Em fevereiro tive a honra de apresentar às Comissões Municipais de Emprego das Regiões Metropolitanas de São Paulo e da Baixada, reunidas em São Bernardo, uma análise comparativa da situação das estruturas produtivas do Estado, de suas regiões e, mais especificamente, das ali representadas. Alguns entendimentos equivocados sobre minha intervenção, veiculados por esta revista, me levam a tentar esclarecer os principais aspectos daquela fala, sempre à luz dos dados disponíveis.
Comecei por alertar para as dificuldades de identificar claramente os contornos de um quadro em intenso processo de mudanças, que causam fortes impactos nas estruturas produtivas do País, do Estado e muito especialmente das duas regiões em questão -- Metropolitana de São Paulo e Baixada, ambas emblemáticas de muitos dos aspectos em profunda transformação no panorama mundial. É nessa escala que tais problemas devem, a meu ver, ser entendidos para que as ações sejam social e economicamente eficazes e justas.
A internacionalização da economia brasileira, operada a partir do final dos anos 80 e de forma mais contundente ao longo da década de 90, responde a um movimento planetário. Acirra-se a competição por novos mercados, envolvendo redução de custos e aumento de qualidade. Evidentemente, esse processo planetário encontra respostas diferenciadas em cada país e região, de acordo com suas estruturas produtivas e políticas econômicas específicas.
No Brasil, aponte-se como cenário os inúmeros benefícios decorrentes da estabilização da moeda e dos preços, mas também as profundas e estruturais desigualdades sociais e regionais e as dificuldades decorrentes das medíocres taxas de crescimento econômico que o País vem experimentando nos últimos anos. Se o crescimento por si só não é garantia de desenvolvimento, e especialmente de novos empregos, sem ele as coisas tornam-se muito mais complicadas.
O aspecto socialmente mais evidente e preocupante dos novos tempos, entre nós, está na elevação dos índices de desemprego e na precarização dos vínculos empregatícios. A reestruturação produtiva em curso parece apontar para aprofundamento dessa tendência, pela introdução de novas tecnologias poupadoras do uso de força de trabalho. A indústria automobilística brasileira, por exemplo, fortemente concentrada no espaço e cuja performance é fundamental para a economia metropolitana -- e especialmente a do Grande ABC --, após 12 anos consecutivos de comportamento instável, produzindo cerca de 700 mil unidades/ano, voltou a crescer em 1993 a taxas médias anuais de 20%, chegando em 1996 à marca de 1,5 milhão de veículos.
Apesar disso, os assalariados com carteira assinada no Grande ABC ocupados nas indústrias do setor de material de transportes -- responsáveis por 19,6% do emprego formal na região em 1989 -- passaram de 117.935 trabalhadores em 1989 para 82.011 em 1995. Muitas empresas fecharam as portas ou mudaram de mãos em função da ampliação das escalas de produção e da vertiginosa renovação tecnológica, num contexto de juros altos que inibem o investimento das pequenas e médias empresas. O cenário social assim composto é, de fato, desolador.
Além das dificuldades decorrentes do turbilhão da mudança, lamentavelmente faltam dados para melhor ilustrar e compreender esse quadro. O censo econômico realizado pelo IBGE quinquenalmente, que produzia valiosas informações estatísticas desagregadas por Município, deixou de ser elaborado a partir de 1985. As pesquisas conjunturais desse Instituto, ainda que valiosas, não permitem aberturas além do âmbito estadual e estão atrasadas em sua divulgação. O setor de serviços, cujo crescimento é uma das marcas do processo de transformação das estruturas produtivas, não é objeto de nenhuma enquete mais abrangente. A exceção é o mercado de trabalho investigado no detalhe permanentemente, desde 1985, pela PED --Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de São Paulo, realizada em parceria pela Fundação Seade e pelo Dieese.
Tal situação nos levou, há quatro anos, a desenvolver metodologia que resultou na Paep (Pesquisa da Atividade Econômica Paulista) atualmente em curso e que, dentre inúmeras parcerias institucionais, está atendendo à demanda colocada pelos sete Municípios do Grande ABC integrantes do Consórcio Intermunicipal, que solicitaram uma expansão da amostra, de modo a se obterem resultados significativos para essas cidades. A pesquisa busca produzir estatísticas econômicas que permitam atualizar os cálculos dos agregados macroeconômicos, bem como indicadores confiáveis sobre o processo de reestruturação produtiva. Seus resultados, captados numa amostra de quase 40 mil empresas em todo Estado de São Paulo, devem começar a vir a público ao longo do segundo semestre deste ano e haverão de iluminar substancialmente esta discussão.
Por enquanto, trabalha-se com a informação disponível decorrente dos chamados registros administrativos, como os dados sobre emprego formal produzidos pelo cadastro do Rais (do Ministério do Trabalho), o consumo de energia elétrica, o valor adicionado fiscal etc. Cada um tem limitações que, se respeitadas, fornecem indicações preciosas das realidades às quais se referem.
