitana de São Paulo. Estudos oficiais mostram que dos anos 70 para os dias de hoje, conforme artigo de Fernando Vaz Pupo, economista pela Unicamp e secretário de Planejamento de Americana, publicado na edição de novembro da Carta de Conjuntura do Conselho Regional de Economia de São Paulo, a Região Metropolitana de São Paulo teve rebaixada a participação na atividade industrial relativamente ao País de 43% para 25,6%, enquanto o Interior do Estado passou de 14,6% para 23,3%. Isto é: enquanto a RMSP perdeu participação relativa de 68%, o Interior aumentou em 60%.


 


Com a evidente sequência de golpes e de nocautes, parece claro que o Grande ABC longe está do paraíso econômico que ufanistas exacerbados tentaram pintar, numa luta quixotesca que alguns vão insistir agora que os números da Fundação Seade começarão a sair do forno da mais minuciosa pesquisa já realizada no Grande ABC e no Estado. As quatro vezes em que foi atirada ao solo representam realidade insofismável. Tanto quanto a contraface de que, apesar de tudo, tanto o Grande ABC como o Estado de São Paulo reservam forças e músculos suficientes para levantar-se e ganhar a briga. Basta não fugir da realidade.  


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