Parece-me totalmente fantasiosa uma alegada hipótese de que, dentre as limitações ao valor adicionado como proxi da atividade econômica, esteja uma suposta perseguição por parte das autoridades fazendárias, anos a fio, sobre determinada região ou segmento produtivo.
Consideradas as informações de valor adicionado produzidas pela Secretaria da Fazenda, o Grande ABC manteve participação no Valor Adicionado do Estado a partir de 1985, para o conjunto da indústria, em cerca de 15%. O Estado de São Paulo respondia, em 1980, por 52% da produção da indústria de transformação brasileira. Somente um ufanismo tolo poderia ver isso com bons olhos e esquecer os problemas gerados por essa concentração, seja aqui, seja nos demais Estados. Creio que não há documento de política de desenvolvimento que não ostente, dentre suas metas, o atenuamento das desigualdades regionais.
De fato, Estados e regiões pouco industrializados têm se esmerado na atração de novas empresas. Meta louvável, desde que a custos suportáveis. São Paulo não pode se dar ao luxo de abrir mão de receitas tributárias, enfraquecendo o setor público e frustrando, com isso, as fortes demandas sociais e das próprias empresas quanto à sua intervenção. Apesar disso, durante toda a primeira metade desta década, a participação da indústria de transformação paulista no total nacional manteve-se em torno de 49%!
Que conclusões podem ser extraídas desse conjunto de dados?
Primeiro, que está evidentemente configurado um movimento de desconcentração de certas atividades produtivas, que vai da Capital paulista e da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) para o Interior do Estado e para outras unidades da Federação. Tal movimento configura-se tanto pela instalação de novos empreendimentos no Interior do Estado e em outros Estados, como pela eventual transferência de plantas industriais de áreas tradicionais para novas localidades.
No caso da RMSP e especialmente da Capital e do Grande ABC, se as chamadas deseconomias de aglomeração devem ser consideradas limitantes à expansão industrial -- o saturamento da infra-estrutura, especialmente a viária, a poluição ambiental, o custo dos terrenos e outros fatores que afetam a vida das empresas --, há sem dúvida aspectos que devem ser levados em conta, para além dos números.
A racionalização da produção proporcionada por novas técnicas de organização social do trabalho (just-in-time, terceirização etc.) e pelo enxugamento das linhas de produção e especialização das empresas, decorrentes da globalização e da pressão competitiva global, leva, naturalmente, a uma economia significativa de espaço físico: não há mais necessidade de grandes estoques e boa parte do que se fazia na empresa passa a vir de fora, normalmente de fornecedores locais, mas também de fornecedores internacionais. Essa economia de espaço permite, por sua vez, a desmobilização de áreas industriais altamente valorizadas, constituindo-se em excelentes oportunidades de negócios para inúmeras empresas. Abrem-se, assim, espaços na região para que se instalem atividades comerciais e de serviços, explorando um mercado concentrado e de alto poder aquisitivo.
Por outro lado, essas mesmas novas técnicas organizacionais, particularmente o just-in-time que hoje se encontra amplamente difundido nas principais cadeias produtivas industriais, exigem a proximidade física entre fornecedor e cliente, impedindo, desta forma, que parcela expressiva da cadeia produtiva, ligada principalmente à indústria automobilística, se afaste da região.
O que ocorre, portanto, no Grande ABC é de certo modo um processo contraditório. De um lado, as chamadas deseconomias de aglomeração apontam no sentido da perda gradativa da importância da região na produção industrial do Estado em favor de localidades não tão distantes da Capital e que não apresentam ainda as mesmas desvantagens (Sorocaba, Campinas, São José dos Campos), ou mesmo de outros Estados, como se demonstrou na palestra, e principalmente no caso de novos investimentos.
De outro lado, entretanto, a estrutura industrial fortemente enraizada na região, os enormes investimentos realizados e que não podem ser desmobilizados a não ser à custa de grandes prejuízos, as novas técnicas de produção que exigem proximidade física entre clientes e fornecedores, principalmente de partes e componentes de maior volume, além da proximidade do Porto de Santos, garantem continuidade ao Grande ABC enquanto centro industrial de importância no Estado e pólo que atrai empresas que precisam atuar próximas aos grandes fabricantes.
Além disso, os espaços liberados pelo processo de racionalização da indústria continuarão a ser ocupados por atividades no setor de serviços -- seja os de apoio às atividades industriais, seja os serviços pessoais -- e por atividades de comércio, destinadas ao mercado de alto poder aquisitivo existente na região.
Há, portanto, importantes movimentos de alteração da base produtiva do Grande ABC, não homogêneos nas sete cidades, que deixam alto saldo de postos de trabalho eliminados, não compensados pelos que estão sendo criados, assim como de empresas extintas pelo aumento da concorrência, que não significam perda de dinamismo de uma das regiões mais importantes do País. Trata-se, isso sim, de sua inserção no processo de globalização.
* Luiz Henrique Proença Soares é Diretor-Adjunto de Produção de Dados da Fundação Seade
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